Defendendo Portinari contra a censura neoliberal

Por Rubens Russomanno Ricciardi, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP

 10/11/2023 - Publicado há 9 meses
Rubens Russomanno Ricciardi – Foto: Divulgação/FFCLRP
Estamos condenados à interpretação. A interpretação determina a essência humana – o modo como compreendemos e, assim, existimos no mundo. Esse mundo, que é o mundo da vida, para uma concepção mais fecunda, requer a dialética, além da hermenêutica. Como diz Ernildo Stein, “a dialética e a hermenêutica salvam a dignidade da filosofia” – ou seja, sem dialética nem hermenêutica nossas interpretações se tornam precárias. Portanto, há interpretações que são simplesmente equivocadas ou mesmo arbitrárias. Corroborando ainda Umberto Eco, “há limites para a interpretação”: o conhecimento não é um vale-tudo.

As piores interpretações são aquelas impostas pela ideologia: a deturpação do conhecimento e da política, quando, numa abstração enganosa da história, uma falsa autoridade, por meio de uma falsa consciência, procura assegurar aparelhos de poder. Na ideologia neoliberal, o relativismo cultural assume seu viés mais sectário com o identitarismo: das ciências da natureza às artes, tudo se submete às regras morais de uma identidade cultural. Um buraco negro, entretanto, é um fenômeno do cosmo, não da cultura, bem como também as artes não se reduzem a meros bens culturais.

Em princípio, todo identitário é um pelego neoliberal e a arte, em especial aquela de esquerda, torna-se alvo da sua censura: o identitário diz combater preconceitos, mas, de fato, promove o preconceito contrário à arte. Os terroristas de 8 de janeiro e os identitários acadêmicos, por meio de uma mesma censura neoliberal, querem sempre depredar as artes, física ou conceitualmente. Não só os vândalos que depredaram as obras nas sedes dos Três Poderes em Brasília (de artistas como Brecheret, Bulcão, Ceschiatti, Di Cavalcanti, Ebling, Eduardo, Giorgi, Krajcberg e Martinot), mas também parte da militância acadêmica já se revela antagônica à arte e igualmente reacionária –além disso, sem lastro numa pesquisa fundamentada nas lições da história nem na crítica da linguagem.

Candido Portinari é o depredado da vez. Outros já tentaram, sem sucesso, dizimar as dimensões monumentais da obra de Portinari. Annateresa Fabris, com a sua belíssima dissertação de mestrado – Portinari, pintor social (Escola de Comunicações e Artes da USP, 1977) –, já havia refutado os primeiros censores, evidenciando os seus erros crassos em história e filosofia das artes. Eis que os mesmos erros persistem, agora dilatados com preconceitos identitários neoliberais.

A pesquisa em artes não pode consistir da militância identitária ou baseada no achismo. Ao contrário do que reza o culturalismo na sua truculência, nem tudo é relativo, muito menos a verdade mora no coração privado de cada um – essa foi, aliás, uma das teses centrais de Hilton Japiassú.

Ignora-se, assim, com a interpretação identitária neoliberal, a condição universal das artes. A arte universal, por exemplo, de um Portinari, não representa um domínio cultural datado nem condenado à obsolescência, mas sim expressa as contradições e as confluências da existência humana como um todo. O universal não está em oposição ao regional, mas ao particular. Se a história relata o que ocorreu (nomeando pessoas que existiram em fatos concretos) e a poíesis (o processo inventivo de elaboração da linguagem – o ofício do artista autor da obra de arte), o que poderia ter ocorrido (em perfis de personagens como Dom Quixote, Hamlet ou Riobaldo e demais representações simbólicas), é por isso que, segundo Aristóteles, “a poíesis é mais filosófica e mais virtuosa do que a história: a poíesis tem a ver com o universal e a história com o individual particular”.

Os personagens de Portinari são os pobres do Brasil, símbolos da inquietude diante da miséria e da exploração, transformados em valores universais de luta e resistência.

A poíesis do artista autor, aquele fundador da história, não deve ser confundida com os assim ditos “resíduos arcaicos” (Sigmund Freud) ou com os “tipos originários (Archetypen) que remontam aos tempos pré-históricos do inconsciente coletivo” (Carl Jung), muito menos é resultado de uma “supraestrutura” político-social (Überbau, conceito de Karl Marx). Numa palavra, a invenção crítica de símbolos existenciais, por parte de um grande artista, jamais se reduz à condição biológica do ser humano nem se submete às instâncias ideológicas da cultura – estas, por sinal, invariavelmente opressoras.

O artista, na sua inteligência inventiva, é capaz não apenas de críticas contrárias à ideologia dominante, como também desenvolve novas propostas de linguagem com a exposição de um mundo pela obra, justamente por conta dos seus recursos poético-estilísticos. Portinari, um pintor experimental de brasilidades, sempre esteve do lado dos oprimidos, jamais dos opressores – tanto na sua vida como na sua obra. Portanto, é o pequeno mestre que se submete às ideologias da cultura – jamais um grande mestre como Portinari, cuja obra também não se confunde com uma suposta reprodução suspeita da natureza.

Na poíesis, temos a mímesis, a representação simbólico-inventiva em meio à elaboração dinâmica da linguagem, definida desde a Poética de Aristóteles. De modo precário, alguns traduzem mímesis por imitação, decorrendo daí o esquecimento da poíesis. No princípio poético da mímesis, a arte não imita nem meramente retrata a vida ou a natureza. A grande arte, na sua autonomia dialética, expõe um mundo próprio com o seu potencial de transformação das condições existenciais por conta ainda da catarse (kátharsis) – quando a obra de arte nos faz vivenciar uma condição extrema da existência. O sofrimento na obra também nos faz pensar – daí a catarse enquanto exposição mais derradeira do páthos (toda possibilidade de emoção humana: prazer, paixão, afeto ou sofrimento) na mímesis.

Além da mímesis, importa também à poíesis o seu potencial de distanciamento crítico: a resistência das artes contra os domínios ideológicos. O referido conceito de distanciamento crítico remonta ao efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt) em Bertolt Brecht. Para combater a alienação, no processo em que a arte se distancia criticamente das ideologias da cultura, Brecht inventou uma técnica na sua poética teatral priorizando a capacidade de discernimento e não o envolvimento kitsch-sentimentalista com os personagens, despertando o espanto e o desejo pelo aprendizado não meramente escolar, gerando novas perspectivas de reconhecimento das contradições na realidade e ainda historicizando toda norma ideológica, em especial a moral burguesa.

Não obstante, as obras de arte adotam dois princípios poético-inventivos:

1 – na configuração da linguagem, a poíesis se volta à forma-estrutura-conteúdo no tratamento experimental dos seus próprios materiais – princípio que ocorre mais na música instrumental e nas artes visuais abstratas que em outras artes;

2 – em maior número, a poíesis incorpora os princípios da mímesis e do distanciamento crítico, quando o mundo da obra, “por analogia ou ironia” (Octavio Paz), interage ainda mais radicalmente com o mundo da vida.

Até aqui, só falamos do segundo princípio, o único que tem a ver com a poética de Portinari, por conta justamente da sua mímesis e do seu distanciamento crítico – ainda que mais por analogia e menos por ironia.

Um culturalista tem dificuldade em compreender que Brecht (um bávaro, de mãe protestante) e Portinari (um caipira do interior de São Paulo, de mãe católica) constituem um mesmo mundo artístico, uma mesma utopia de transformação. A transformação do mundo é a transformação das circunstâncias da vida. Nesse contexto, as artes desempenham um papel extraordinário. A arte movimenta a humanidade sofredora, cujos destinos movimentam a arte, sendo o artista sensível à injustiça e aos engodos ideológicos. Brecht define que “a junção de palavras bonitas não é arte. Como a arte pode mover os seres humanos, se ela mesma não for movida pelos destinos dos seres humanos? Se eu mesmo me endureço diante do sofrimento dos seres humanos, como posso entregar-lhes o coração por meio de minha escritura?”. Como em poucos pintores na história das artes, Portinari é um partidário dos mais vulneráveis. Ele se encontra solidário e integrado ao sofrimento humano. Tal como nos ensinam os clássicos, a história da humanidade é a história da luta de classes, a qual instiga a poética artística de ambos, tanto de Portinari como de Brecht.

Portinari foi ainda o pintor que mais retratou negros. O negro, nos quadros de Portinari, representa a virtude e a dignidade do proletário no seu potencial mais revolucionário. É com a força e a beleza do negro que Portinari luta contra a injustiça e a exploração. Não foi jamais um pintor oficial, muito menos funcionário público do Estado Novo. Foi sempre um artista independente e crítico, militante do PCB (1922-1992) – um partido que exerceu grande influência em todas as artes brasileiras e em muitos dos seus principais artistas ao longo do século 20.

Todavia, como a luta de classes e a exploração são temas estranhos à alienação identitária neoliberal, só lhe resta a mesquinhez de uma censura que pretende destruir todo e qualquer potencial revolucionário e de transformação. Ainda por conta da apatia neoliberal, os identitários têm dificuldade em compreender metáforas, ironias, demais recursos expressivos e abstrações. Perdeu-se o sentido conotativo e só lhes resta a interpretação denotativa dos fenômenos. Não compreendem e nem querem compreender o que de fato é a crítica contrária à ideologia dominante, nem muito menos se aproximam das reais dimensões de uma poíesis enquanto linguagem artística.

Com os seus ideologicismos que se assemelham à moral de classe média na sua incapacidade de emancipação, ignora-se que as lutas das minorias só se fortalecem no contexto da luta de classes, enquanto crítica ao poder dominante e à vontade de sistema na acumulação do capital. Denunciar má-fé ou descobrir artimanhas em toda expressão diferenciada do seu cercadinho cultural é tão contraproducente quanto o não reconhecimento de ideologias, quando elas de fato ocorrem. Importa, contudo, não confundir tais bullyings pequeno-burgueses, nos seus lobbies identitários, com o que de fato é importante: os imprescindíveis movimentos contrários à violência e ao preconceito. Os identitários, assim, não representam as minorias: os identitários neoliberais cobiçam um monopólio comercial e político por meio de patrulhas ideológicas; as minorias reivindicam a dignidade e os direitos humanos, a igualdade e os valores universais de liberdade.

Lembrando mais uma vez Brecht, ainda “vivemos em tempos sombrios”. E eu diria mais, tristes são os nossos tempos, nos quais temos que defender até um Portinari, dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos e um amigo da humanidade, por seus ideais de justiça e fraternidade.

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