A reconstrução de bibliotecas e instituições culturais após catástrofes naturais

Por Leonardo da Silva de Assis, pesquisador do Laboratório de Cultura, Informação e Sociedade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 Publicado: 06/06/2024
Leonardo da Silva de Assis – Foto: Arquivo pessoal

 

 

As mudanças climáticas ocorridas no sul do Brasil, que ocasionaram fortes chuvas e a quebra de comportas de água que inundaram cidades, especialmente no Estado do Rio Grande do Sul, nos levam ao questionamento de como realizar a reconstrução de espaços como bibliotecas, museus, arquivos e centros culturais após desastres naturais.

Tais instituições fazem parte de nossa sociedade como espaços de memória, criação e difusão das informações e do conhecimento. Um acervo de livros, documentos ou obras de arte representa a identidade de um povo. Ou seja, é a manifestação social da existência de uma coletividade em determinado local. Portanto, a construção histórica e coletiva de uma sociedade passa pela instalação e manutenção dessas instituições culturais.

São muitos os exemplos em nossa história de instituições criadas com o objetivo de serem espaços de memória e difusão do conhecimento e que, consequentemente, fazem parte de um projeto político de construção de uma identidade local. A biblioteca de Alexandria, fundada pelo rei Ptolomeu II para acumular todo o conhecimento helenístico no século 3 a.C., a ilha dos museus na Alemanha, construída entre 1830 e 1930 pelos reis da Prússia, a rede de bibliotecas públicas e arquivos que surgiram nos Estados Unidos após a independência, em 1776, e a recente inauguração do Museu do Futuro em Dubai, em 2022, são todos exemplos de instituições preocupadas em registrar uma história coletiva por meio de obras diversas, como a literatura e as artes, e, ao mesmo tempo, instituir novas formas de presença no mundo.

A manutenção e criação de uma memória por meio das instituições culturais é um ato político: uma manifestação do desejo de uma sociedade em perpetuar a sua existência e uma forma de expressar sua identidade. Não é por acaso que os exemplos citados são de instituições que tinham como plano de fundo governos apoiadores da criação desses espaços. Assim como uma sociedade faz parte da criação de um Estado, as instituições de memória e cultura são fundamentais para a construção dessa sociedade.

As imagens e registros dos acontecimentos no Sul do País mostram que uma grande parte do acervo dessas instituições culturais foi perdida devido à invasão da água em acervos e espaços físicos de guarda de documentos e obras de arte. A reconstrução das comunidades atingidas passa pela reconstrução dessas instituições. Nesse processo de retomada, torna-se necessário pensar em formas e estratégias para a reconstrução dessas instituições. Vamos usar dois casos para elucidar como essa retomada pode acontecer.

Em 1755, a cidade de Lisboa sofreu um dos maiores terremotos ao longo de sua história. A reconstrução da Biblioteca Real após esse desastre natural é um exemplo de resiliência e engajamento político e da sociedade na preservação de uma instituição cultural. Diante da devastação causada pelo terremoto e incêndio, a biblioteca enfrentou um momento crítico em sua história. No entanto, a liderança do rei D. José I e seu ministro Pombal foi fundamental para iniciar um novo capítulo na trajetória da instituição. Empenhados em preservar a continuidade da biblioteca, eles adotaram uma série de estratégias políticas para a reconstrução da instituição. Desde a aquisição de acervos privados até a requisição de coleções esquecidas em mosteiros e o recebimento de doações, todas essas ações contribuíram para a reconstrução da Biblioteca Real.

O foco na reconstrução e na reinvenção da instituição demonstra não apenas a importância cultural e histórica atribuída à biblioteca, mas também o compromisso político em preservar o conhecimento e a memória coletiva da nação. A nova Biblioteca Real, agora sediada no Palácio da Ajuda, emergiu como um símbolo de resiliência e determinação, continuando a crescer e a desempenhar um papel vital na vida cultural e intelectual do País. O exemplo da Biblioteca Real foi utilizado porque os materiais adquiridos e comprados após o terremoto em Lisboa fazem parte do acervo presente em nossa Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Ou seja, a reconstrução da Biblioteca Real em Portugal após o terremoto de 1755 está intimamente ligada à história do Brasil. Todo o processo de retomada da Biblioteca Real e da vinda desse acervo para o nosso país é contada pela professora Lilia Schwarcz no livro A longa viagem da Biblioteca dos Reis.

Os exemplos mais recentes de desastres naturais que temos e o que a literatura nos traz como exemplos da reconstrução de bibliotecas, são os casos dos tsunamis no continente asiático. Em 2004, um tsunami devastou o Sri Lanka, impactando a sua rede de bibliotecas. Segundo dados do governo, das 950 bibliotecas públicas, 62 foram afetadas, com 28 completamente destruídas. Para retomar a vida cultural, com ênfase nas bibliotecas, o governo local instituiu o Comitê de Gestão de Desastres para Bibliotecas, Serviços de Informação e Arquivos do Sri Lanka. O comitê, em uma resposta ágil, visitou as áreas afetadas, avaliou os danos e colaborou com profissionais locais para lidar com os problemas. A ação imediata incluiu a identificação das instituições atingidas, o levantamento da extensão dos danos e a remoção e guarda de acervos preservados. Essa rápida intervenção foi crucial para minimizar perdas e agilizar a reconstrução das bibliotecas e das instituições culturais atingidas naquele desastre natural.

Além da criação do comitê e da mobilização governamental, esforços colaborativos entre bibliotecários locais, arquivistas e organizações internacionais como a Unesco foram essenciais. O envolvimento entre o poder público, entidades locais e internacionais foi fundamental para enfrentar os desafios do tsunami e reconstruir os espaços culturais. A experiência do Sri Lanka demonstra a importância da colaboração e da resposta rápida governamental na recuperação de bibliotecas após desastres naturais.

De modo a discutir a reconstrução dos acervos, num olhar sobre as bibliotecas afetadas no Sul do Brasil, vivemos um momento singular, no qual dispomos de uma ampla gama de materiais em formatos físicos e, ao mesmo tempo, uma abundância de recursos digitais. A estratégia adotada pelos casos analisados envolveu a aquisição de obras, por meio de compra e doações, em diferentes formatos, para reconstruir seus acervos. Com a emergência de documentos digitais, as bibliotecas e unidades de informação que estão nesse processo de reconstrução podem considerar a aquisição de materiais tanto no formato físico quanto no digital. Nesse contexto, é crucial adotar estratégias para que os recursos digitais fiquem armazenados em locais protegidos de futuras catástrofes, visando prolongar a vida útil desses materiais. Essa questão é facilitada pelo desenvolvimento de acervos digitais que utilizam a computação em nuvem.

Dessa forma, a reconstrução das bibliotecas após catástrofes naturais, especialmente as públicas, requer um envolvimento conjunto entre o poder público, as comunidades afetadas e as instituições nacionais e internacionais que garantem a existência de tais bibliotecas em sociedade. Os casos como a recriação da Biblioteca Real em Portugal, após o terremoto de 1755, e os mais recentes, após os tsunamis ocorridos no continente asiático, mostram que a estratégia eficaz é a ação rápida de governantes na criação de projetos e na alocação de recursos e orçamentos para a reconstrução desses espaços. Isso inclui tanto a reconstrução física dos prédios e áreas reservadas para as bibliotecas, quanto a contratação de profissionais qualificados para a retomada dessas instituições e a reconstrução dos acervos. Além disso, nos casos mais recentes ocorridos no continente asiático, a devastação causada pelos tsunamis enfatizou a necessidade de planos de preparação para desastres e, também, de recuperação no setor de bibliotecas.

Portanto, torna-se vital, neste momento de reconstrução da vida após catástrofes naturais, pensar e desenhar estratégias para a retomada da vida cultural dos municípios e das instituições que trabalham com a memória, a informação e a cultura. Sabemos que nem todos os desastres naturais são previsíveis com os equipamentos tecnológicos que temos, principalmente quantificar a intensidade desses fenômenos, mas é possível prevenir e criar estratégias para que os acervos e a memória coletiva presentes nessas instituições estejam salvos de forma adequada. A história de um povo passa pelas instituições culturais que ele constrói e mantém ao longo do tempo. A reconstrução desses espaços após as tragédias ocorridas no Sul do país fortalece um projeto de povo e de nação.

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