Este é o final de linha de um antigo estudante de uma geração contestadora que, ao longo da vida, converteu-se em um maître à penser e, agora, é obrigado a deixar a sala de aula por limite de idade.
Quando entrei na USP, em 1968, ano marcado por efervescência de ideias e contestações estudantis em muitos países, tudo parecia possível para um jovem recém-chegado do ensino médio. O período em que estudei Direito marcou-me pelo fato de que aquelas manifestações espalharam pelo mundo ondas de protestos, no sentido romântico de uma retomada dos impulsos morais que as gerações anteriores teriam deixado se esvair. Foi um período em que a vida burocratizada de até então passou a ser vista como opressão.
Em que medida esse tipo sufocante de vida não estaria encoberto pelo que acreditávamos ser a racionalidade? – esta foi uma das indagações então surgidas. Em que medida o avanço da razão abrira caminho não para o progresso material ou espiritual da humanidade, mas para a acumulação desumanizante subjacente ao capitalismo e para o aumento de desigualdades e injustiças? Se na primazia do desejo os estudantes franceses de 1968 almejavam outra vida e outro padrão de sociedade, os estudantes brasileiros desejavam liberdade, respeito aos direitos fundamentais e o retorno à democracia.
Cada geração tem sua cultura, sua história e suas crenças. Por isso, aquela onda de protestos e desejos libertários foi decisiva para minha decisão de fazer carreira numa universidade pública. Tive a sorte de pertencer a uma geração marcada pela contestação da hipocrisia e pela negação da ordem então estabelecida por meios ilegítimos. Sou de uma geração que, despertada pela batalha da Rua Maria Antônia e pela ocupação das Arcadas, descobriu que a verdade nunca esteve entre as virtudes políticas e que as mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nessa matéria.
Para os membros de minha geração que optaram pela carreira acadêmica, interpretando a seu modo a premissa socrática de que uma vida não questionadora não valeria a pena ser vivida, lecionar tornou-se uma forma de participar da vida pública – um modo de exercer a criatividade no debate sobre o destino da sociedade. Estudei nos tempos da ditadura e passei meus primeiros anos como docente lecionando num período sem liberdades fundamentais. Essa é uma ironia da vida – como professor de Direito da USP desde 1973, demorei 16 anos para viver sob um Estado de Direito. Só conheci a democracia após a Constituição de 1988. Contudo, em mais uma ironia da vida, encerro o exercício da cátedra no ano em que a democracia voltou a ser ameaçada por uma tentativa de golpe de inspiração fascista.
Na época de minha graduação, o golpe de 1964, o AI-5 de 1968 e a ditadura afrontaram a universidade pública – inclusive com apoio de alguns setores mais servis e oportunistas da USP localizados na FD e na Faculdade de Medicina. A ditadura expulsou e perseguiu professores, impôs o silenciamento político dos que ficaram, substituiu o princípio da meritocracia pela ideia de alinhamento político no âmbito do corpo docente e abriu caminho para o economicismo como padrão de gestão da universidade pública, para a massificação do ensino superior e para um viés profissionalizante que privilegiava o conhecimento utilitário. Para mim, essas torpezas sempre foram objeto não só de interesse acadêmico, mas também de interesse jornalístico, já que trabalhei por 54 anos no jornal O Estado de S. Paulo. Universidade e jornalismo propiciaram-me espaços de experiências múltiplas, de tensões contínuas, de formação teórica, de consciência crítica e de resistência.
O modelo inspirador da USP foi o da Universidade de Berlim, criada em 1819 por W. von Humboldt, que considerava indissociáveis ensino, pesquisa e liberdade acadêmica, com vista a uma sociedade desenvolvida e solidária. A universidade humboldtiana propunha liberdade de ensino e pesquisa e autonomia financeira e intelectual. Seu desafio foi conciliar as exigências da ciência com as exigências da sociedade, defendendo como alma mater a filosofia como reflexão sobre as ciências. Em seus 90 anos, a USP produziu e continua produzindo conhecimento sobre os entraves à modernização do País, os desafios ao desenvolvimento e o combate às desigualdades e vulnerabilidades no âmbito de uma economia desumanizante e de uma sociedade fraturada pelos altos níveis de desigualdade.
A produção de conhecimento crítico é a função precípua de uma universidade pública, enquanto espaço policêntrico de liberdade de criação, de reflexão, de experiências plurais e de produção de conhecimento. Conhecimento não é apenas sinônimo de prestígio e autoridade. É, também, instrumento de poder acadêmico, poder institucional e controle social, ora reproduzindo e justificando um padrão de organização econômica, ora criticando suas estruturas para tentar torná-las mais justas. Como poder, o conhecimento está na essência das revoluções paradigmáticas da ciência. No campo social, é instrumento para mobilizações, protestos e revoluções. No campo político, é instrumento para o questionamento contínuo da ordem estabelecida.
Na dinâmica da produção do conhecimento, as heterodoxias são mais importantes do que as ortodoxias no que se refere ao destino da academia e da própria vida social. Elas viabilizam o avanço do conhecimento, questionando o saber acumulado, criticando as teorias prevalecentes e identificando suas contradições internas com relação aos fenômenos que pretendem compreender. Ao questionar o senso comum teórico que assegura a reprodução dos valores e práticas dominantes, ao modificar métodos e procedimentos de pesquisa e ao refletir sobre as condições para uma nova relação entre técnicas jurídicas e práticas políticas, as heterodoxias também ajudam a abreviar os períodos de pouca criatividade, de pobreza científica e de quadros mentais estreitos.
Contudo, as heterodoxias têm seu preço. No passado, implicavam cicuta e fogueira. Hoje implicam o risco da incompreensão e até de ameaças. No âmbito do ensino jurídico, esse preço tem a forma do desprezo à tentativa de exercitar uma imaginação criadora capaz de nos habilitar a decifrar o sentido dos acontecimentos, a agir como atores transformadores e a pensar o futuro como história. Apesar desse risco, porém, jamais deixei-me levar por uma visão do ensino como formação de mão-de-obra; como uma linha de transmissão de conhecimentos utilitários e de aptidões técnicas vinculada a práticas de gestão acadêmica como se a universidade fosse uma empresa. Em minha carreira uspiana, procurei agir como educador consciente da importância da responsabilidade social da docência e da ciência.
Foi essa consciência que me levou a ver dois problemas na USP. O primeiro envolve seu projeto original. Quando o reavaliamos, vemos que em alguns períodos a USP perdeu sua identidade originária, deixando de ser a alma do saber inovador e do alargamento das fronteiras do conhecimento, para se transformar numa linha de produção de técnicos e burocratas tão a gosto de certas métricas de eficiência do Norte global. Com isso, cresceu desordenadamente e alguns cursos passaram a enfrentar problemas para manter a integridade e a independência intelectuais. Como consequência, ela – ou parte dela – converteu conhecimento em mercadoria, sujeitando-se a exigências empresariais e incorporando-se a um circuito de produção e circulação de bens e serviços, sob a justificativa de oferecer “conhecimento útil” em um mundo competitivo.
Decorre daí o segundo problema: no caso da FD, o que ela tem de melhor? Elenco dois pontos:
(i) mais do que a sala de aula, é seu pátio que é decisivo para a socialização e tomada de consciência social dos alunos; é dele que eles extraem a dimensão simbólica que deu às Arcadas prestígio e poder político;
(ii) quanto à sala de aula, ela depende da formação intelectual de cada professor para que possa ser um lócus para a conversão de seus discentes não só em operadores jurídicos qualificados, mas em profissionais responsáveis, transformadores e capazes de preservar liberdades, enfrentar crises institucionais e defender a democracia.
Esses atributos são vitais nos sombrios tempos de hoje, pois as transformações científicas que promovem saltos econômicos e tecnológicos ao mesmo tempo ampliam as desigualdades entre países e na vida social de cada um deles. É um paradoxo que faz lembrar o historiador Fernand Braudel, para quem o desenvolvimento econômico é uma corrida de revezamento em que o bastão é um conjunto de tecnologias e instituições que se sucedem ao longo dos ciclos históricos.
Nesse sentido, o ciclo correspondente às cinco décadas em que lecionei na USP está relacionado a dois aspectos. Primeiro, esse foi um período histórico em que os padrões de solidariedade e sentido ético de justiça cederam lugar a uma existência social monodimensional, a uma pasteurização domesticadora de corações e mentes e ao aviltamento das condições de vida e cidadania, em nome da racionalidade econômica. Ao abrir caminho para um processo de desconstitucionalização de liberdades e direitos a prerrogativas, essa racionalidade tecnocrática pôs em xeque valores como justiça e equidade, que dão sentido moral e prático à própria noção de direito. Segundo, o advento de novas tecnologias gerou novos problemas no mercado de trabalho e no próprio ensino superior.
Com as ondas de transformação tecnológica destas cinco décadas, a duração do ciclo de formação universitária em várias áreas econômicas tornou-se maior do que a do ciclo de consumo produtivo delas. O tempo de vida útil desta ou daquela conquista tecnológica tornou-se inferior ao tempo gasto na formação de profissionais capazes de operá-la. Assim, a aceleração das técnicas e práticas produtivas fez com que o ensino superior deixasse de ser anterior ao trabalho, para se dar conjuntamente com ele, levando a formação acadêmica e a qualificação profissional a se fundirem num único processo.
Por isso, quanto maior for o hiato entre o ciclo de formação universitária de um perfil profissional e o ciclo de consumo produtivo de seus conhecimentos, maior será a necessidade de se recuperar os valores de uma forma de educação mais ampla, que não trate docentes só na perspectiva da produtividade e não veja os discentes como simples produto. A meu ver, o professor tem de interagir com o alunado numa perspectiva socrática, valendo-se das aulas de seminário para converter alunos passivos em alunos conscientes de uma situação social que eu descrevia a partir de indagações.
Lembro algumas delas:
(i) como empoderar os mais pobres por meio de mecanismos jurídicos que materializem na vida cotidiana a ideia de cidadania econômica a partir de medidas concretas?
(ii) onde está a justiça substantiva nos tribunais, uma vez que os operadores jurídicos que aplicam o direito positivo estão fora da situação existencial das partes em conflito sobre as quais incidem as leis?
(iii) de que modo identificar os diversos contextos sociais da construção e aplicação do direito, a fim de determinar suas potencialidades e seus limites nos processos de transformação social?
(v) estudar direitos humanos é estudar as normas que os disciplinam ou é promover uma relação dialógica com as lutas jurídicas e sociais pelo reconhecimento dos direitos e pela cidadania numa perspectiva emancipatória? Dadas as respostas pelos alunos, as aulas caminhavam na linha do direito que eu queria ensinar e do direito que os alunos queriam aprender, mediante o intercruzamento entre o ordenamento jurídico e as práticas e os problemas sociais. Qual seria, então, a metodologia adequada para se fazer esse intercruzamento? Que outros saberes poderiam ser incorporados na sala de aula?
Indagações como essas permitem ao alunado refletir sobre os fatos que observam, selecionam, comparam e avaliam. Para os professores, elas permitem mostrar como a Sociologia do Direito surgiu da confrontação com uma Ciência do Direito marcada pelo dogmatismo dominante no século 20. E também abrem caminho para que possamos oferecer ao alunado:
(i) uma visão global do mundo e modelos teóricos e analíticos que lhes propiciam o desenvolvimento de seu espírito crítico e ampliação de suas cognições do contexto socioeconômico, político e cultural em que vivem, com suas incertezas e contradições;
(ii) uma explicação do por que o ensino jurídico brasileiro se estruturou de modo autárquico, tornando-se incapaz de se autoperceber como manifestação cultural da sociedade;
(iii) e uma exposição dos motivos que levaram o ensino de direito a se deixar seduzir por retóricas vazias.
Com isso, meus alunos podiam conscientizar-se do distanciamento que a FD tinha da realidade, em decorrência de suas idealizações alienantes sem maior relevância para o entendimento das contingências do mundo real. Identificavam o fosso que leva os cursos jurídicos fechados em seu mundo imaginário a uma percepção equivocada de seu ambiente e do mercado de trabalho. A mesma prática pedagógica também estimulava o alunado a compreender como a aplicação do direito pode ser orientada por uma cultura de cidadania democrática e por maior abertura à diversidade, ao multiculturalismo e à conscientização das vulnerabilidades sociais.
Sempre me opus a um modelo de ensino do Direito baseado numa visão lógico-formal. Um ensino que despreza análises históricas das relações de força, autoridade, mando e obediência, optando por uma teoria descritiva do Estado que conduz os cursos jurídicos a um isolamento estéril do direito em relação às ciências sociais. Minha opção foi por um modelo de ensino jurídico com base numa sólida formação teórica, interdisciplinar e interessada.
Neste momento em que deixo a USP, a universidade pública vive um momento difícil. Por pressões econômicas, parece estar sendo destituída de seu sentido histórico como instituição autônoma e reflexiva. Encontra-se espremida entre a lógica racionalizadora do capital e sua submissão a controles quantitativos de produção acadêmica. Corre o risco de deixar de ser uma instância crítica e perder sua independência.
Para se libertar dessa situação, a universidade pública tem pela frente dois desafios. O primeiro é ser mais determinada em sua mudanças curriculares e organizacionais, com o objetivo de salvaguardar a coexistência de distintas visões de mundo e o respeito pela diversidade de valores e de opiniões; ampliar a mobilidade acadêmica internacional de docentes, pesquisadores e estudantes; e ser capaz de responder a questões sociais relevantes e lidar com problemas científicos, humanísticos, filosóficos e éticos trazidos pela história e para os quais a experiência ainda não ofereceu respostas plausíveis. O segundo é aprender a lidar com a tensão entre a procura de novos conhecimentos científicos e um liberalismo perverso que defende uma economia desregulada, ignora a precarização dos mínimos vitais dos segmentos sociais pobres e rompe os laços primários de solidariedade.
Essa tensão grassa nas diferentes áreas do conhecimento. É isso, por exemplo, que explica as decisões que transformam a obrigação constitucional de prestação de serviços públicos essenciais em negócios privados – isto é, incluindo os direitos sociais e outras conquistas civilizatórias no conceito geral de mercadoria. A obsessão pela mercantilização da universidade pública deixa de lado dois pontos básicos subjacentes à concepção de Estado democrático de Direito. Em termos funcionais, pode levar à redução da autonomia universitária e do desenvolvimento de pensamentos críticos e emancipadores. E, em termos morais, se algumas funções públicas podem ser privatizadas, determinadas responsabilidades não podem – entre elas o ensino público. Assim, o risco da ideia de que os mecanismos de mercado podem equacionar quaisquer problemas é que as ideias de convívio social e solidariedade sejam substituídas por uma lógica gerencial no modo de lidar com a vida.
A universidade pública exerce uma função vital na orientação do universo social. Por isso, quanto maior for sua autonomia, mais ela incorporará vozes advindas da sociedade que a circunda. Maior será sua capacidade de reflexão crítica. Neste meio século em que servi à USP, orgulho-me de ter pertencido a uma universidade pública que tem consciência dessa função.
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