Filme “Extraordinário” retrata síndrome rara tratada na USP em Bauru

Hospital da USP é um dos poucos centros no mundo especializados no tratamento da Síndrome de Treacher Collins

 02/01/2018 - Publicado há 6 anos
Gabriel em foto simbolizando a despedida da traqueostomia – Foto: Arquivo pessoal / Família

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“Ele gosta muito de brincar, nadar, ir para o sítio e andar a cavalo, assistir desenhos. Estuda, faz aulas de taekwondo e inglês. Nos finais de semana, participa do Clube de Aventureiros, onde aprende sobre o amor a Jesus e o respeito ao próximo e também faz atividades como acampamentos. Para o futuro, já pensou em ser médico, bombeiro e, agora, quer ser médico veterinário”, conta Andréia Strinta dos Santos Elias, mãe do pequeno Gabriel, de 8 anos.

Gabriel com os irmãos Marina e Emanuel – Foto: Arquivo pessoal / Família

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Até aí, um relato do dia a dia comum de um garoto de sua idade. Nada de extraordinário, certo? Mas para aqueles conhecem um pouco mais da história de Gabriel Amadeu Strinta dos Santos Elias, de Céu Azul, no Paraná, município localizado a cerca de 800 quilômetros de Bauru, essa afirmação não poderia estar mais errada.

Gabriel e sua irmã gêmea Marina nasceram prematuros, com 32 semanas – ele com a Síndrome de Treacher Collins. Porém a família só veio a saber disso quase dois meses depois, quando chegou ao Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da USP em Bauru, um dos poucos centros no Brasil e no mundo especializados no tratamento desse tipo de síndrome rara.

Gabriel e a irmã gêmea Marina recém-nascidos – Foto: Arquivo pessoal / Família

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“Foi uma gestação cercada de amor e cuidados. Durante os exames, nunca diagnosticaram nenhuma alteração no Gabriel. Assim que nasceram, foram para a UTI neonatal e após 20 dias a Marina recebeu alta. Mas os médicos não sabiam explicar o que acontecia com o Gabriel, que não conseguia respirar sozinho nem sugar. Os dias foram passando e, quando ele vomitou pelo nariz e pela boca, viram a fissura no palato (céu da boca)”, relata a mãe. “Foi aí que, com orientação de uma fonoaudióloga, procuramos a transferência do Gabriel para o Centrinho. Até então, este era um universo que não conhecíamos. Centrinho, fissura, palato… Era tudo novo e assustador. Mas estávamos dispostos a fazer de tudo pela vida do nosso pequeno.”

Gabriel nasceu no dia 20 de dezembro de 2008 e, em 7 de fevereiro de 2009, foi transferido de UTI móvel de Cascavel (PR), cidade onde estava internado, para Bauru, no HRAC. “Ainda me lembro da entrada na UTI, eu só chorava. A equipe nos orientou e explicou sobre a síndrome. Então me senti acolhida e respeitada, senti que estávamos no lugar certo. Sentimos insegurança quanto ao futuro, mas, ao mesmo tempo, sentimos esperança, pois sabíamos qual era o problema do nosso filho e estávamos ali dispostos a lutar”, relembra Andréia.

O paciente Gabriel posa para foto no HRAC após cirurgia para retirada da traqueostomia – Foto: Cristiano Tonello

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No primeiro ano de vida, Gabriel enfrentou muitas dificuldades com relação à saúde. De acordo com a mãe, a dificuldade respiratória resultou na traqueostomia – no terceiro mês de vida – e a dificuldade de deglutição, na gastrostomia, após vários meses de tentativas e utilização de sonda nasogástrica. “Passamos praticamente seis meses com o Gabriel hospitalizado no Centrinho. Foram várias idas e vindas para a UTI e, nesse período, aprendemos a cuidar dele e nos preparávamos para como seria em casa.”

Durante esses anos, Gabriel já realizou 21 cirurgias. “A cada etapa do tratamento, nosso filho evoluiu, melhorou a condição respiratória e também da deglutição”, comemora Andréia. Em 2015, grandes vitórias para o pequeno, então com seis anos: as cirurgias para retirada da traqueostomia e da gastrostomia. “A traqueostomia salvou a vida dele. Aprendemos a cuidar com extremo zelo, seguindo as orientações do hospital. Mas foram anos difíceis. E hoje, sem ela, nos sentimos ‘livres para respirar’.”

Gabriel com a família. A partir da esquerda: Gledson de Lima (pai); Emanuel Strinta dos Santos Elias (irmão); Andréia (mãe); Marina Strinta dos Santos Elias (irmã); e Gabriel; em foto simbolizando a despedida da traqueostomia – Foto: Arquivo pessoal/ Família

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“Somos gratos a Deus porque tivemos a oportunidade de chegar até o Centrinho. Por nosso filho ter acesso a esse tratamento excelente. Hoje, o Gabriel tem uma ótima saúde, se alimenta normalmente e tem a deficiência auditiva amenizada pelo uso do aparelho. Acreditamos que o nosso comprometimento, aliado ao tratamento correto efetuado por uma equipe como a do Centrinho e também por profissionais que nos atendem no Paraná – todos com muito amor, respeito e dedicação –, só faz melhorar ainda mais o desenvolvimento dele”, salienta Andréia.

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Na tela do cinema

A Síndrome de Treacher Collins está em evidência mundialmente com o recente lançamento do filme Extraordinário, em cartaz nos cinemas de todo o País e do exterior, com a atriz Julia Roberts no elenco.

No último mês de novembro, o HRAC recebeu o biólogo norte-americano Francis Smith, nascido com a síndrome e autor do prefácio da nova edição do livro que originou o filme. A obra, de R. J. Palacio, conta a história de August Pullman, o Auggie, uma criança nascida com Síndrome de Treacher Collins que passou por diversas cirurgias e complicações médicas na infância. Educado em casa até os dez anos, pela primeira vez ele irá frequentar uma escola regular e precisará se esforçar para conseguir se encaixar em sua nova realidade.

Francis Smith é pós-doutorando da University of Colorado School of Dental Medicine, dos Estados Unidos, com especial interesse em anomalias craniofaciais. Ele realiza análises do genoma de tecidos embrionários e do formato da face utilizando técnicas especializadas.

O biólogo norte-americano Francis Smith, nascido com a Síndrome de Treacher Collins e autor do prefácio da edição especial do livro Extraordinário, que originou o filme recém-lançado – Foto: Arquivo HRAC

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Em Bauru, foi um dos palestrantes do 5º Simpósio Internacional de Fissuras Orofaciais e Anomalias Relacionadas, promovido pelo HRAC. Relatou suas experiências de vida com a Síndrome de Treacher Collins e apresentou suas pesquisas sobre as origens das anomalias craniofaciais em embriões. Também deu aula para alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação do hospital.

“Nessa visita ao Centrinho, finalmente conheci novos colegas de pesquisa na área de anomalias craniofaciais (professoras Ivy Suedam e Inge Trindade), assim como colegas na área de cirurgia craniofacial, odontologia e outras especialidades. Gostei muito de auxiliar a professora Ivy em sua pesquisa na qual medimos as vias aéreas superiores de pacientes com Síndrome de Treacher Collins”, afirma Smith.

“A primeira vez que ouvi sobre o Centrinho foi de um colega da University of Dundee, na Escócia (professor Peter Mossey, membro do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde-OMS para Anomalias Craniofaciais). Ele me falou sobre esse hospital único dedicado à pesquisa e reabilitação das anomalias craniofaciais e me encorajou a fazer uma visita”, revela.

 

.“Quando li a edição original de Extraordinário, em 2012, ela tocou meu coração, pois a história refletia parte das minhas próprias experiências no ensino fundamental. Como Auggie, tenho a Síndrome de Treacher Collins e sofri bullying mais que suficiente na escola. E ele conquistou seus colegas de classe, assim como eu, que encontrei uma escola onde fui aceito por quem eu realmente era e lá me desenvolvi.

Encontro de Gabriel e Andréia com Francis Smith no HRAC-USP. Em pé, à direita, a professora da USP-Bauru Ivy Suedam – Foto: Arquivo HRAC-USP

Lidar com as consequências da Síndrome de Treacher Collins tem sido difícil, mas isso não me impediu de perseguir meu interesse constante na medicina. Do colegial em diante eu senti um chamado para entender o desenvolvimento craniofacial e suas consequências no campo médico. Após estudar biologia na faculdade, fui estudar a genética craniofacial e o desenvolvimento biológico em Londres, Inglaterra, onde tive minha primeira experiência na pesquisa do desenvolvimento craniofacial embrionário. Após perceber que este era meu nicho, busquei meu PhD (Doutorado) em ciências das anomalias craniofaciais.

Eu gostaria que este livro tivesse sido lançado quando eu estava no ensino fundamental, três décadas atrás, lutando contra o bullying; teria sido um encorajamento para mim na época. Espero que as crianças se divirtam com as aventuras de Auggie, e espero que aqueles que estejam enfrentando o bullying na escola retirem dessa história a coragem e esperança.”

Trecho da introdução escrita por Francis Smith para a edição especial do livro Extraordinário, que originou o filme lançado em dezembro no Brasil

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A síndrome e o processo de reabilitação

“A Síndrome de Treacher Collins é uma condição congênita rara, de causa genética, que acomete uma a cada 50 a 70 mil nascidos vivos. Caracteriza-se, principalmente, pelo comprometimento dos ossos da face. Os achados clínicos mais frequentemente observados são: mandíbula pequena ou com malformação e orelhas malformadas ou muitas vezes ausentes. Além disso, a maioria dos pacientes apresenta olhos inclinados devido às malformações no esqueleto ósseo e, outras vezes, fissuras palatinas estão associadas”, explica o médico Cristiano Tonello, chefe técnico da Seção de Cirurgia Craniofacial do HRAC e doutor em Clínica Cirúrgica pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

O médico Cristiano Tonello, cirurgião craniofacial do HRAC – Foto: Arquivo HRAC-USP

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Segundo o médico, as alterações faciais comprometem, além da estética, funções vitais, e que, se não tratadas no momento e de maneira adequada, podem trazer consequências severas aos pacientes. “As alterações na configuração anatômica da mandíbula podem levar ao desconforto respiratório desde o momento do nascimento até a idade adulta. Cirurgias que incluem o alongamento do osso da mandíbula ou mesmo a traqueostomia (abertura cirúrgica no pescoço para permitir a respiração) são necessárias para que o comprometimento da respiração possa ser resolvido. A dificuldade respiratória associada às malformações faciais podem causar também a dificuldade de alimentação. A necessidade de acompanhamento com pediatras e fonoaudiólogos é imprescindível para que a criança possa mamar e comer”, afirma.

Ainda de acordo com o especialista, o comprometimento da face também é acompanhado em grande parte das vezes por alteração na posição dos dentes e na condição oral desses pacientes. Assim, a atuação do cirurgião-dentista – em especial do odontopediatra e do ortodontista – é fundamental na reabilitação integral desses pacientes.

Imagem de tomografia do paciente Gabriel – Foto: Cristiano Tonello

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“A atenção à perda auditiva decorrente das malformações ou ausência das orelhas é outra preocupação comum aos familiares e à equipe que assiste essas crianças. Enquanto que a cirurgia para reconstrução estética da orelha ocorre somente por volta dos dez anos, o diagnóstico e manejo da perda auditiva deve acontecer nos primeiros meses de vida. A adaptação de aparelhos auditivos ou mesmo a cirurgia para colocação de próteses auditivas semi-implantadas, realizada em alguns casos em idade mais tardia, permitem que o sentido da audição seja restabelecido, além da adequada alfabetização e desenvolvimento da linguagem. Da mesma forma, a correção cirúrgica da fissura palatina naqueles casos em que a criança nasce com o palato aberto é fundamental para que, em conjunto com as terapias fonoaudiológicas, a fala desenvolva-se apropriadamente”, pontua Cristiano Tonello.

O médico destaca ainda que as correções estéticas na região dos olhos e das pálpebras – que consistem basicamente no restabelecimento dos contornos ósseos das margens dos olhos e do reposicionamento do canto das pálpebras – são realizadas durante a infância e visam a diminuir os estigmas de uma face esteticamente comprometida.

“O comprometimento da face e as frequentes situações enfrentadas pelos pacientes e seus familiares diante de uma condição que muitas vezes causa estranheza aos olhos dos outros geram sentimentos que podem levar ao isolamento social e a quadros de depressão. A própria necessidade de muitas visitas aos diferentes profissionais, além do afastamento da escola e amigos durante os períodos de internação hospitalar para procedimentos cirúrgicos e recuperação pós-operatória, pode acentuar ainda mais esses quadros. A atuação da psicologia junto aos pacientes e seus familiares, portanto, é de fundamental importância para que possam também restabelecer a autoestima e superar desafios”, explana.

O paciente Gabriel Amadeu Strinta dos Santos Elias e sua mãe, Andréia Strinta dos Santos Elias, no HRAC – Foto: Arquivo HRAC

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“Soma-se a isso o acolhimento e especialmente o aconselhamento e orientação dados aos pais desde o momento da admissão no hospital por geneticistas experientes, que trazem alívio a uma família que muitas vezes não teve nenhuma informação sobre o diagnóstico de seu filho até aquele momento. Da mesma forma, a atuação do Serviço Social permite que mesmo famílias de lugares distantes tenham acesso a esse tratamento especializado em Bauru, uma vez que não é oferecido no local onde residem”, acrescenta o médico.

Além das fissuras labiopalatinas e deficiência auditiva, o HRAC/Centrinho da USP é referência mundial no tratamento multi e interdisciplinar de anomalias craniofaciais e síndromes raras. No total, já foram cadastrados na instituição cerca de 120 pacientes com a Síndrome de Treacher Collins, dos quais 87 estão em tratamento.

Equipe multidisciplinar de Cirurgia Craniofacial do HRAC-USP durante atendimento ao paciente Gabriel e sua mãe Andréia – Foto: Arquivo HRAC-USP

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Cristiano Tonello ressalta que o hospital conta com uma equipe de profissionais capacitados e com experiência no manejo clínico e cirúrgico de pacientes com a síndrome, desde os primeiros dias de vida até o início da fase adulta, quando o tratamento habitualmente é completado. “O HRAC é um dos poucos centros do Brasil e um dos maiores do mundo no tratamento integral dessa condição. A atuação de diferentes profissionais, de diferentes áreas, trabalhando juntos para que a melhor conduta seja adotada para cada caso, individualmente, exige uma equipe multi e interdisciplinar. Nesse sentido, o HRAC é historicamente reconhecido por esse trabalho em equipe, que converge para o melhor tratamento do paciente”, frisa.

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Extraordinários

Para aqueles que convivem com os desafios decorrentes da Síndrome de Treacher Collins, seja paciente, familiar ou profissional, a palavra “extraordinário” – que dá nome ao livro e ao filme recém-lançado – simboliza bem a realidade enfrentada por essas pessoas.

“Viver com a Síndrome de Treacher Collins tem sido difícil – com todas as cirurgias, dificuldade para me alimentar e respirar, deficiência auditiva e de fala, e o bullying na escola –, mas também foi recompensador. A experiência me abriu uma carreira nas pesquisas craniofaciais e sensibilização do público. ‘Extraordinário’ é uma boa palavra para descrever a vida daqueles com a Síndrome de Treacher Collins. Espero que todos aqueles que assistirem ao filme Extraordinário vejam a experiência de vida extraordinária de Auggie e retirem disso coragem e inspiração”, reforça Francis Smith.

Gabriel com os irmãos Marina e Emanuel – Foto: Arquivo pessoal / Família

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Já Andréia, mãe do garoto Gabriel, diz que a palavra é significativa porque essas crianças lutam para viver e passam por inúmeros procedimentos cirúrgicos para conseguir respirar, se alimentar e ouvir. “Esse árduo caminho faz deles mais fortes e perseverantes, faz deles lutadores. Deus nos presenteou com o Gabriel. Enquanto pais aprendemos a lutar pela sua vida, pelo seu futuro, pelos seus direitos. Temos conseguido vencer com determinação, amor, carinho, respeito e um tratamento de qualidade, com apoio da família, amigos, técnicos e profissionais que o atendem. Temos vencido diariamente nossa luta, e, se nós podemos, todos podem!”, encoraja Andréia.

Gabriel andando a cavalo no sítio do avô – Foto: Arquivo pessoal / Família

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Para o médico Cristiano Tonello, os diferentes profissionais que se envolvem no tratamento desses pacientes têm, no desenvolvimento e evolução dessas crianças, sua maior retribuição. “Temos também a certeza de que somos apenas coadjuvantes nesse processo em que os pacientes e suas famílias são os verdadeiros protagonistas. Os desafios enfrentados e superados, um após o outro, verdadeiramente conferem àqueles que convivem com a Síndrome de Treacher Collins o título de extraordinários!”, finaliza.

Tiago Rodella / Assessoria de Imprensa do Centrinho


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