


Não vou me estender no “feminismo sinhá”. Já escrevi sobre isso, e citei minha amiga judia marroquina, Carla Mustafa, a quem credito o termo. A luta pela libertação dos nossos corpos passa pela libertação do colonialismo, do imperialismo, que afeta a vida de mulheres não brancas, não ocidentais, de forma mais violenta que qualquer outra. Não é sempre que a “tradição religiosa” impera de forma patriarcal, muitas vezes é na religião, neste acolhimento difícil de explicar em palavras, que muitas mulheres encontram o seu conforto, em horas em que a ajuda não chega, seja do Estado, seja de outros governos, seja de movimentos feministas, que ousam não ouvir suficientemente o chamado — que a vida delas têm sentido e que isso perpassa o seu pertencimento religioso. É uma violação diária de corpos, é não escuta, não presença no acolhimento da dor de mulheres que são diametralmente diferentes dos nossos interesses políticos, ideológicos, religiosos e não religiosos. No entanto, elas seguem sendo mulheres, com suas dores, seus corpos, seus filhos, suas famílias e suas vidas despedaçadas pela guerra, pelo terror.
Neste momento, segundo dados divulgados pela ONU em 2 de março de 2024, são nove mil mulheres assassinadas pelo Estado de Israel. A ONU Mulheres alerta que, sem o fim da violência, cerca de 63 mulheres podem ser mortas diariamente. Os dados da entidade apontam que 37 mães são mortas a cada dia, deixando as famílias desamparadas e filhos em vulnerabilidade. Os dados a seguir são do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários e do Ministério da Saúde da Palestina, de 27 de fevereiro de 2024:
• 30.206 mortos (407 na Cisjordânia e 29.692 em Gaza)
• 8 mil desaparecidos (sob os escombros, logo, pessoas mortas)
• Total de mortos (considerando desaparecidos): 38.206. Isso equivale a 1,75% da população palestina de Gaza, de 2.223.000 em 7 de outubro de 2023, quando teve início o genocídio na Palestina
• 12.765 crianças mortas (105 na Cisjordânia)
• 4 mil crianças desaparecidas (sob escombros, então, mortas)
• Total de crianças mortas: 16.765 (45% do total de mortos)
• 8.570 mulheres mortas
• Perto de 700 mulheres desaparecidas (sob escombros)
• Total de mulheres mortas: 9.270, pelo menos (25% dos mortos)
Os deslocados são 1,93 milhão (86,55% da população, oficialmente em 2.223.000), muito maior do que foi a Nakba em 1948, que expulsou ou matou mais de 750 mil palestinos.
É importante trazer esses dados, porque mesmo que eles se alterem diariamente, sabemos que falamos de genocídio, de limpeza étnica (como nos diz Ilan Pappé em sua obra A limpeza étnica da Palestina) que afeta os/as palestinos/as. Não dá mais para dizer que é crise humanitária, pois neste caso seria possível enviar alimentos, construir casas etc. Não é o que estamos assistindo. Nesta semana, todos acompanharam palestinos sendo assassinados, massacrados quando tentavam retirar a única forma para sobreviver em meio aos escombros: comida. Infelizmente vemos intelectuais, políticos, agentes públicos indignados com a fala do presidente Lula, mas pouco indignados e ativos quando se trata de defender a vida das mulheres palestinas e crianças palestinas. Não posso me referir a todos os grupos, mas um em particular, me espanta: apenas uma faculdade da USP, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, se pronunciou sobre este horror em sua Congregação.
Acho que vale a pena nos perguntarmos: qual é a ação da Universidade de São Paulo frente à dor de tantas pessoas? Onde estão as feministas da USP, sempre prontas a defender mulheres em situação de risco? Enfim, o que fazemos diante disso tudo?
O silêncio percorre nossos corredores, nossos pátios e cantinas.
Nem precisaria explicar, mas vou. Não estamos falando do judaísmo, da fé de judeus, não se trata disso, nem dos nossos amigos judeus, o patrão judeu, a professora judia. Estamos falando da vida de mulheres, homens, crianças que morreram e morrem há 76 anos para terem sua casa, sua rua, seu bairro, seu país… Desde a Nakba (catástrofe), o povo palestino vem sendo dizimado paulatinamente. Trata-se do fim do apartheid palestino. A Universidade tem responsabilidade diante disso, não pensem que não tem.
Quando nos deparamos com o fato que mulheres palestinas, desde o início, tiveram que se submeter a medicamentos para não menstruarem, pois a dificuldade em se manter minimamente, ou melhor, dignamente limpas já tornava isso humanamente impossível, o sinal de alerta nas mulheres que defendem pautas feministas deveria ter sido ligado. O corpo feminino abusado, violado de diversas formas, quando foram submetidas a um bombardeio incessante, não podendo alimentar seus filhos, cuidar deles, tudo isso deveria ser suficiente para nos movermos sem restrição, sem medo. É pela vida de mulheres palestinas! De mulheres judias! Ainda escuto o grito de uma mãe palestina que dizia: “Meus filhos morreram e eu não tinha alimentado nenhum deles, meus filhos morreram com fome!!”. Não dá para dizer que precisa ser mãe para entender esse grito, esse choro… basta estar vivo para compreender isso… é uma questão de humanidade.
Há cinco meses, as senhoras feministas brancas, ocidentais, liberais, assistem à morte de mulheres e crianças, mas é a fala do presidente que incomoda. Mas não li esses mesmos/as incomodados/as citando May Golan, Ministra da Igualdade Social e Empoderamento Feminino de Israel, quando disse: “Estou pessoalmente orgulhosa das ruínas de Gaza, e que todos os bebês [palestinos], mesmo daqui a 80 anos, contarão aos seus netos o que os judeus fizeram”. O Estado de ultradireita de Netanyahu é totalmente antissemita, trabalha incessantemente para macular a imagem dos judeus. “Não em meu nome”, respondem meus amigos de origem judaica.
Com aclamação dos participantes, o 42º Congresso do Andes-SN realizado em Fortaleza, entre 26 de fevereiro e 1º de março de 2024, aprovou uma moção em defesa dos Palestinos. Caberia a nós nos juntarmos e fazer o mesmo em cada espaço acadêmico e fortalecer a luta pelo fim desse apartheid, desse genocídio que já matou mais de 30 mil palestinos.
Por fim, chegamos a mais um 8 de março, Dia Internacional da Mulher, uma data de luta, mas se não incluímos a dor das mulheres palestinas em nosso discurso, em nossa frente de militância, acadêmica, é porque não entendemos ainda a urgência que é a luta pela vida dessas mulheres. É preciso dar escuta a todas as mulheres que estão na luta pela sobrevivência, seja na Palestina, nas periferias das cidades, nas universidades. Que sejamos um corpo só em nossa diversidade – em nossa humanidade.
Deixo aqui, para quem quiser se somar à Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino, o documento para assinatura.
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