Tecnologia pode mitigar epidemia de transtornos mentais

Por Arthur Caye, supervisor do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP; Felipe Moretti, pesquisador do Laboratório de Psicopatologia e Terapêutica Psiquiátrica (LIM/23) da USP; e André Mascarenhas, jornalista

 30/09/2024 - Publicado há 2 meses
Arthur Caye – Foto: Arquivo pessoal
Felipe Moretti – Foto: Arquivo pessoal
André Mascarenhas – Foto: Arquivo pessoal
Nunca os brasileiros sofreram tanto com transtornos mentais. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil lidera os índices globais de ansiedade, e relatórios recentes colocaram o País no topo do ranking das nações com os piores indicadores nessa área. Além disso, há aumento significativo nos casos de suicídio, posicionando-nos entre os países com as piores taxas na América Latina.

Em contraste, apesar da existência de tratamentos eficazes para a maioria dos transtornos, a alta demanda associada à falta de treinamento adequado oferecido a profissionais de saúde tornam a busca por soluções escaláveis para o problema um grande desafio. Pesquisa recente do Ministério da Saúde apontou que oito em cada dez brasileiros com quadro de depressão não recebem tratamento. Nesse cenário, soluções digitais surgem como uma possível saída para o problema. Ferramentas inovadoras e de baixo custo podem auxiliar no diagnóstico, tratamento e acompanhamento de uma variedade de transtornos mentais. Veja, como exemplo, reportagem no Jornal da USP, sobre o aplicativo Conemo – que reduziu em 50% sintomas de depressão leve em pacientes.

Hoje temos uma série de ferramentas digitais inovadoras, eficazes e de baixo custo, que podem ajudar em diversos quadros ligados à saúde mental, como depressão, ansiedade, obesidade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), dor crônica, estresse, entre outros. Desde triagens diagnósticas até suporte psicológico remoto, essas tecnologias podem desempenhar um papel crucial na identificação precoce de problemas de saúde mental e na promoção de estratégias de crescimento pessoal.

Outro exemplo que vale ser citado é a plataforma Jornada de Autoconhecimento, uma iniciativa do Instituto D’OR de Pesquisa e Ensino que, como o nome diz, oferece testes psicológicos on-line e atividades autoguiadas gratuitas para facilitar o contato dos usuários consigo mesmos. A ferramenta entrega resultados personalizados que visam auxiliar no cuidado com a saúde mental, reduzindo a pressão sobre o sistema público de saúde. No SUS, por exemplo, nove em cada dez cidades têm menos de um psicólogo por mil habitantes. É uma proporção baixíssima, que só pode ser atendida se tivermos ferramentas digitais que estejam à altura dos problemas.

Há, porém, desafios. Pesquisa recente com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fapesp revela que um dos principais desafios destas tecnologias é o engajamento dos usuários. A conclusão é corroborada por outros estudos, que apontam altas taxas de desistência após curtos períodos de uso, ressaltando a necessidade de abordagens inovadoras para melhorar a adesão. A adoção de modelos híbridos que mesclem o on-line ao presencial, interfaces mais intuitivas e personalização dos materiais utilizados são estratégias essenciais para aumentar a eficácia dessas ferramentas.

Além disso, vale destacar que é sempre importante certificar-se que as ferramentas tecnológicas tenham sido testadas clinicamente. Pois muitos aplicativos ou soluções digitais acabam entrando no mercado sem nenhuma evidência científica.

Tecnologia no SUS

Apesar dos avanços significativos no desenvolvimento de ferramentas digitais em saúde mental globalmente, o Brasil ainda engatinha nesse campo. No entanto, há iniciativas para adaptar e implementar essas tecnologias ao Sistema Único de Saúde (SUS), visando ampliar o acesso e melhorar a eficácia dos tratamentos.

A transferência de parte dos cuidados com a saúde mental para interfaces tecnológicas já é uma tendência global. O objetivo é ofertar intervenções mais especializadas, em locais onde há menos profissionais treinados e um maior número de pessoas em necessidade de atendimento, aumentando-se a custo-efetividade das soluções. Esse é o estado da arte atualmente, e acreditamos que possivelmente estão acontecendo os maiores avanços em termos de ampliação do acesso.

Nesse contexto, intervenções autoguiadas (em que não há intervenção de profissionais de saúde), podem ser eficazes para casos menos graves, possibilitando que profissionais treinados possam estar disponíveis para atender situações de maior grau de complexidade, inclusive no sistema público de saúde.

Enquanto as estratégias autoguiadas são praticamente 100% escaláveis a um custo quase nulo, as terapias digitais com participação de terapeutas demandam um volume de recursos maior. Ao mesmo tempo, a utilização de tecnologia permite que o custo-efetividade dos profissionais de saúde aumente significativamente. Ou seja, o mesmo profissional consegue dar conta de cinco a dez vezes mais pacientes.

Em casos mais graves ou com complicações, esse tipo de intervenção deve ser evitado. Mas, quando se fala de grandes populações e das altas taxas de transtornos metais que encontramos nas unidades básicas de saúde, por exemplo, para uma porcentagem desses pacientes, a tecnologia pode ser uma resposta.

O resultado esperado é a maior resolução de casos, redução das filas e aumento do acesso.

Papel da iniciativa privada

No entanto, o desafio segue sendo a implementação de novas tecnologias nas rotinas do SUS, já que se trata de tecnologia ainda muito recente e que não está devidamente inserida no aparato técnico do sistema de saúde como um todo.

Nesse cenário, a iniciativa privada pode desempenhar um papel crucial no desenvolvimento e na implementação dessas soluções. Startups e empresas inovadoras têm o potencial de impulsionar o avanço tecnológico e científico nessa área, contribuindo para a eficácia e a escalabilidade das ferramentas de saúde mental.

É evidente que o financiamento público traz uma série de vantagens, como a garantia de que esses serviços sejam pensados para o sistema público de saúde. Mas sabemos que existem limitações, burocracias e dificuldades em trabalhar com esses recursos, e que muitas vezes a iniciativa privada pode contribuir providenciando um aporte técnico, tecnológico e científico interessante e com maior agilidade.

Outro aspecto que pode ser destacado é a tensão entre a demanda, natural na iniciativa privada, de monetizar tais iniciativas versus a necessidade de se comprovar, cientificamente, sua eficácia. Nesse sentido, o CISM tem atuado com as startups no sentido de ajudá-las a providenciar evidências científicas que comprovem a eficácia e a viabilidade econômica para que essas soluções possam ser aplicadas em grande escala, tanto na saúde pública quanto na privada, no Brasil e no exterior.

Rede sociais

Embora cada vez mais vistas como vilãs, as redes sociais também podem ser usadas para desmistificar problemas de saúde mental, criar espaços seguros e promover estratégias de cuidado para jovens. Nesse cenário, a educação para seu uso responsável é fundamental.

CEO voluntária da ASEc+, uma Organização da Sociedade Civil (OSC) que trabalha com promoção de saúde mental desde 2004, com foco em crianças e jovens, Juliana Fleury destaca que o uso excessivo de tecnologias e redes sociais por esse público tem sido diretamente associado a um aumento nos quadros de estresse, ansiedade e depressão.

Em que pese as preocupações com cyberbullying, discursos de ódio, disseminação de fake news, violências, entre outros desafios tão comuns no mundo virtual, “a familiaridade dos jovens com essas ferramentas da saúde e comunicação, e na criação de espaços seguros, democratizando o acesso e em contraponto fomentando práticas de cuidado”, ressalta ela.

O Movimento Saber Lidar Jovem, lançado pela ASEc+ em 2021, no contexto da pandemia, faz uso dessas plataformas para promover a saúde mental com, para e de jovem para jovem. Em 2023, o movimento criou a Comunidade Jovens Embaixadores em Saúde Mental – iniciativa que conta com três verticais – informar, formar e transformar, explica Fleury: “Em sua frente ‘informar’, por exemplo, os jovens fazem uso das redes sociais para produzir conteúdos para desmistificar a temática e promover estratégias de cuidado para a saúde mental e emocional. Já na frente ‘formar’, a comunidade reúne pessoas de todas as regiões do Brasil, conectando juventudes diversas e potentes, que se fortalecem coletivamente, capacitam-se em metodologias qualificadas de promoção da saúde mental e promovem a criação de espaços de relacionamentos saudáveis tanto em ambientes virtuais quanto presenciais. A comunidade, por exemplo, se reúne através do Discord, utilizando a própria plataforma para promover a saúde mental e conectar esses jovens de todo o Brasil”.

A terceira vertical, “transformar”, desenvolve pesquisa científica para avaliar o impacto da educação entre pares na promoção da saúde mental para jovens.

Nesse sentido, as novas tecnologias podem auxiliar a trazer estratégias positivas de cuidado e criar espaços seguros e saudáveis, sem julgamento, que respeitam a diversidade e pluralidade de ideias. “Ao ressignificar esses espaços, podemos democratizar também o acesso à temática da saúde mental e proporcionar acolhimento e descoberta de estratégias de cuidado para e com as juventudes, na perspectiva da construção de uma geração emocionalmente saudável”, diz Fleury. “Ou seja, há um lado positivo das redes sociais.”

O caminho, por exemplo, pode ser o estabelecido por parcerias com as empresas proprietárias dessas plataformas. No passado, a ASEc+ já teve parcerias com as empresas Instagram e Facebook. “Entendo que tem aí uma demanda por uma mudança de mindset dessa indústria de modo a fazer uso das tecnologias para educar pais, educadores e as próprias crianças, colocando limites para um uso saudável”, afirma Fleury. “Se não, fica um cabo de guerra entre todos, falando mal das redes sociais e do uso da tecnologia em contrapartida ao uso positivo dela. Então, o que realmente é necessário é haver um advocacy cada vez maior para que isso esteja não só contemplado na legislação, estipulando limites éticos para seus usos, como, de alguma forma, criar oportunidades de fomentar educação entre pares, de jovem para jovem.”

Mais informações pelo e-mail felipe.moretti82@gmail.com, com o pesquisador Felipe Moretti.

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