Michael Burawoy: humanismo e compromisso com os estudantes

Por Ruy Braga, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 06/02/2025 - Publicado há 1 mês
Michael Burawoy - Foto: Volodymyr Paniotto - Wikipedia
Ruy Braga – Foto: FFLCH

A notícia da morte de Michael Burawoy na segunda-feira, dia 3 de fevereiro, após um atropelamento com fuga nas proximidades de seu apartamento em Oakland, chocou a comunidade sociológica internacional. Professor recém-aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley, Michael foi por mais de quatro décadas um baluarte da sociologia crítica, além de um dos intelectuais marxistas mais destacados de sua geração. Ele foi um professor lendário, capaz de arrebatar os estudantes com seu inesgotável carisma. Seu curso de teoria sociológica em Berkeley exigia sempre os maiores anfiteatros da universidade, tamanha a competição para assistir suas aulas.

O compromisso de Michael com seus estudantes decorria de seu profundo humanismo. Como sociólogo, Michael transformou-se na principal referência do método do estudo de caso ampliado, desenvolvido por ele a partir da Escola Antropológica de Manchester, sua cidade natal. Durante suas pesquisas de campo que começaram ainda na década de 1960 numa mina de cobre em Zâmbia, continuando em uma empresa de motores em Chicago, nos anos 1970, em fábricas e siderúrgicas na Hungria, na década de 1980 e, finalmente, em uma fábrica de móveis modulares na antiga União Soviética, no início dos anos 1990, Michael aperfeiçoou a ferramenta teórico-metodológica que iria torná-lo mundialmente conhecido. Ao longo dessa trajetória, ele especializou-se em combinar a sociologia crítica com um marxismo heterodoxo que, além dos marxistas clássicos, alimentava-se de autores como Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, León Trotsky e Frantz Fanon, a fim de reconstruir a capacidade de intervenção prática do pensamento crítico, tanto dentro quanto fora da universidade.

Ao lado de seu melhor amigo, Erik Olin Wright, Michael engajou-se em um amplo projeto teórico de reconstrução do “marxismo sociológico” – definido como a teoria da reprodução contraditória das relações sociais capitalistas – cujo objetivo era resgatar a potência emancipatória da teoria marxista, desmantelada após o colapso do socialismo burocrático de Estado, partindo da produção crítica de dados empíricos. Esse programa teórico-político foi levado adiante por meio de duas grandes iniciativas: Erik Olin Wright engajou-se na construção do projeto das “utopias reais”, enquanto Michael desenvolveu sua proposta por uma “sociologia pública”.

Ambos levaram adiante a empreitada de “reconstruir o marxismo” convidando a comunidade sociológica para fazer parte de um amplo movimento social de transformação do capitalismo por meio do engajamento crítico com os diferentes públicos, acadêmicos e extra-acadêmicos, que compõem o mundo da sociologia. Erik e Michael foram presidentes da Associação Sociológica Americana (ASA) e Michael globalizou sua atuação tornando-se presidente da Associação Sociológica Internacional após uma campanha eleitoral em que visitou 44 países diferentes, debatendo com sociólogos do mundo todo a sociologia pública. Depois do fim de seu mandato, Michael retornou a Berkeley, onde assumiu a direção da associação dos docentes da universidade, defendendo, particularmente, a causa de professores-assistentes sem estabilidade que atuam em condições precárias no interior do sistema universitário público da Califórnia.

A atuação de Michael em defesa da greve dos assistentes de ensino da Califórnia em 2023 demonstrou uma vez mais seu compromisso político com um mundo social mais justo. Aliás, ao longo de sua vida, não foram poucos seus engajamentos ao lado das causas da emancipação humana: o movimento de libertação nacional de Zâmbia, a campanha contra o apartheid sul-africano, a luta feminista contra o assédio nas universidades, a campanha contra a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, a luta contra o genocídio do povo palestino na Faixa de Gaza, tema de seu último artigo. Na história da sociologia mundial, nunca alguém desenvolveu pesquisas de campo em tantos países diferentes, engajando-se politicamente em causas tão centrais para a humanidade.

E apesar de todo seu sucesso como um acadêmico de renome mundial, trabalhando por mais de quatro décadas em uma das mais prestigiadas universidades do mundo, Michael vivia em um apartamento modesto em sua amada Oakland, uma cidade portuária relativamente pobre com índices de violência social considerados alarmantes para os padrões estadunidenses e que viu nascer o Partido dos Panteras Negras pela Auto-Defesa. Ele nunca teve um carro e andava para cima e para baixo de bicicleta.

Michael cultivava relações pessoais como poucos. Todos aqueles que tiveram o privilégio e a felicidade de o conhecer, seja como professor, colega ou amigo, sabem que ele era simplesmente formidável. O mundo da sociologia lamenta essa morte trágica, violenta e sem sentido, exigindo das autoridades policiais de Oakland o rápido esclarecimento desse crime. No entanto, a grande família ampliada que ele cultivou ao longo da vida, celebra seu legado de conhecimento, empatia, generosidade, gentileza, paixão, sabedoria e solidariedade.

(Texto publicado originalmente no site da FFLCH-USP)

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