As instituições importam, dizem há décadas os teóricos da chamada “nova economia institucional”, que foi originariamente desenvolvida por Douglas North e Ronald Coase. Partindo da premissa de que as instituições formam um conjunto articulado de regras e de restrições que estruturam as ações políticas, econômicas e sociais, esses teóricos afirmam que, quando essas regras e restrições são respeitadas e cumpridas, a segurança jurídica se torna mais efetiva, pois eventuais litigantes tendem a tomar iniciativas cooperantes na busca de soluções. E, na medida em que a efetividade da segurança jurídica vai aumentando e as expectativas vão se estabilizando na vida social, isso cria um ambiente positivo para o crescimento da economia.
Inversamente, advertem esses teóricos, quando essas regras são desrespeitadas e órgãos de Estado passam a ser tratados como entidades de governo geridas sem qualificação técnica e com critérios meramente políticos, elas comprometem os processos de estabilização das expectativas. Também abrem caminho para a judicialização da vida política e econômica e, por consequência, para a subsequente politização da Justiça; e ainda dificultam o cálculo econômico racional, prejudicando a realização de transações, minando com isso as condições para o desenvolvimento. No limite, quando as instituições não funcionam, seus efeitos são disruptivos. Instituições fracas e com baixo poder de enforcement tendem a erodir o acordo moral básico do qual depende não apenas o funcionamento do livre jogo do mercado mas, igualmente, do próprio regime democrático, concluem os teóricos da “nova economia institucional”.
Por que esta discussão continua sendo importante no momento histórico atual? Entre os diferentes fatores que podem ser elencados, pelo menos três deles merecem especial atenção.
Em primeiro lugar, porque o conceito de público no Brasil vem se deteriorando há tempos, precisando ser reconstruído com urgência. Basta ver, nesse sentido, a captura da máquina da administração pública pelo que há de pior em nossa vida política, a distribuição muitas vezes irracional de emendas parlamentares com objetivos paroquiais e o atual debate sobre o afastamento do presidente de um Banco Central antes do término de seu mandato e a proposta do atual presidente da República de impor metas e cláusulas de desempenho para diretores de agências reguladoras independentes.
Em segundo lugar, porque uma parte significativa dos brasileiros e de seus líderes políticos continua ignorando as reiteradas advertências que têm sido feitas sobre os perigos que a ineficiência do Estado, a irresponsabilidade fiscal e a falta de uma visão de médio e de longo prazo para o País podem causar a toda a sociedade no futuro próximo.
E, em terceiro lugar, porque os crescentes riscos da corrosão da ordem institucional surgidos no governo Bolsonaro continuam, a meu ver, sendo subestimados. Em vez de um diálogo construtivo, vários partidos políticos, determinadas facções corporativas e alguns grupos sociais almejam impor-se a qualquer preço uns sobre os outros, sob o argumento de que têm suas “boas razões”.
Subjacente a essas “boas razões”, contudo, está o risco do prevalecimento do culto da vontade sobre a razão e do primado de que os fins justificam os meios. Ou seja, da perigosa ideia de inspiração autocrática de que quem não é amigo é inimigo – e, como tal, no limite ele tem de ser enfrentado, contido e derrotado a qualquer preço.
Dentre os diferentes fatos que vêm contribuindo para tornar esse cenário bastante cinzento, entre nós, alguns merecem particular atenção. No âmbito do Poder Executivo, em meio à conhecida confusão entre política de governo e política de Estado, destaco as já mencionadas pressões do presidente da República para tentar acabar com a autonomia institucional do presidente do Banco Central. E, também, suas reiteradas incitações para a abertura de investigações sobre os dirigentes das principais agências reguladoras, sob a justificativa de substituí-los por pessoas “mais eficientes” e mais “companheiras” – ou seja, menos “inimigas”, por terem muitas das quais sido escolhidas pelo chefe do governo anterior.
Já no âmbito do Poder Legislativo destaco a ofensiva das bancadas parlamentares vinculadas ao bolsonarismo, ao fisiologismo político e à extrema-direita com o objetivo de minar a autoridade do ministro-relator das ações criminais relativas à tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Destaco, igualmente, as manobras do Congresso para (i) tornar mais fácil e rápida a tramitação de pedidos de impeachment dos ministros do Supremo Tribunal Federal; (ii) limitar o poder que essa corte hoje dispõe para e declarar a inconstitucionalidade de Propostas de Emenda Constitucional formuladas e aprovadas pelo Senado e pela Câmara dos Deputados; e (iii) e suprimir a prerrogativa da Corte de derrubar decisões parlamentares, no exercício de seu papel de instituição do controle da constitucionalidade.
Por fim, no âmbito do Poder Judiciário, destaco a multiplicação – em ritmo de crescimento geométrico – da explosão de decisões monocráticas finais e vinculantes tomadas por ministros do Supremo Tribunal Federal em um contexto altamente polarizado em termos políticos e ideológicos. Ao apontar uma lógica mais política do que técnico-jurídica, essas decisões só tendem a deslegitimar o papel da corte encarregada de promover o controle da ordem constitucional e do próprio regime democrático.
Pensadores políticos que analisaram o início e consolidação do mundo moderno, a exemplo do historiador britânico John Greeville Agard Pocok (1924-2023)*, costumam lembrar como um ambiente econômico, social, cultural e político pode levar um país a ingressar no que chamam de momento maquiaveliano. Segundo eles, esse momento costuma surgir da combinatória entre uma crise de hegemonia dos setores econômicos dominantes, uma crise de legitimação do regime político e uma crise da própria matriz organizacional do Estado. Trata-se, assim, de um momento que se configura quando uma dada sociedade, ao longo de sua trajetória, tem pela frente o desafio de lidar com necessidades inéditas de articulação política, as quais podem ser enfrentadas com sucesso por meio da formulação, da implementação e da execução de formatações políticas e legais originais.
Apontando que um desses momentos ocorreu na Itália renascentista e outro aconteceu no decorrer da Revolução Americana, Pocock e alguns de seus seguidores afirmam que, por inércia, é impossível obter um mínimo de grandeza histórica. Essa grandeza somente pode ser conquistada por uma vontade política – e, para que isso seja possível, são necessários mecanismos institucionais inovadores, eficientes e adequados para impô-la sob a forma de programas consistentes de médio e de longo prazo. Ou seja, entre os principais fatores de crescimento e desenvolvimento de uma nação estão uma vontade política, por um lado, e a qualidade de suas instituições, por outro.
Se após o restabelecimento da ordem constitucional e da democracia no final da década de 1980 nosso processo legislativo tivesse se tornado menos marcado tanto pelo fisiologismo quanto pela tentativa de alguns militares de ocupar o proscênio político, em que medida já não poderíamos estar vivendo hoje alguma coisa próxima de um momento de caráter maquiaveliano?
(*) O momento maquiaveliano: o pensamento político florentino e a tradição republicana atlântica (edição original: 1975)
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)