Artigo publicado originalmente no site Direto da Ciência, em 19/08, e autorizado para republicação no Jornal da USP
Lembro outros dois episódios assemelhados: o primeiro, no governo federal, relativo ao contingenciamento de verbas das universidades públicas, seguido da apresentação do projeto de lei do Future-se (atual PL 3.076/2020). Inicialmente enviada ao Congresso em julho de 2019, a polêmica proposição não prosperou devido a inúmeros problemas jurídicos e institucionais. Para as universidades, o Future-se era antes um “vire-se” que uma solução racional para os seus problemas crônicos de gestão, com grave restrição da autonomia universitária. O atual projeto, entre outras medidas, pretende estimular a captação de recursos financeiros públicos adicionais pelas universidades federais, por meio de contratos de resultados, mas não enfrenta dificuldades estruturais dessas instituições, como a definição de fontes de recursos financeiros e garantia de orçamento previsível. Se já não há recursos para repasses regulares – inclusive pela opção de financiamento prioritário das Forças Armadas no orçamento de 2021, que dirá de recursos adicionais…
O segundo episódio é mais antigo. Como já registrado por Direto da Ciência, data de 2007, quando o governo do Estado editou o Decreto Declaratório nº 1/2007, que excepcionou as universidades estaduais – USP, Unesp e Unicamp –, bem como a Fapesp, do regime regular do Siafem, dadas as suas peculiaridades de organização e funcionamento. Diz o seu artigo 3º:
A execução orçamentária, financeira, patrimonial e contábil das Universidades Públicas Estaduais será realizada em tempo real no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios – Siafem/SP, nos termos do Decreto nº 51.636, de 9 de março de 2007, sem prejuízo das prerrogativas asseguradas no artigo 54, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que lhes facultam regime financeiro e contábil que atenda às suas peculiaridades de organização e funcionamento.
Parágrafo único – No exercício de sua autonomia financeira as Universidades Públicas Estaduais poderão efetuar transferências, quitações, e tomar outras providências de ordem orçamentária, financeira e patrimonial necessárias ao seu bom desempenho, na forma do inciso VII, do artigo 54, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
O secretário da Fazenda à época era Mauro Ricardo Costa, atualmente secretário estadual de Projetos, Orçamento e Gestão.
Inconformismo com a autonomia
O que ambos os episódios revelam, em tempos e circunstâncias distintos, é o desejo, por parte do Poder Executivo, de apropriação dos recursos financeiros das universidades, além de ceticismo e inconformismo com a autonomia universitária assegurada no artigo 207 da Constituição. No caso das universidades estaduais paulistas, há um dado adicional: não há no Brasil – nem em nenhum lugar do mundo – modelo de financiamento com repasse regular de verbas públicas (9,57% da arrecadação líquida do Imposto sobre Circulação de Mercadorias, Serviços e Transportes – ICMS), em duodécimos mensais.
O modelo, originalmente previsto no Decreto nº 29.598/1989, foi sucessivamente mantido e teve os recursos ampliados por leis orçamentárias anuais, mas sempre incomodou os gestores das finanças estaduais (e mesmo parlamentares, haja vistas à CPI instaurada em 2019 pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Alesp, sob uma alegação – inverídica – de irregularidades na gestão das três universidades paulistas).
O episódio federal exemplifica a postura típica dos céticos diante da autonomia; no caso do Estado de São Paulo, a dos inconformados. Os primeiros, acostumados com o centralismo no campo educacional e administrativo, ao invés de tomar a autonomia como a capacidade de se autodirigir, e até mesmo de se autoprover, a consideram um entrave para a gestão governamental, particularmente em épocas de crise. O indescritível ex-ministro Weintraub e sua assessoria são céticos paradigmáticos, que se valeram até mesmo de notícias falsas para promover suas convicções ideológicas. Mas não apenas eles; o corte dos recursos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, em 17 de agosto, vai na mesma direção.
Os inconformados, a seu turno, concordam com uma autonomia tutelada, destinada a tornar a instituição eficiente e facilitar aspectos administrativos, mas não aceitam a autonomia financeira e orçamentária. Entendem que os ganhos acadêmicos e científicos não justificam tão ampla autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Tais reclamos são o resultado da presença do Estado numa área em que a promoção do desenvolvimento científico, social e econômico se faz a longo prazo, ao custo de pesados investimentos públicos. Apesar de evidente, não é demais frisar que, na atual crise sanitária, não fossem as universidades, institutos e agências públicas de fomento à pesquisa, não haveria como fazer frente ao desenvolvimento de pesquisas e medidas capazes de minorar seu impacto. De fato, as três universidades, juntas, respondem por um terço da pesquisa científica nacional indexada em bases de dados internacionais.
Entre os inconformados, destacam-se a secretaria de Estado da Fazenda e Planejamento e a de Projetos, Orçamento e Gestão, entre outras, para as quais não se justifica a existência, no corpo da Administração Indireta, de entes com regime financeiro e orçamentário diferenciado. Também nos conselhos de Educação nacional estaduais não há clareza quanto à extensão das prerrogativas da autonomia, seja em matéria curricular, seja no atendimento de programas governamentais, por exemplo.
Estatuto jurídico especial
Juridicamente, as universidades públicas não são órgãos públicos como os demais, justamente em razão de sua autonomia, prevista no artigo 207 da Constituição. Sua natureza jurídica é específica. Essa posição foi realçada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ao definir processos e elencos particularizados de ações autônomas nas áreas do ensino, da administração e de gestão financeira.
Por todas essas razões é que a LDB, em seu artigo 54, fala em “estatuto jurídico especial” para as universidades públicas. A autonomia é poder derivado e deve ser exercido nos limites específicos de sua outorga. É o efeito de uma limitação que a lei impõe a si mesma, de uma abstenção proposital do legislador. Autonomia não é soberania, nem significa independência, mas poder funcional derivado, submetido ao ordenamento jurídico que lhe deu causa. Ou seja: o ente que recebe autonomia submete-se, regra geral, ao ordenamento jurídico, ressalvadas algumas situações nas quais o próprio ordenamento jurídico lhe atribui o poder de se autorregular.
A despeito desse regime jurídico ter sido definido em 1988, pois não é que estamos, novamente, diante de mais um ataque à autonomia das universidades estaduais paulistas? Sem entrar na análise das motivações que levaram o governo do Estado a apresentar o PL 529/2020, misturando alhos com bugalhos no intuito de minimizar o déficit orçamentário para 2021, o fato é que paira enorme ameaça à autonomia financeira das universidades paulistas, com graves prejuízos jurídicos, políticos e institucionais. Os primeiros, provocados pela flagrante inconstitucionalidade da medida, a que se seguirá intensa judicialização; os segundos, pela possível derrota da estratégia das secretarias da Fazenda e de Planejamento e de Projetos, Orçamento e Gestão, como já ocorreu com o Decreto Declaratório de 2007; e os prejuízos institucionais, pela insegurança nas instituições, com reflexos na sua produção acadêmica e científica, além dos já causados pela pandemia da covid-19. Toda essa situação desencadeia táticas defensivas, não cooperativas, por parte dos grupos afetados e tende a relativizar o Direito em sua generalidade abstrata.
Este é um jogo em que todos perdem. Ainda que conflitos de interesses sejam naturais nas sociedades humanas, o curioso, neste caso, é que a apropriação dos ditos “superávits” – inexistentes nas universidades públicas e na Fapesp posto não haver recursos excedentes, leva ao paradoxo de o Estado tirar com uma mão o que deu com a outra. A pretensa utilidade da apropriação indevida de recursos para o governo estadual determinou a sua equivocada e destrutiva estratégia, camuflada pela aparência de equacionamento de déficit orçamentário. O tiro pode sair pela culatra, à vista da crescente valorização social das universidades, institutos e agências de pesquisa públicos nesses tempos de pandemia. Tal reconhecimento demonstra que a população valoriza ciência, tecnologia e educação. Os parlamentares certamente saberão captar esse sentimento, em acertada estratégia de ganha/ganha.