Dado que 96% da população do Estado de São Paulo é urbana, é de grande relevância que ações de adaptação climática com foco em cidades façam parte das políticas de governo. Foi com esse objetivo que um grupo de pesquisadores, gestores públicos e representantes da sociedade civil do Biota Síntese incluíram entre as estratégias recomendadas ao Plano de Ação Climática (PAC) do Estado “fomentar novas oportunidades de restauração com foco em adaptação climática em áreas periurbanas”. O PAC, que foi apresentado dia 15 na COP27 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, no Egito, tem como meta atingir até 2050 a neutralidade das emissões de gases de efeito estufa; e deve dialogar com o Plano de Adaptação e Resiliência Climática do Estado, que está em elaboração.
Biota Síntese é um projeto financiado pela Fapesp e vinculado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) que tem o objetivo de subsidiar políticas públicas voltadas à sustentabilidade com foco em Soluções Baseadas na Natureza, trabalhando por meio do contato constante entre cientistas e Secretarias do Estado, como a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente – Sima/SP, responsável pela elaboração do PAC. Por sua expertise, o projeto ficou responsável por discutir estratégias relacionadas à restauração de áreas degradadas no Estado, que, de acordo com a meta do PAC, deve chegar a 800 mil hectares em 2050.
Segundo o coordenador do Biota Síntese, pesquisador do IEA e professor do Instituto de Biociências da USP, Jean Paul Metzger, em geral, os esforços de restauração da vegetação costumam se concentrar nas áreas rurais, onde há mais disponibilidade de terras, principalmente em áreas de pastagens degradadas. “Eu acho que aí mesmo que a gente pode ganhar escala. Isso ajuda muito a você pensar num planejamento de mitigação, de captura de carbono. Que é o race to zero, para você neutralizar as emissões”, analisa o professor. “Mas a gente tem o race to resilience também. Que é a ideia de que a gente tem que aumentar nossa capacidade de resiliência às mudanças climáticas. Esse aumento da resiliência, ele obviamente envolve elementos da produção agrícola, mais envolve uma série de outros problemas que ocorrem muito mais em centros urbanos, onde as pessoas habitam.”
Problemas como enchentes, deslizamentos, ilhas de calor, falta de água potável e concentração da poluição, que são comuns em cidades, podem ser intensificados por eventos extremos de calor, secas e chuvas associados às mudanças climáticas já em curso. A presença de áreas verdes em pontos estratégicos das cidades poderia ser uma forma de amenizar esses riscos, entretanto, “quando a gente vai para as áreas urbanas, contrariamente às áreas rurais, você não tem espaço para restauração, para expansão das áreas verdes. É tudo muito mais engessado, o preço das terras é muito alto, há uma competição muito grande por espaços”, explica Metzger. “No entanto existe uma região entre o urbano e o rural, que é esse periurbano, onde você tem uma proximidade dessas áreas com as áreas de habitação. E onde você tem, sim, terras disponíveis para fazer a restauração.”
As análises preliminares do grupo indicaram que, mesmo representando uma pequena parcela do território estadual, cerca de 3%, considerando dados do IBGE, essas regiões têm o potencial de contribuir com 50 a 100 mil hectares para restauração, ao mesmo tempo em que amplia a capacidade de adaptação das cidades. Baseados nos dados da organização MapBiomas, os cientistas observaram que, apesar do grande crescimento das áreas urbanas, essa expansão se deu sobre as pastagens, que estão em declínio na região. Além de pastagens e edificações, foi observado que as áreas consideradas como periurbanas pelo grupo apresentam uso do solo bastante diversificado, incluindo áreas de preservação e cultivos diversos. Também foi observado que as florestas periurbanas (naturais e plantadas) têm apresentado uma tendência de crescimento: “Nos últimos 20 anos as taxas de regeneração foram maiores do que as de desmatamento, havendo um aumento de cerca de 500 a 1.000 hectares de florestas por ano, mesmo havendo poucas políticas de incentivo com esse propósito específico”, é o que afirma o relatório escrito pelo Biota Síntese.
Como as análises foram feitas utilizando um conjunto de dados muito grande e diversificado, os cientistas ainda não identificaram o tipo de regeneração que ocorreu. “Eu estou rodando isso agora, […] para entender se essa regeneração que a gente está vendo está concentrada nas APPs [Áreas de Preservação Permanente]. O que significaria que as pessoas estão restaurando APP, que é uma obrigação legal”, explica Luciana Schwandner Ferreira, pós-doutoranda do projeto e responsável pelas análises.
Essas e outras informações que continuam sendo levantadas e discutidas pelo projeto são importantes para que os cientistas e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima), parceira do projeto, possam planejar as áreas prioritárias – como áreas de risco (inundação, escorregamento, erosão e solapamento) e Áreas de Proteção Permanente de corpos d’água -, os formatos e os instrumentos de regulação e incentivo mais adequados para a restauração nas áreas periurbanas do Estado, que apresentam características bastante diversificadas.
Serviços ecossistêmicos nas áreas periurbanas
Um importante exemplo que mostra os benefícios da relação entre urbano, periurbano e rural é a Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo (RBCV), um mosaico de paisagens localizado no entorno da maior mancha urbana do País, a Região Metropolitana de São Paulo, chegando até a Baixada Santista. As florestas e áreas verdes da RBCV são responsáveis por prover diversos recursos essenciais à população da macrometrópole. “A questão da água é crucial. Se a gente pegar o território da reserva da biosfera, praticamente 100% da água é produzida e armazenada dentro dele”, relata Rodrigo Victor, assessor técnico da Fundação Florestal e colaborador do Biota Síntese, que foi coordenador executivo da RBCV de 2001 a 2009. “Você depende dessas áreas íntegras para poder proteger o recurso hídrico, em qualidade e quantidade”, complementa.
As contribuições das florestas urbanas e periurbanas para as pessoas, os chamados serviços ecossistêmicos, são tantas, que sua quantificação e valoração dos serviços diretos e indiretos representam um desafio para a ciência, mas já está bem avançado em alguns aspectos. Por exemplo, o pagamento por esses serviços ambientais relacionados aos recursos hídricos já está sendo implementado por alguns Estados e Prefeituras, como em São Paulo, e pode servir como um instrumento de estímulo à restauração em áreas periurbanas. Essas áreas também podem servir como espaços de contemplação e lazer, além de promover a filtragem de poluentes do ar, o controle da erosão, a regularização do clima local, o manejo de pragas agrícolas e a produção de alimento e madeira.
Apesar de sua importância, as áreas verdes periurbanas estão ameaçadas pelo avanço da cidade, tanto por construções legais, como ilegais, desde pessoas que não têm outra opção de moradia até condomínios de alto padrão. “Se você pega cenários de projeção de expansão urbana, você chora, porque há tendências de expansão pesada sobre áreas verdes, de mananciais, agrícolas”, alerta Victor. Mesmo as florestas plantadas – que produzem lenha, carvão e celulose para a cidade – já sentem essa pressão. “Muitos dos proprietários de áreas de reflorestamento de pinus e eucaliptos, às vezes inclusive grandes empresas, já notaram que a madeira já não está pagando mais o preço da terra que eles têm. Eles estão vendendo essas áreas para loteamentos para condomínios”, comenta.
“Os municípios vão definindo setores urbanos e direcionando o crescimento da cidade para áreas que lhes interessam, porque o parcelamento do solo para fins urbanos em área rural, é proibido pela legislação federal”, explica Luciana, que já atuou como coordenadora de estudos ambientais e planejamento territorial na Prefeitura de São Paulo. “Você vê municípios que têm áreas urbanas enormes e ocupações de fato urbanas muito pequenas”, afirma a pesquisadora.
Nesse sentido, o foco no periurbano se torna estratégico, mas também um desafio, sendo necessário considerar as dinâmicas e legislações tanto das áreas urbanas quanto rurais, o que reforça a importância da parceria entre academia e gestores públicos. “O desafio é enorme, mas é factível, se a gente se antecipar e estabelecer os mecanismos, para não deixar a área ser inteiramente ocupada. É uma luta, e a ciência é necessária para a gente conseguir se antecipar a prejuízos, que muitas vezes são irreversíveis”, reforça Victor.
Fernanda Pardini Ricci
Especial para o Jornal da USP