Afora o fino e ácido humor do canal, o esquete mostra uma dificuldade inerente ao processo científico quando a tarefa é estudar a relação da alimentação com a saúde.
A dificuldade começa pelo fato de que as pessoas não consomem alimentos um a um (e, menos ainda, nutrientes), mas sim combinações de alimentos. E essas combinações dependem fortemente da cultura alimentar a que estamos ligados. Por exemplo, entre anglo-saxões, é relativamente comum que ovos (dois ou mais) sejam consumidos diariamente na refeição da manhã junto com fatias fritas de bacon, enquanto, entre nós, é mais comum que o ovo (neste caso, frequentemente uma unidade) seja a mistura do almoço, junto com um prato de feijão com arroz, substituindo provavelmente a carne.
Assim, é bastante provável que estudos populacionais sobre o “efeito do ovo” na saúde cheguem a diferentes conclusões dependendo do país ou da cultura alimentar onde tenham sido realizados. Um estudo no Brasil que compare o risco de doenças entre pessoas com consumo baixo ou alto de ovos estará provavelmente investigando o efeito sobre a saúde do consumo de ovos mais o efeito do consumo de feijão com arroz mais o efeito de comer menos carne.
O mesmo estudo, se realizado nos Estados Unidos, estaria provavelmente investigando o efeito de comer ovos mais o efeito de comer bacon e talvez o efeito de não comer frutas na refeição da manhã. De fato, nenhum desses estudos estaria investigando o “efeito do ovo” sobre a saúde, mas sim o efeito de diferentes combinações de alimentos, ou, para ser mais preciso, o efeito de diferentes padrões alimentares.
Em teoria, há recursos analíticos capazes de avaliar o efeito de uma variável sobre outra independente da ação de terceiras variáveis, mas esses recursos perdem eficácia quando as variáveis mantêm uma associação muito forte entre si, como é o caso dos alimentos que integram um determinado padrão alimentar. Também em teoria, seria possível realizar um experimento abstraindo a existência de padrões alimentares. Neste experimento, um grupo de participantes consumiria ovos por um razoável período de tempo e outro grupo não, sendo idênticos todos os demais alimentos da dieta dos dois grupos. O problema aqui, além dos aspectos éticos, seria a própria utilidade do conhecimento gerado, pois seus resultados não se aplicariam ao consumo de ovos como ele de fato ocorre na população.
Por isso que a epidemiologia nutricional, ou a disciplina científica que estuda a relação entre alimentação e saúde, tem se voltado cada vez mais para estudos que investigam o efeito de padrões alimentares sobre o risco de doenças. E, neste caso, os resultados dos estudos não são nada controversos.
Por exemplo, vários estudos que acompanharam por muitos anos milhares de pessoas da região do Mediterrâneo demonstraram que aquelas que seguiam com maior fidelidade o padrão alimentar tradicional da região – rico em grãos integrais, verduras e legumes, azeite de oliva, alho e cebola, frutas, iogurte e queijos, denominado ‘dieta mediterrânea’ – apresentavam menor risco de doenças do coração e de outras doenças crônicas, além de envelhecerem de modo mais saudável. Esses mesmos benefícios para a saúde decorrentes da adoção de padrões tradicionais de alimentação têm sido demonstrados por estudos realizados em outras regiões do mundo, como no Japão e na Coreia do Sul.
Por outro lado, estudos realizados nos Estados Unidos e na Inglaterra têm mostrado de modo inequívoco que a adoção do padrão alimentar mal denominado “dieta ocidental” – composto por produtos que até recentemente não seriam reconhecidos como comida mas que são frequentemente servidos nas redes de “comida rápida” e expostos nas prateleiras dos corredores centrais de modernos supermercados – aumenta o risco de muitas doenças crônicas, incluindo obesidade, diabete, hipertensão, doenças do coração, câncer, depressão, e a mortalidade precoce por todas essas doenças.
E, no Brasil, quais seriam os padrões alimentares que protegeriam as pessoas de doenças crônicas e que promoveriam vidas mais longas e saudáveis? E quais seriam os padrões que operariam em sentido inverso?
Alguns estudos realizados em nosso meio sugerem que o padrão tradicional de alimentação baseado no feijão com arroz protege as pessoas contra a obesidade e que padrões que lembram a “dieta ocidental” aumentam o risco de diabete. Mas, por conta da heterogeneidade que caracteriza a alimentação nas várias regiões brasileiras e do largo espectro de doenças crônicas relacionadas ao que comemos, ainda não temos respostas completas sobre o que seriam padrões alimentares saudáveis e não saudáveis no Brasil.
Para tanto seria preciso acompanhar dezenas de milhares de brasileiros de todas as regiões do País, por vários anos, avaliando periodicamente sua alimentação e documentando todas as mudanças relevantes nas suas condições de saúde.
É exatamente isso que o Estudo NutriNet Brasil vem fazendo desde 26 de janeiro de 2020, sob a coordenação do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e contando com a colaboração de pesquisadores da FMUSP, Incor, Inca, Fiocruz, Unifesp, UFRGS, UFPEL, UFBA e UFMG.
O NutriNet Brasil já conta com mais de 75 mil participantes, mas serão necessários 200 mil. Para ser um participante do estudo basta residir no País, ter mais de 18 anos, possuir um celular (ou computador) com acesso à internet, fazer um cadastro na plataforma www.nutrinetbrasil.fsp.usp.br e concordar em responder, a cada três meses, breves questionários sobre sua alimentação e sobre sua saúde. Participando do estudo, você estará ajudando a ciência e a Saúde Pública no Brasil (e, quem sabe, até ajudando a esclarecer de vez o famoso problema do ovo!).
Este artigo faz parte da campanha #CientistaTrabalhando. Uma versão resumida foi publicada no dia 31/07, no blog Cozinha Bruta, da Folha de S. Paulo, e está disponível aqui: https://cozinhabruta.blogfolha.uol.com.br/2020/07/31/ovo-faz-mal/
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