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Como identificar e combater as fake news no Brasil?
Especialistas da USP reforçam necessidade de educação midiática e verificação crítica das informações para combater o avanço das notícias falsas
Entre maio e junho de 2023, um vídeo viralizou contendo trechos de discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferido em 30 de maio daquele ano, em Brasília, durante encontro com chefes de Estado de dez países da América do Sul. A publicação compartilhada nas redes alertava sobre a suposta intenção do governo federal de “confiscar a poupança dos brasileiros”.
Utilizando um corte seco a partir de um trecho em que o presidente da República menciona “colocar a poupança regional a serviço do desenvolvimento econômico e social, mobilizando os bancos de desenvolvimento”, a pequena peça de menos de dois minutos foi editada com a inserção da fala de uma comentarista sem identificação, que tira de contexto os sentidos da frase para propagar um fato falso. O vídeo parece ter sido construído para atrair os muitos brasileiros que ainda se lembram do confisco das poupanças em 1990, medida do então presidente Fernando Collor.
Apesar de ter sido desmentido imediatamente pelo governo federal e por uma série de jornais e agências de checagem, a peça mentirosa permanece sendo compartilhada em redes sociais e aplicativos de comunicação instantânea como o WhatsApp até o momento, em 2024. Os esforços de moderação de plataformas como a Meta, dona do WhatsApp, pouco se fizeram visíveis diante do avanço desta fake news específica, apenas uma de várias que permanecerão na rotação de compartilhamento em ano de eleições no Brasil. Neste mês de março, a empresa cortou parte da verba para checagem de informação no mundo inteiro, inclusive no nosso país.
O surgimento dos deepfakes
Desde 2016, testemunhamos o avanço do compartilhamento de fake news nas redes sociais, com peças produzidas com auxílio de inteligência artificial. Muitos são conteúdos falsos que disseminam crenças políticas, utilizando trechos de vídeos reais tirados do contexto ou inteiramente manipulados – os perigosos deepfakes. Os deepfakes são criados quando a IA mescla, combina, substitui ou sobreposiciona áudios e imagens, resultando na criação de arquivos falsificados nos quais pessoas são inseridas em cenários diversos, proferindo palavras nunca pronunciadas por elas ou adotando comportamentos que nunca tomaram.
Na última década, responsáveis pelas plataformas, agentes dos diferentes estados nacionais e especialistas de diversas áreas têm se engajado no debate sobre as medidas cabíveis para conter a difusão desse tipo de conteúdo falso.
Para o professor Rodrigo Ratier, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, é imperativo abordar o tema com uma visão crítica. O docente, que é um dos fundadores do Vaza, Falsiane, curso on-line contra desinformação incubado pela ONG Repórter Brasil e que recebeu financiamento da própria Meta, se preocupa com a camada de complexidade trazida pela IA, “especialmente na análise de conteúdos audiovisuais, tornando difícil discernir a veracidade de informações”.
“Com o avanço da inteligência artificial, fica muito difícil dizer se um conteúdo é verdadeiro ou se foi distorcido, fraudado. Essa percepção com recurso direto ao vídeo e ao áudio tende a ser cada vez mais impressionante”, afirma o professor.
Apesar das novidades técnicas envolvendo a criação de vídeos na internet, a natureza das peças de propaganda que viralizam notícias falsas permanece similar. De acordo com o docente, os vídeos contendo fake news são construídos de maneira sensacionalista, utilizando adjetivos fortes e prometendo revelações chocantes. Por isso, o especialista defende que é crucial que o público aprenda a reconhecer esses padrões para desenvolver “um ceticismo saudável” diante de tais conteúdos.
“Todo esse tipo de conteúdo, tenha o suporte que tiver, texto, áudio, vídeo, deve vir com um alerta para a gente já ficar com o ceticismo mais aflorado”, afirma ele.
Como combater as fake news?
Ainda que vídeos falsos como o que sugere o confisco das poupanças ou um dos mais recentes – que envolveu grupos antivacina – continuem se espalhando, na opinião do professor e psicanalista Christian Dunker, do Instituto de Psicologia (IP) da USP, é possível enxergar uma possível mudança na percepção coletiva em relação à quantidade de informações e à manipulação presente na era digital.
De acordo com ele, desde as eleições de 2016, nos EUA – momento que marcou a popularização do termo fake news –, e no Brasil, a recomendação de boas práticas e discussões sobre a manipulação da informação digital tem aumentado, indicando uma formação de consciência mais crítica.
“É possível que a cultura esteja formando um pouco mais de consciência, de alerta, de advertência para o universo de fake news e reprodução automática de matérias especulativas ou sem fundamento. É uma espécie de segundo round desse confronto”, defende o especialista.
Ao abordar estratégias para combater a desinformação, o psicanalista também recomenda a verificação da origem das informações, pontuando a necessidade de uma checagem “que flutue entre o que é a palavra institucional, a de especialistas ou de um veículo e a palavra das comunidades”.
Ou seja, para Dunker, estamos enfrentando desafios relacionados à confiança na informação, onde a força do testemunho e o pacto de confiança são fundamentais. “E para combater isso, desenvolvemos antídotos, como denunciar fake news, apresentar fatos verídicos e verificar a origem das informações”, afirma.
Neste contexto, o psicanalista argumenta que precisamos ir além, por exemplo, trabalhando com lideranças comunitárias. Ele cita o caso do Padre Júlio Lancellotti que, em São Paulo, representa uma outra forma de autoridade baseada em ações concretas e conexão com as comunidades, “diferente da tradicional autoridade institucional”, e também é alvo constante das fake news.
“Examine seus afetos!”
Quando questionado sobre o papel das plataformas na disseminação da desinformação, Rodrigo Ratier reforça a necessidade de uma regulação mais madura e eficaz. Ele ressalta a importância de monitoramento ativo, sanções graduais para quem divulga desinformação e programas de educação midiática transparentes e efetivos.
“A regulação é o principal instrumento e ela passa por um monitoramento ativo e de qualidade. Perfis que pisam na bola o tempo inteiro recebem advertência, depois são suspensos e depois são banidos. Não vejo alternativa a essa gradualidade”, diz o docente.
Ainda assim, ele ressalta que não é possível resolver um problema sistêmico com uma solução tecnológica. Por isso, o especialista considera a importância da educação midiática para que possamos desenvolver competências críticas diante das informações recebidas.
“Não existe bala de prata, uma solução única para conviver com esse problema. A regulação das plataformas é a medida mais urgente, mas não a única”, conclui Ratier.
Sobre nossa dificuldade de dialogar com as diferentes perspectivas que, muitas vezes, constituem o cerne do compartilhamento viral de notícias falsas, o psicanalista Christian Dunker sugere uma “dieta onívora” de informações, que inclua variedades de opiniões e gêneros de produção de mensagens. Ele também postula que, enquanto cidadãos, precisamos “respirar e examinar os nossos afetos”, principalmente o ódio associado à propagação de fake news.
Para finalizar, o psicanalista sugere quatro recomendações que podem nos ajudar, ainda que individualmente, para não nos tornarmos vítimas do avanço das fake news:
- examine seus afetos,
- respire quando perceber ódio,
- busque personalizar informações,
- questione, pesquise, investigue.
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