Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Freepik e Public Domain Pictures

Nova lei dos EUA censura aulas sobre raça e gênero – e a mordaça pode chegar ao Brasil, diz professor

Para Joshua Scacco, docente da Universidade do Sul da Flórida, legislação que proíbe discussões sobre racismo estrutural em seu país tem “efeito assustador” e é um obscurantismo típico de regimes iliberais. Segundo ele, o Brasil pode ser alcançado por essa onda autoritária

 12/09/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 14/09/2022 às 23:38

Texto de Rodrigo Ratier, especial para o Jornal da USP, com colaboração de Eugênio Bucci (*)

“Em breve, num país perto de você.” A afirmação, feita em tom bem-humorado durante um almoço em São Paulo, não escondia a preocupação. Para Joshua Scacco, professor do Departamento de Comunicação da Universidade do Sul da Flórida, leis que restringem a liberdade de cátedra podem se tornar realidade no Brasil. O alerta vem do próprio estado em que ele leciona. Em julho, o governador republicano Ron DeSantis aprovou legislação que restringe debates sobre raça, gênero e sexualidade nas universidades da Flórida. A lei ficou conhecida como stop woke act – em tradução livre, algo como “lei anti-woke”, termo que designa a consciência para questões políticas e sociais, especialmente o racismo.

Na prática, a nova legislação mira a limitação de conceitos como racismo estrutural, a ideia de que a discriminação é sistêmica na sociedade e serve para perpetuar a hierarquia entre brancos e negros. Fica proibido, por exemplo, utilizar em sala de aula as noções de “privilegiado” ou “oprimido” levando em conta raça ou gênero, defender políticas de ação afirmativa para alcançar a diversidade e mesmo considerar atributos como mérito ou justiça como “racistas” ou “sexistas”. Infrações podem ser punidas com multas e levar à perda de emprego.

A iniciativa lembra o projeto Escola sem Partido, que atuou no Brasil entre 2004 e 2020. Visando a combater uma suposta “doutrinação ideológica” nas escolas, o movimento encorajava denúncias contra professores e a aprovação de projetos de lei (PLs) contra a liberdade de cátedra. Um coletivo de educadores chegou a registrar a existência de 18 PLs no Congresso propondo algum tipo de censura em sala de aula e 229 em nível estadual, municipal ou distrital. Em agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional uma lei de Alagoas semelhante ao Escola sem Partido, levando ao desmonte do movimento.

No caso americano, a constitucionalidade da lei também já está sendo questionada. Em agosto, um juiz distrital da Flórida decidiu que o stop woke act é “inadmissivelmente vago” e que viola a Primeira Emenda da Constituição norte-americana, relativa à liberdade de expressão. DeSantis promete recorrer de qualquer decisão judicial das cortes inferiores. De acordo com Scacco, o clima nas universidades é de apreensão. “Os professores de toda a Flórida estão preocupados porque esse tipo de legislação tem um efeito assustador”, afirma. Já de volta aos Estados Unidos, após breve passagem pelo Brasil para uma rodada de palestras e workshops, ele atendeu ao Jornal da USP em entrevista por e-mail. Nas respostas – que Scacco classifica como uma “perspectiva pessoal” que não necessariamente reflete as opiniões de sua instituição -, detalhou as implicações da nova lei para seu trabalho e de seus colegas, analisou medidas semelhantes tomadas em contexto de ultraconservadorismo e arriscou um prognóstico para nosso país.
Joshua Scacco, docente da Universidade do Sul da Flórida - Foto: Arquivo pessoal

Joshua Scacco, docente da Universidade do Sul da Flórida - Foto: Arquivo pessoal

Jornal da USP: Quais são os temas proibidos para professores universitários na Flórida?

Joshua Scacco: A lei permite discussões relacionadas a raça, gênero, sexualidade e outros tópicos. No entanto, proíbe a defesa de um conjunto específico de crenças. São oito conceitos: (1) membros de uma raça, cor, sexo ou origem nacional são moralmente superiores a membros de outra raça, cor, sexo ou origem nacional; (2) um indivíduo, em virtude de sua raça, cor, sexo ou origem nacional, é inerentemente racista, sexista ou opressor, consciente ou inconscientemente; (3) O caráter moral ou o status de um indivíduo como privilegiado ou oprimido é necessariamente determinado por sua raça, cor, sexo ou origem nacional; (4) membros de uma raça, cor, sexo ou origem nacional não podem e não devem tentar tratar os outros sem respeito a raça, cor, sexo ou origem nacional; (5) um indivíduo, em virtude de sua raça, cor, sexo ou origem nacional, é responsável por, ou deve ser discriminado ou receber tratamento adverso, por causa de ações cometidas no passado por outros membros da mesma raça, cor, sexo ou origem nacional; (6) um indivíduo, em virtude de sua raça, cor, sexo ou origem nacional, deve ser discriminado ou receber tratamento adverso para alcançar diversidade, equidade ou inclusão; (7) um indivíduo, em virtude de sua raça, cor, sexo ou origem nacional, é portador de responsabilidade pessoal e deve sentir culpa, angústia ou outras formas de sofrimento psíquico por causa de ações, nas quais o indivíduo não participou, cometidas no passado por outros membros da mesma raça, cor, sexo ou origem nacional; (8) virtudes como mérito, excelência, trabalho duro, justiça, neutralidade, objetividade e daltonismo racial são racistas ou sexistas, ou foram criadas por membros de uma determinada raça, cor, sexo ou origem nacional para oprimir membros de outra raça , cor, sexo ou origem nacional.

A lei atinge instituições públicas e privadas? E tanto a graduação quanto a pós?

Conforme foi escrita, ela se aplica a todas as instituições do Sistema Universitário Estadual da Flórida [um conjunto de 12 universidades públicas, que inclui a USF], independentemente do nível de educação. A lei também diz respeito a treinamentos em empresas privadas.

Existe um sistema de filtragem antecipada do que o professor pode falar em sala de aula ou o controle será feito apenas por reclamações posteriores?

O cumprimento é feito sobretudo posteriormente por meio de reclamações. Mas a legislação, apenas por ser proposta, tem um efeito desencorajador, independentemente de como a lei é aplicada. As universidades têm preparado o corpo docente com “orientações” sobre como navegar pela lei. Isso terá efeitos no ensino. Já há notícias sobre os efeitos assustadores que a lei já está causando.

Um professor pode denunciar outro colega?

Tanto quanto eu entendo, qualquer pessoa pode denunciar um membro do corpo docente por possíveis violações da lei.

Outros Estados estão fazendo leis semelhantes?

A legislação destinada ao ensino desses tópicos, particularmente a teoria racial crítica [que traz conceitos como racismo estrutural e entende as raças como construções sociais], tem sido ameaçada em vários Estados, incluindo o Texas. Para ser exato, a teoria racial crítica não é ensinada na educação pública [que cobre da Educação Infantil ao Ensino Médio]. No entanto, os defensores desses tipos de leis afirmam que os conceitos – diversidade, equidade, inclusão – são expressões da teoria. Essas alegações são falsas, no entanto.

Esses Estados são sempre governados pelo Partido Republicano?

Em geral, são representantes do Partido Republicano em vários níveis de governo – de conselhos de educação escolar a gabinetes de governadores – que optam por mirar a educação sobre raça, etnia, gênero e sexualidade.

Essas medidas são inconstitucionais?

Não sou advogado. No entanto, os argumentos de empresas e instituições educacionais se voltam para possíveis violações aos direitos de expressão encontrados na Primeira Emenda da Constituição dos EUA. No primeiro teste da legislação no Tribunal Distrital, o juiz julgou inconstitucional um componente da lei.

Já houve recurso à Suprema Corte para barrar a lei?

Não. O processo judicial está apenas começando.

Quais semelhanças você enxerga entre esse tipo de limitação ao trabalho docente e o que vem ocorrendo em outros países, como a Hungria?

A Hungria aprovou leis, por exemplo, que banem conteúdo LGBTQIA+ em materiais educacionais. Também mirou [a autonomia] de instituições de ensino superior. Alguns membros conservadores do Partido Republicano, incluindo o Comitê de Ação Política Conservadora [braço ultraconservador do Partido Republicano], adotaram as abordagens do governo Orban na Hungria. A National Public Radio (NPR) chegou a fazer uma comparação do alinhamento da direita americana a Orban.

Como está o clima na sua universidade em relação a essas proibições?

Os professores de toda a Flórida estão preocupados porque esse tipo de legislação tem um efeito assustador. O objetivo é esfriar as discussões desses tópicos por medo de reclamações. Nosso corpo docente produziu um vídeo para compartilhar no início de nossas aulas neste semestre explicando que podemos e vamos discutir temas relacionados a raça, gênero e sexualidade. Também mostramos no vídeo o que a lei proíbe para que os alunos entendam que só porque um determinado tópico é mencionado não significa que o docente está infringindo a lei.

Esse tipo de legislação pode se espalhar para outros países?

Existem semelhanças entre os movimentos políticos iliberais nos Estados Unidos, Hungria, Brasil e outros países. Não quero prever o futuro, mas é possível, dadas as conversas internacionais sobre direitos humanos, que haja uma reação [desse tipo].

* Rodrigo Ratier é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e Eugênio Bucci é professor titular da ECA-USP e Superintendente de Comunicação Social da USP


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