Recicle-me, consumidor! Enclíticos nas latas de Coca-Cola

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH/USP

 30/08/2024 - Publicado há 1 mês     Atualizado: 03/09/2024 às 8:30
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Se você se deparou recentemente com uma latinha de Coca-Cola – ou de outros refrigerantes produzidos pela empresa – deve ter notado uma frase peculiar: “Recicle-me!” O enunciado chama a atenção não só pela mensagem ecológica, ou pelo diálogo simulado entre a lata e seu consumidor, mas também pela construção gramatical: um caso de ênclise, ou seja, aquela colocação do pronome oblíquo átono (ou, na verdade, um semiátono no português do Brasil) posposto ao verbo.

Um possível estranhamento diante dessa escolha não seria injustificável, pois essa colocação pronominal é um tanto inusitada no português brasileiro falado atual, quiçá até no escrito. Assumindo tal premissa, fica a pergunta: a colocação dos clíticos (outro nome para tais pronomes) segue como tema de debate no mundo lusófono?

Pronomes de aquém e de além-mar

Segundo a tradição gramatical, a colocação pronominal enclítica é um dos usos da norma-padrão, embora seja menos usada no cotidiano brasileiro. Normalmente, em situações informais (e mesmo em certos contextos de formalidade), um falante de português brasileiro optaria pela próclise (“Me recicle”), ou mesmo pela ênfase direta sem pronomes (“Recicle”, que figura nas latas de refrigerantes como Sukita e Guaraná Antarctica, da concorrente Ambev).

A ênclise (pronome posposto) é mais usual em variedades portuguesas, o que se deve a um fator fônico, a saber, a forma como o pronome átono, “fraco” ao ser pronunciado, apoia-se em outro vocábulo para formar uma unidade: na fala portuguesa, tais pronomes se amparam no termo anterior (como em “ajuda-me”), não sendo usados, portanto, para iniciar oração.

É esse mesmo princípio que está na base da orientação normativista para “não começar a frase com um pronome átono”: se a regularidade da pronúncia lusitana é que o pronome se apoie no termo anterior, o mesmo pronome não poderia estar no início de uma frase – afinal, nesse caso, não haveria o tal “termo anterior” em que ele se apoiaria. Nessa variedade, portanto, esse é um uso corriqueiro, tal como, na brasileira, é corriqueiro dizer “me empresta”. Decretar, porém, que o uso europeu é “mais correto” permite entrever ainda traços colonialistas na construção de uma suposta “norma culta” – ser “culto” seria simplesmente imitar a fala comum portuguesa.

Por efeito disso, a construção enclítica cria, no contexto brasileiro, uma noção de formalidade e, com um olhar mais ingênuo, talvez soe quase poética, como algo estilisticamente trabalhado. É a problematização presente em Pronominais, poema em que o modernista Oswald de Andrade eterniza a altiva resposta brasileira à questão, negando “a gramática/ Do professor e do aluno/ E do mulato sabido”: “Deixa disso, camarada/ Me dá um cigarro”.

Decalque sintático: quando a tradução é literal

Na língua de Shakespeare, a colocação pronominal é mais rígida. Frases imperativas frequentemente utilizam a forma direta, com o pronome no final: “Recycle me”. Tendo isso em mente, surge uma hipótese: será que a escolha dessa frase nas latas de Coca-Cola contraria a colocação brasileira mais comum por reflexo direto dessa estrutura inglesa?

Pode ser. A tradução de “Recycle me” para “Recicle-me” mantém a ordem dos elementos e transmite a mesma clareza e a ideia de urgência – embora, em português brasileiro, soasse mais natural algo como “Me recicle” ou até “Por favor, recicle”. Seria, assim, um caso de decalque sintático.

Um decalque sintático ocorre quando uma estrutura de uma língua é traduzida literalmente para outra, mantendo a mesma ordem e função das palavras. No caso de “Recycle me” para “Recicle-me,” vemos uma correspondência direta, possivelmente impulsionada também pelo uso do imperativo na forma subjuntiva – que favorece a formalidade da construção enclítica.

Esse fenômeno é bastante comum em traduções rápidas ou em contextos em que a mensagem precisa ser direta e impactante, sem muitas preocupações com nuances culturais ou estilísticas. A Coca-Cola, sendo uma marca global, pode ter optado por essa solução prática e tida como eficiente.

Influências na lata

No fim das contas, “Recicle-me” nas latas de Coca-Cola e outros refrigerantes é um exemplo de como a linguagem pode ser moldada por influências interculturais. Vejam o exemplo do “testar positivo” já discutido neste jornal (https://jornal.usp.br/artigos/quem-testa-positivo-foi-contaminado-por-estrangeirismo/).

A colocação pronominal enclítica, por ser menos comum em português brasileiro contemporâneo, acaba trazendo uma formalidade que não combina com o popular refrigerante, apesar da clareza que serve ao propósito da mensagem.

Seja você um linguista curioso, seja apenas alguém preocupado com o meio ambiente, na próxima vez que terminar sua bebida, talvez veja essa frase com novos olhos. E, claro, não se esqueça de reciclar!


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