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É possível combater a desinformação e os discursos de ódio na internet?
Para Guilherme Canela, chefe da área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco e mestre em Ciência Política pela USP, se queremos combater notícias falsas, desinformação e o discurso de ódio on-line precisamos regular o mundo digital
Desde a introdução das primeiras redes sociais, no começo da década de 2000, mais e mais do nosso discurso tem migrado para espaços on-line. Por isso, a cada ano que passa, esses espaços e as plataformas que os sustentam se transformam em um legítimo campo de batalha quando o assunto envolve as fronteiras da liberdade de expressão.
Preocupada com a questão, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) realizou, em fevereiro deste ano, sua Primeira Conferência Global para abordar as ameaças à integridade da informação e liberdade de expressão nas plataformas de redes sociais.
O evento, que durou três dias e foi conduzido em Paris, na França, recebeu 4,3 mil pessoas incluindo chefes de Estado e governo, jornalistas e influenciadores digitais. Dentre os participantes estavam a diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, a jornalista filipina e Prêmio Nobel da Paz, Maria Ressa, o brasileiro Felipe Neto e a subsecretária-geral de Comunicação Global da ONU, Melissa Fleming, entre outros.
Para a Unesco, se queremos combater notícias falsas, desinformação e o discurso de ódio on-line, precisamos regular o mundo digital. E, de acordo com os participantes do encontro, o ponto de partida deve ser a discussão meticulosa do assunto com todos os agentes envolvidos.
Em carta que abriu o fórum, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a regulação das redes sociais contra a desinformação. Conforme o texto, nos últimos anos, o ambiente digital formado por “poucas empresas” causou riscos à democracia e à saúde pública. De acordo com Lula, o aumento da desinformação durante a pandemia contribuiu para milhares de mortes, por isso, é preciso construir diretrizes globais para melhorar a confiabilidade das informações e, ao mesmo tempo, proteger os direitos humanos.
Para Guilherme Canela, chefe da área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco e mestre em Ciência Política pela USP, “a internet é a maior revolução para a liberdade de expressão e proteção dos direitos humanos desde que Johannes Gutenberg inventou a imprensa” no século 15.
A Unesco no debate
Criada em 1945, a Unesco surgiu com o objetivo de contribuir para a paz e segurança no mundo mediante a educação, ciência e comunicações. Quase oito décadas depois, a organização permanece fundamental na proteção do livre fluxo de ideias e da liberdade de expressão. Seu objetivo é apoiar “os atores relevantes para construir políticas públicas globais sobre liberdade de expressão, de acordo com a legislação internacional de direitos humanos”, pontua Canela.
Ao longo das décadas, os desafios envolvendo a área foram mudando. E conforme o ecossistema informacional migrou para o on-line, ele também deslocou as discussões referentes aos discursos de ódio, crescimento das teorias de conspiração e da desinformação.
Para dar conta dos desafios, eventos como a recente Conferência Global surgiram para “condicionar o debate”. “A discussão de um assunto complexo como esse se dá com um ponto de partida claro que tem como linha de base a legislação internacional de direitos humanos, ou seja, chamamos os atores para um debate plural, mas com um limite, o limite é que qualquer proposta feita [sobre regulação das redes] deve estar alinhada com essa legislação”, esclarece ele.
Na opinião do especialista, o que o debate na Unesco ofereceu foi “colocar todo mundo ao redor da mesa, assumindo que o tema é urgente, complexo e que todos os atores precisam ter voz, sempre dentro do ponto de vista da proteção dos direitos humanos”.
Falta de transparência das redes
Fato é que, nos últimos anos, o debate em torno da regulação das plataformas tem aumentado em vista de uma série de escândalos envolvendo as redes. Desde 2016, a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos chamou a atenção por popularizar o termo “fake news”. Estudos revelaram que o Facebook, principal rede social da empresa agora conhecida como Meta, foi instrumental na disseminação de notícias falsas sobre a candidata democrata e rival de Trump, Hillary Clinton. Uma das principais conspirações a circular na época foi o chamado “Pizzagate”, acusação falsa de que Clinton comandaria uma rede de pedofilia cuja sede ficaria numa pizzaria em Washington.
A rede social americana também foi envolvida em atos que resultaram em um genocídio no Sudeste Asiático. A empresa admitiu que não conseguiu evitar que sua plataforma fosse usada para “incitar a violência” contra os Rohingya, uma minoria muçulmana apátrida de Mianmar, vítima de discursos de ódio.
Além disso, pesquisas também revelaram que o comportamento tribal nas mídias sociais ampliou o abismo entre os eleitores do Reino Unido sobre a saída da União Europeia, o Brexit, e durante a pandemia a falta de transparência por trás da programação dos algoritmos das redes fomentou o avanço de notícias falsas sobre a covid-19, ampliando a disseminação de notícias falsas sobre vacinação.
“Quando começamos essa conversa, muito antes de fevereiro, a Unesco já vinha alertando para um problema, a falta de transparência dessas empresas de internet em relação ao que está acontecendo no mundo”, lembra Canela ao defender que, em vista destes e muitos outros casos envolvendo as redes, “políticas públicas precisam ser construídas baseadas em evidências, se elas [as plataformas] não são transparentes, não temos evidências suficientes para construir essas políticas”.
“Regular sem censurar”
Mas o que pode e o que não pode ser regulamentado quando o assunto envolve as grandes plataformas internacionais? Estaria o desafio ao alcance dos governos e da sociedade civil?
“Há um longo caminho percorrido na história das políticas públicas de proteção e promoção da liberdade de expressão desde que o artigo 19 da Declaração Universal foi aprovado. Artigo que, justamente, tenta responder a essa pergunta ao longo da história”, afirma Canela.
Assim como, ao longo do século 20, fomos capazes de regular o rádio e a televisão e ao mesmo tempo proteger a liberdade de expressão, o especialista defende que, com a internet, embora o assunto se complique por uma razão de jurisdição, o desafio é possível.
Sediadas em países distintos, plataformas como o Facebook, o Twitter e o TikTok se valem de uma série de artimanhas jurídicas para evitar a responsabilização por eventuais problemas em países em que não possuem escritórios instalados. Mas se discussões como a da Unesco persistirem, talvez seja possível produzirmos um “sistema regulatório que tem como objetivo proteger a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, cuidar das eventualidades negativas que podem existir no processo”, teoriza.
As eventualidades mencionadas por Canela envolvem, por exemplo, a independência dos agentes regulatórios. “Queremos evitar o chamado ‘risco de captura’, seja pela política – ou o partido político no poder -, seja pelo setor privado.”
O segundo elemento “é a possibilidade de haver controle judicial desse processo” e o terceiro exige que o sistema sugerido englobe múltiplos atores. “A sociedade civil e os jornalistas precisam estar empoderados para fazerem suas checagens”, argumenta. Na opinião dele, com informações transparentes será possível verificar, por exemplo, se o Estado está implementando corretamente políticas regulatórias e, também, se as empresas as estão respeitando. “Precisamos criar um sistema de accountability para os distintos atores poderem se checar, para evitar excessos que poderiam levar a práticas censórias”, reforça.
O Brasil e o futuro do debate
Sobre o papel do Brasil nessa discussão, igualmente afetado pelo mau uso das redes que contribuiu, em um exemplo mais recente, para o cenário caótico do dia 8 de janeiro de 2023, ele afirma que “a participação de uma forte delegação brasileira, capitaneada por uma carta do presidente da República, com a presença de influencers importantes e membros da Suprema Corte, ilustraram a urgência da discussão e o que efetivamente pode acontecer se esses debates não conseguirem chegar a algum tipo de estrutura institucional que possa ajudar a equacionar esses problemas”.
Com novo governo, o País, que sempre teve um papel importante na discussão multilateral sobre a internet, inclusive implementando práticas que são consideradas bons exemplos, como a criação do Comitê Gestor da Internet em 2003 e a introdução do Marco Civil da Internet em 2014, volta a protagonizar no cenário internacional. “Sempre esperamos uma contribuição pujante do Brasil pelo seu histórico de contribuições muito concretas”, diz.
Embora otimista sobre como podemos proteger as democracias e enfrentar de forma efetiva o avanço da desinformação, Canela é taxativo: “Não há soluções simples para problemas complexos”.
“Precisamos ampliar a autonomia das pessoas para que elas tenham uma relação crítica com os conteúdos que circulam no ambiente digital”, sugere. O processo naturalmente envolve educação, mas, como todo processo educativo, “ele toma tempo”.
E como qualificar as informações e os produtores de conteúdo que circulam no meio on-line? Ao responder, Canela alerta para o fato de que “jornalistas, artistas, cientistas e vários desses produtores de conteúdo, infelizmente, estão sendo atacados de várias maneiras”. Ele lembra que, durante a pandemia, parte dos cientistas foi atacada por uma parcela obscurantista da sociedade que questionava o papel das vacinas na contenção da crise. Além disso, “no caso do jornalismo, há uma crise de financiamento que afeta a própria existência da profissão”, aponta.
“Ainda que encontremos uma fórmula mágica que equacione todos esses problemas, só isso não seria suficiente. Dada a complexidade da discussão, as políticas públicas [que irão endereçar as inúmeras adversidades] precisam ser de múltiplas entradas para que tudo funcione”, declara.
Para todos os presentes na conferência está evidente que, nas próximas décadas, a humanidade irá enfrentar vários desafios, principalmente no campo climático e ao lidar com ondas de migração, e um deles inclui a proteção das democracias que, atualmente, estão intrinsecamente atreladas a como funcionam os ecossistemas informacionais.
Em setembro deste ano, a Unesco deve divulgar uma série de recomendações sobre o processo de regulamentar a internet com base nas discussões do último encontro. “Se tivermos uma decisão coletiva da humanidade, incluindo aí governos, empresas e membros da sociedade civil, de pensarmos como equacionar esses problemas, sim, é possível solucioná-los”, conclui.
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