A Bíblia pode ser considerada um documento histórico?

Por Marcelo Rede, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 04/02/2021 - Publicado há 3 anos
Marcelo Rede – Foto: Arquivo pessoal

 

A Bíblia hebraica pode ser considerada um documento para escrever a história do antigo Israel ou para analisar outros fenômenos históricos, como a formação do monoteísmo ou a figura divina de Yahweh?

A indagação é parte de uma questão maior, sobre a presença da Bíblia no ambiente acadêmico e universitário. Do ponto de vista institucional e curricular, o panorama é diversificado.

O debate já é antigo nos centros universitários norte-americanos ou europeus. Entre nós, é ainda incipiente. No Brasil, a Bíblia penetrou na academia pela via dos estudos literários, que privilegiaram a análise de seus diversos gêneros e a interpretação linguística. Na arqueologia, a situação é ambígua: embora a arqueologia bíblica seja popular nos meios de comunicação, ela jamais se estabeleceu como disciplina por aqui, antes de ter praticamente desaparecido das universidades em todo o mundo para dar lugar a uma arqueologia do Oriente-Próximo ou Siro-Palestina. Naturalmente, nos cursos de teologia (quase totalmente de orientação cristã), a Bíblia hebraica, juntamente com o Novo Testamento, está no centro da reflexão, sob a forma da história da religião ou da exegese textual e teológica.

Nos departamentos de história, a presença da Bíblia é rarefeita, pois a história de Israel é menos praticada do que as histórias do Egito ou da Mesopotâmia, e prepondera o interesse pela Grécia e por Roma. Paradoxalmente, não há quase nenhum recorte em nossas disciplinas que possa desprezar a importância da Bíblia, do Brasil colonial à Revolução Francesa, da Idade Média à Independência norte-americana.

O problema, portanto, é saber se é possível integrar a Bíblia hebraica na operação historiográfica e como fazê-lo.

Para o historiador, isso significa duas possibilidades inseparáveis. A primeira: a Bíblia como sendo, ela mesma, um fenômeno histórico. A segunda: sua consideração, ou não, como fonte documental.

A própria questão poderia ser considerada um tanto descabida, pois a historiografia atual se constituiu a partir da profunda remodelação da noção de documento: quando surgiu como saber moderno no século XIX, a história privilegiou os documentos escritos, particularmente, os de natureza oficial. Embora os textos ainda predominem, a história abriu-se a novas fontes (imagens, objetos materiais, relato oral) e integrou todo tipo de documento não oficial: cartas privadas, textos literários, jornais, panfletos de propaganda etc. Se “tudo é história”, pode-se dizer também que “tudo é documento”. Mesmo um falso documento pode servir como fonte para se estudar algo, desde que o historiador tenha ciência de sua falsidade (uma obra de arte forjada; um decreto imperial não autêntico ou uma fake news). Diante desse quadro, o que poderia justificar a exclusão da Bíblia do campo de documentos históricos?

Ocorre que a Bíblia tem uma trajetória de mais de dois mil anos no pensamento ocidental e seus vários usos e apropriações levantaram questionamentos legítimos que precisam ser considerados.

O ponto mais evidente é a sua concepção como “Escritura Sagrada”. Muitos documentos com que trabalham os historiadores têm, igualmente, uma natureza sagrada atribuída por suas sociedades: o Livro dos Mortos, no antigo Egito; as preces aos deuses sumérios e tantos outros. Há, porém, uma grande diferença: enquanto estes pertenceram a religiões hoje mortas, a Bíblia continua sendo o livro sagrado do judaísmo, dos vários cristianismos e, indiretamente, do islamismo. A sacralização dos textos bíblicos criou obstáculos ao seu estudo fora do domínio teológico. Foi somente às vésperas do Iluminismo que as “Sagradas Escrituras” passaram a ser objeto de reflexão crítica.

Na historiografia, a situação é particular e até curiosa: os especialistas que buscaram escrever uma história moderna do antigo Israel integraram as narrativas bíblicas como uma espécie de enredo histórico preestabelecido, como o guia de um passado já escrito. Caberia ao historiador traduzi-lo em um linguajar acadêmico aceitável. Em outros termos, a Bíblia não foi inserida na operação historiográfica como uma verdadeira fonte a ser submetida ao crivo dos instrumentos de análise aplicados aos demais documentos, o que, justamente, conferia à historiografia moderna sua mais importante característica: a de ser um saber inferencial sobre as sociedades, fundado na crítica das fontes.

A existência de um documento escrito complexo, extenso e praticamente único não é uma exclusividade. O mesmo ocorre, por exemplo, com a obra de Tito Lívio para vários períodos da história romana ou com a Ilíada e a Odisseia para o chamado período homérico. No entanto, em nenhum desses casos o texto impôs uma tutela narrativa ao historiador, sobretudo se considerarmos as novas perspectivas introduzidas por cada uma das “escolas” historiográficas que se sucederam até hoje.

A história do antigo Israel, ao contrário, persistiu sendo praticamente uma paráfrase das narrativas bíblicas. O mesmo ocorreu na arqueologia bíblica tradicional, concebida como uma prática de escavação e de interpretação da cultura material que visava a corroborar a narrativa fornecida pelo texto bíblico. Os artefatos, as estruturas etc. tampouco foram integrados adequadamente como fonte documental para a produção de um conhecimento sobre a sociedade antiga.

Há, portanto, razões suficientes para que a legitimidade da Bíblia como documento histórico tenha sido questionada e para que um ruidoso debate tenha se estabelecido entre os chamados “maximalistas” (que procuravam conservar ao máximo a narrativa bíblica) e os “minimalistas” (que buscavam minimizar a validade documental da Bíblia).

Entre esses extremos, porém, uma solução intermediária parece ser mais sensata e produtiva. Não resta dúvida de que os textos bíblicos impõem dificuldades imensas ao historiador. O conjunto é extremamente diversificado e mesmo incoerente; sua unificação é fruto de um processo longo e mal conhecido; sua redação e, sobretudo, sua forma canônica final são tardias, em geral separadas por séculos dos contextos a que se referem. Para complicar ainda mais, materialmente falando, o texto que conhecemos hoje deriva de manuscritos medievais que datam de por volta do ano 1000 (depois de Cristo!). Entre esses códices medievais e os manuscritos “originais” (do qual não temos sequer um exemplar) há um vácuo quase total, preenchido de modo apenas parcial pelos Manuscritos do Mar Morto e por pouquíssimos outros fragmentos esparsos.

São problemas sérios. Todavia, a situação não é muito diferente para grande parte do que nos sobreviveu da literatura antiga e não pode, por si só, ser motivo para descartar a Bíblia como documento.

No entanto, é preciso reconhecer que essa intricada condição documental da Bíblia só pode ser enfrentada se seu conteúdo for submetido às mesmas ferramentas críticas utilizadas para qualquer documento. Na feliz expressão de Mario Liverani, historiador italiano, é preciso fazer da história do antigo Israel uma “história normal”. Acrescentemos: é preciso tratar a Bíblia como um “documento normal”. Nem mais, nem menos.

Inserir a Bíblia na história implica, portanto, inserir a história na Bíblia, reconhecendo nela um fenômeno cultural, fabricado por sociedades humanas em uma série de contextos sociais concretos.

É nesse sentido que os estudos sobre a memória cultural e sobre o trauma coletivo enquanto fenômeno histórico e literário foram fundamentais para se entender melhor boa parte das narrativas bíblicas. Muitas delas só são compreensíveis historicamente como resultado do trauma representado pelo cativeiro babilônico. A conquista do Reino de Judá pelos babilônios, em 587 a.C., solapou pilares fundamentais da sociedade judaíta: a perda da terra e a migração forçada de parte da população; o fim da dinastia davídica; a destruição do templo de Jerusalém. O aparecimento de uma literatura de crise é parte das respostas culturais a esse trauma coletivo. Seja sob o domínio babilônico, seja depois, sob o domínio persa (Ciro, o Grande, conquistou a Babilônia em 539 a.C.), os judaítas exilados reformularam a memória de seu passado, fundindo antigas tradições e elementos inéditos. São mitologias da criação e do dilúvio, sagas de ancestrais, textos proféticos, literatura sapiencial e mesmo erótica. E, sobretudo, narrativas acerca de um passado remodelado pelo que restou dos escombros da tragédia de Judá. Sob esta ótica sulista, o reino do norte, Israel, foi pintado em cores francamente negativas. Ao mesmo tempo, “Israel” ganhou um novo sentido: não mais uma entidade política, um reino governado por um soberano, mas um referencial identitário do qual os judaítas do exílio se reivindicaram como herdeiros legítimos.

A invenção de um passado que se apresenta como propriamente histórico é a matriz da memória cultural bíblica, que cria e mantém a coesão e a identidade da comunidade: a fuga espetacular do Egito, a conquista heroica de Canaã, uma monarquia unificada e esplendorosa sob David e Salomão. Ao mesmo tempo, essa construção memorial comporta reflexões sobre o sofrimento presente e sinaliza possibilidades e limites de projetos para um futuro melhor, tanto para os retornados quanto para os que restarão na diáspora, primeiro à sombra do Império Persa, depois em um universo profundamente marcado pela cultura grega e pelo domínio das monarquias helenísticas.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.