Recentemente, participei de congresso em Portland (USA), o que me proporcionou a oportunidade de conhecer a Powell’s City of Books, imensa livraria com títulos de variadas áreas e ofertas amplas: usados, novos e raros. Neruda, Machado, Vargas-Llosa, Fernando Pessoa, Saramago, disponíveis em estantes bem arrumadas e de acesso organizado, compartilham o espaço com os grandes ícones da literatura anglo-saxônica.
A sala de livros raros, climatizada e de visita cuidadosamente monitorada, desperta admiração e vontade de ter acesso a edições raras e valiosas. Enfim, lazer durante as horas livres do trabalho preenchido com passeios a mundos diversificados que os livros proporcionam.
Ao passar pelas estantes de Neurociências e Filosofia da Mente, lá estavam John Searle e Gerald Edelman, cientistas de primeira linha que, além da produção científica em suas respectivas áreas, sabem transmiti-las para leitores não especialistas.
Sobre Searle já escrevi em artigo anterior. Hoje pretendo falar sobre Edelman, cujo trabalho seminal realizado nos anos 1960 resultou no Prêmio Nobel em Medicina de 1972, trazendo para a Neurofisiologia a abordagem evolutiva nos estudos sobre consciência, fronteira a ser alcançada pela ciência.
Aparentemente, as conjecturas sobre a relação consciência-evolução, descritas em linguagem acessível, ficaram disponíveis para o grande público sob o título Neural Darwinism, editado em 1987.
Os conceitos de seleção somática e de mecanismos epigenéticos explicam a evolução dos sistemas neuronais distribuídos e a emergência de ações globais das percepções.
Nos escritos de Edelman, a visão transdisciplinar de como a dinâmica neuronal, resultado do processo evolutivo, pode se relacionar com o fenômeno da consciência aparece no livro A Universe of Consciousness, editado em 2000, em coautoria com Giulio Tononi.
De maneira instigante, descreve o que Arthur Schopenhauer denominou World-Knot (nó do mundo), discutindo a questão de como experiência subjetiva se relaciona com eventos descritíveis objetivamente e, adicionalmente, como o cérebro pode ser observado por ele mesmo, enquanto observador.
A obra de Edelman trata pioneiramente a conexão de pontos de vista relativos à consciência: o da filosofia, privilegiando o conceito de mente como uma entidade adicional ao corpo, com o das ciências naturais, entendendo os fenômenos mentais como resultados de ações realizadas por células que se integram e produzem a emergência de um mundo mental.
Em 2004, com título proveniente de poema de Emily Dickinson de 1862, Edelman publica Wider than the Sky, iniciando discussão consistente do problema mente-corpo, ponderando que a consciência emerge da organização e da operação do cérebro, uma vez que em situações como anestesia profunda, derrames e certas fases do sono ela não está presente.
Além disso, experimentos post-mortem não são possíveis e não há evidências experimentais de consciência fora do corpo. Essa argumentação leva às perguntas: quais características do corpo e do cérebro são necessárias e suficientes para a existência de consciência? Tratando-se de uma experiência privada e pessoal, como ter acesso a essas possíveis características?
A impossibilidade do compartilhamento da experiência consciente, entretanto, parece não tornar impossível isolar características comuns em experimentos que podem ser observados e reportados. Acrescento que os avanços tecnológicos ocorridos nos últimos anos, como, por exemplo, a ressonância funcional, podem aportar resultados de grande valia para a integração da neurofisiologia com os aspectos metafísicos discutidos pela filosofia.
Uma dessas características da consciência comum nos indivíduos é o fato de ela ser unitária ou integrada. Ao ler este escrito, a sua concentração nesse ato ocorre simultaneamente com a percepção da luz ambiente, dos ruídos da sala de leitura e das ruas e do desconforto que a posição em que você se encontra sentado provoca na sua coluna vertebral e pernas.
Outra característica relativa à percepção é a diferenciação. Quando o cenário a nossa volta passa por algum tipo de mudança, de maneira consciente reconstruímos a cena e nos readaptamos à nova situação. Somos tão acostumados à nossa consciência que essa integração-diferenciação parece óbvia, assim como parece óbvio que somos conscientes que temos consciência.
Aqui, talvez caiba uma distinção entre níveis de consciência: um nível primário que implica estar mentalmente apto a perceber o mundo em volta e criar imagens do presente (chamado às vezes de awareness) e um nível de ordem superior, desenvolvendo habilidades de reconhecer suas próprias ações e eventuais afecções.
Estados normais de consciência compreendem os chamados qualia que definem a subjetividade das vivências individuais. Talvez esse seja um grande nó a ser desatado, uma vez que os qualia constituem o maior grau de discriminação da constituição da consciência.
É essencial entender que as diferenças nos qualia originam-se em razão de variações entre conexões e atividade nas diversas partes do sistema nervoso, isto é, todos os eventos conscientes envolvem um conjunto complexo de qualia.
Neste ponto, transcrevendo Edelman, convenço-me que the human brain is the most complicated material in the known universe e que a atual fronteira do conhecimento passa pela integração entre a filosofia e as ciências naturais na busca de como os cérebros visualizam, interpretam e agem, a partir das percepções do mundo, transformando fenômenos físicos em mentais.
É de 2006 o livro Second Nature, em que Edelman estabelece uma lógica do conhecimento relacionando-o com possíveis dinâmicas cerebrais. Começo a entender como epistemologia e neurofisiologia se integram ao longo da escala evolutiva, proporcionando o prazer da compreensão de ao menos uma pequena parcela do mundo que nos cerca.
A combinação da natureza do pensamento humano com a natureza do mundo, mediada pela sinergia cérebro-corpo-ambiente, molda o conhecimento do mundo físico, do muito pequeno da mecânica quântica ao muito grande da cosmologia. Conjecturas sobre as origens do Universo e da vida, agregadas ao pensamento biológico evolutivo, proporcionam visões otimistas de futuro, além do simples apertar de botões e das superstições.
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