Restauração do teto salarial

José de Souza Martins é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 26/06/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 28/06/2018 as 10:43

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José de Souza Martins – Foto: Samuel Iavelberg / Fapesp via Agência Fapesp

Há poucos dias, encontrei-me, na rua dos bancos e nos dias da greve, com uma funcionária do meu Departamento. Antes que eu lhe dissesse boa tarde, interpelou-me sobre o privilégio de ter sido eu beneficiado com o aumento de meu salário para 30 mil reais por mês. Na verdade, apesar de ter contribuído durante 45 anos para a Previdência Social, 38 anos na USP, dificilmente serei beneficiado pela restauração do teto de referência: minha carreira foi, estritamente, de professor e de pesquisador. Minha vida transcorreu na sala de aula e no trabalho de campo, o que resultou em 37 livros, centenas de artigos e um dos mais altos índices de citação de pesquisadores brasileiros de Ciências Humanas. Nunca ocupei cargos de chefia e de direção, que são os que, para uma minoria, acrescentam adicionais aos proventos e situam seus beneficiários no âmbito do teto.

Depois de ter sido condenado a “aumentos” de zero por cento, vejo-me agora condenado por um privilégio que não tenho. Coisas da cultura da militância e da partidarização sem politização. Na USP dividida por uma ideologia pseudoproletária, de quem proletário não é nem nunca será, a justíssima correção do teto salarial dos servidores públicos do Estado de São Paulo acrescenta um ingrediente à alienação dos que, em nossa Universidade, deveriam ter como primado de suas preocupações o ensino e a formação qualificada das novas gerações.

Tentei explicar à minha conhecida que também ela será beneficiada pela correção do teto salarial dos servidores públicos e que, tanto ela quanto eu, provavelmente, nunca chegaremos lá. São proporcionalmente poucos, tanto professores quanto funcionários, que chegarão um dia a alcançar o novo teto, agora fixado. O teto é apenas uma possibilidade.

Expliquei-lhe, também, que se tratava da correção de uma iniquidade e de uma ilegalidade. Pensando nas universidades federais, seu teto é o dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Isto é, para ficar no caso dos professores, até outro dia, um professor da Universidade de S. Paulo valia menos do que um professor de universidade federal, embora possa ter contribuído decisivamente para formá-lo. Portanto, embora a Constituição Federal diga que, como brasileiros, somos todos iguais perante a lei, fora de São Paulo muitos eram mais iguais que seus colegas paulistas (e, olhem, que George Orwell não era paulista, embora aqui esteja em andamento a mesma revolução dos bichos que ele descreve, pois já não sabemos quem é porco e quem é gente).

Com a ampliação do elenco de universidades federais, até mesmo no subúrbio de Sã Paulo, bastava um docente da USP, demitir-se e transferir-se para o lado de lá do rio, para ter o teto de referência de seu salário subitamente aumentado. Sem contar que com mais possibilidade de chegar até ele, em universidades de carreira mais simples.

Depois de ter sido condenado a “aumentos” de zero por cento, vejo-me agora condenado por um privilégio que não tenho

A fixação do teto com base nos vencimentos do governador era uma pilhagem. Sua excelência e respectiva família têm cama, mesa e transporte de graça. Não têm carências de mortal comum. “Salário” de governador é um salário manipulado. Nenhum governante é besta de aumentar o próprio salário: ganharia uns bons reais a mais, mas perderia votos, que são o capital político dos políticos, não se reelegeria nem elegeria os seus protegidos. Fomos condenados por décadas a pagar o tributo iníquo de proteger os interesses de quem nos governa, governe bem ou mal.

Reajustar o teto não foi nenhum favor. Quando a Universidade de São Paulo foi fundada, em 1934, o governo de São Paulo estabeleceu como salário de referência dos docentes os mesmos vencimentos dos desembargadores. Estamos, portanto, voltando à proposta original. O que quer dizer que fomos saqueados desde que essa referência foi abandonada. Sem ela, a USP nunca teria sido a grande Universidade que é. Teria sido impossível recrutar os docentes da Missão Européia que a criaram. Nunca jovens e promissores cientistas franceses, italianos, alemães, teriam aceito vir para São Paulo em troca de salário de “barnabé”.

Júlio de Mesquita Filho, o grande inventor e criador da USP, esquecido e injustiçado pelo bocatortismo de uma esquerda difusa, que não sabe o que é direita para dela se diferençar, estabeleceu alguns parâmetros profundamente democráticos para a criação de nossa Universidade. Que fosse pública, laica e gratuita; que os docentes fossem contratados em regime de tempo integral à docência e à pesquisa, para que a USP nunca fosse para eles uma “boquinha” diletante de quem tem outros meios de vida; que não fosse apenas uma escola mas um centro de investigação científica original; que tivesse em sua Faculdade de Filosofia a sua alma; que os salários de referência fossem os dos desembargadores.

Paulo Duarte, um dos coadjuvantes de Júlio de Mesquita Filho na criação da USP, foi quem propôs que nossa Universidade tivesse uma Cidade Universitária, na antiga e abandonada Fazenda Butantã. Fazenda que pertencera originalmente, no século XVI, ao minerador Afonso Sardinha, descobridor do ouro do Jaraguá, a primeira mina de ouro do Brasil. Recebeu ele as terras do Butantã em sesmaria. Legou-as ao filho, que se tornou padre jesuíta. Por essa via, tornaram-se as terras patrimônio da Companhia de Jesus. Quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Reino e de suas colônias, no século XVIII, tornaram-se patrimônio do governo da Capitania.

Nelas, ao pé do morro do Butantã, ao lado do que é hoje a entrada principal da Universidade e ao lado da Faculdade de Educação e da Escola de Educação Física, travaram-se batalhas da Revolução Liberal, de julho de 1842, contra o Partido Conservador, entre as tropas de civis do futuro Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, que por aqueles dias se casou com a Marquesa de Santos, em Sorocaba, e do Padre Diogo Antônio Feijó, ex-Regente do Império, contra as tropas do futuro Duque de Caixas. Sete mortos por ali tombaram.

Numa tarde da época da criação da USP, o governador de São Paulo, Armando de Salles Oliveira, Júlio de Mesquita Filho, Paulo Duarte e alguns outros acompanhantes, entraram no que é hoje a Cidade Universitária pelo portão que, do Instituto Butantã, dá para o atual Prédio de Geografia e História. Sentaram-se por ali e ficaram imaginando a USP: ali poderia ficar a Biologia, ali a Matemática, ali a Física, ali a Filosofia, ali a Sociologia… Sonhavam. A USP nasceu de um dos mais belos sonhos da história da cultura no Brasil. Em poucos dias, a Universidade foi criada, o professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica foi enviado à Europa para recrutar os primeiros professores. “Nada de fascistas nem de clericais”, recomendou-lhe Júlio de Mesquita Filho.

Para a USP, a devolução do teto salarial apenas nos devolve o que já nos pertencia. Falta apenas que professores, alunos, funcionários e dirigentes nos devolvam o espírito da USP.

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