Para compreender as eleições consultei um grande especialista em Brasil: Joãozinho Trinta (1933-2011). Profissional de almas, aprecia o excesso: de cor, de brilho, de alegria. Vigarice, ele tira de letra. Para o ódio, prepara um solvente. Navega com desenvoltura em diversas tribos. Não deixa ninguém de fora: deprimido, ansioso, grosso, fino, desajustado, ajustado, chato. Assombração é destaque. Coloca todo mundo na rua, num descarrego necessário para quem vive em Pindorama.
Em tempos de fantasmas, Joãozinho faz sucesso. Explica o inexplicável.
João faleceu em 17 de dezembro de 2011. Morreu para alguns. Para outros está vivíssimo, oferecendo serviços especializados para enredos e alegorias políticas. Como pai-de-santo, organiza também grupos de discussão sobre realismo fantástico, com foco na América Latina. Ágil nos negócios, conquistou nove títulos na primeira divisão. Sua vasta experiência em despachos criou vínculos sólidos com diversos fantasmas, favorecendo seus aconselhamentos para as escolas de samba e campanhas eleitorais. Seu sucesso deu origem ao escritório Trinta Advogados Associados, a melhor assessoria brasileira para carnavais e política.
Joãozinho garante: nascemos num continente fabuloso.
Muita gente discorda de Joãozinho.
Explico melhor. Trata-se de um mundo construído com fábulas, histórias maravilhosas, um país onde só faz sentido se a ideia surgir pelo avesso. A metáfora é o método. Se a palavra é, por exemplo, falta de… procure o seu antônimo, fartura, para compreender como se monta um enredo para uma escola de samba ou como se faz uma campanha política.
Sugiro a palavra fartura.
Fartura é o inverso de falta, explica Joãozinho. Fartura de fantasias, excesso de mentiras e overdose de ódio. O oráculo anda desafiando o continente todo, do Alasca ao Chuí. A minha sugestão é ler as entranhas, o fígado dos bichos, misturar literatura realista com a fantástica. O falecido Machado (de Assis), aqui presente, garante. Nada supera, em precisão, a análise de um morto.
Seguindo o rumo sugerido por Machado (de Assis), João (Trinta) agregou dados estatísticos à sua análise. Na aparência, os resultados das eleições são estrambólicos. Inexplicáveis para quem não conhece a alma dos brasileiros. Consultei diversos fantasmas para conhecer a lógica inusitada aprimorando o raciocínio. O acerto da empresa, Trinta Advogados Associados, cresceu a ponto de gerar um selo de garantia para os produtos: ISO bilhoemendas. Um selo de qualidade dos serviços prestados, com resultados secretos, direto ao contratante, via pix. Dinheiro certo.
Explico: as hipóteses feitas pelos mortos do Trinta Advogados deram prioridade para as sugestões de animais mortos. Eles são inteligentes e têm coração. Um repositório afetivo, tanto com seus semelhantes animais, como com alguns humanos. Animais falecidos, nas eleições da Argentina, tiveram papel decisivo. Foram objetivos e eficientes. Já o espectro dos diplomados em economia tumultuou as conversas, impedindo acordos. A nuvem, lugar de moradia dos economistas, é naturalmente tensa. Conseguiu ficar pior com a chegada de dois outros economistas: Maria da Conceição (Tavares, 1930-2024) e Antônio (Delfim Neto, 1928-2024). Ninguém consegue dormir naquela nuvem. Tudo voa. Cadeira, tridente e martelo. Optamos por esperar os ânimos se acalmarem e escutar a bicharada. Os cachorros avisaram. Não tem jeito, na Argentina vai ser necessário a desgraça aumentar, para depois tentar salvar o que sobrar de bicho e de gente. No mundo animal tivemos desavenças apenas com pássaros fantasmas, verdes, de bico comprido, zangados por princípio. Beija-flor é pássaro bonitinho, animalzinho belicoso.
Joãozinho entrou na discussão:
“Logo eu, carnavalesco da grande Beija-Flor, falando mal dos verdinhos. Quantas vitórias consegui para ela, uma escola de nome de pássaro! O beija-flor participou por muitos anos de uma consultoria para os mexicanos. Voando para frente e para atrás mantiveram o PRI, Partido Revolucionário Institucional no poder, de 1929 até 2000. O nome, ao mesmo tempo revolucionário e institucional, guarda o feitiço nas palavras, aparentemente opostas. Por expressar uma contradição, vivem sem ela, comemorando anualmente, como manda a tradição, os mortos, garantidores da estabilidade. O pássaro verdinho cansou da mesmice de tantas ‘revoluções institucionalizadas’, e migrou. Foi bater as asas nos ouvidos dos venezuelanos, a mando do falecido Hugo Chaves (1954-2013). Não se pode esquecer. Na origem o beija-flor, conhecido no México como Deus da guerra, Huitzlopochtli, foi o fundador da cidade de Tenochtitlán (México). Herói muitas vezes comparado com Hércules, foi levado à loucura por Hera, sua progenitora. No nosso panteão dos mortos temos que entender as coisas pelo avesso e pela loucura”.
Trinta Advogados Associados ficou conhecido, amado e criticado, com a frase de João, o Trinta: “Quem gosta de miséria é intelectual. Pobre gosta de luxo”. Aproveitando esse insight, o parecer do escritório no passado sugeriu a junção entre a Marta Suplicy e a periferia. Foi um sucesso. Ela arrasou. Um luxo: inteligente, elegante, bonita, metia a mão na massa. Mulher na política sabe fazer.
Agora, nesta última eleição, o candidato para se contrapor à direita não respondeu ao imaginário da periferia. Ele apostou em um semelhante, em um igual. Não desenvolveu, ao longo de sua trajetória política, a linguagem do avesso. Quem mora na periferia e enfrenta os desafios da vida em comunidades, sonha mudar, morar num lugar mais arrumado, com sol entrando pela janela, muitas torres de internet, uma escola com disciplina, com mãe em casa cuidando da criançada. O que empurra a vitória, provável, é o sonho, não a realidade. O sonho é mudar, conseguir seguidores, ganhar dinheiro postando na internet um vídeo de sucesso, sem a fumaça dos carros, congestionamento, trabalho pesado. Viver o luxo para além do carnaval.
As explicações são necessárias porque fantasmas são fantasmas, escapam à lógica, ao racional.
Feitas estas considerações gerais, podemos passar para o início de outra conversa.
Como explicar o resultado das eleições, Joãozinho?
Simples, disse ele. Trinta Advogados Associados explica:
1. Toda a história começa assim: Era uma vez o dinheiro. Pobre não gosta de pobre. Os motivos são óbvios.
Quem pode oferecer comida para quem tem fome?
— Quem vive na fartura tem sobra para dividir. Generosidade faz parte do espírito aristocrático.
Quem pode arranjar serviço para quem não tem emprego?
— Negociantes precisando de gente para trabalhar.
Quem paga um trago na mesa do bar?
— Quem tem dinheiro no bolso.
Quem oferece cigarro?
— Quem já abriu o maço.
Campanha política vende sonhos. Projetos só depois das eleições.
2. Cada época se explica por uma palavra forte na conjuntura, por um enredo. Por exemplo: no ano de 1974, eu e Maria Augusta apostamos no luxo, no brilho, com O Rei da França na ilha da assombração. Tem Rei, criança e mimado. Tem França, palácio, espelho, carruagem, nobreza. Tem sonho, ser rei. Alguém pode querer mais?
Foi um sucesso para os Acadêmicos do Salgueiro.
Em 1975, mirei no ouro, o Segredo das minas do Rei Salomão, enredo do samba. Acadêmicos do Salgueiro ganhou em primeiro lugar. A história tem tesouro, com ouro, pedras preciosas, brilho, gritos de guerra transformados em gritos de alegria. Sem fronteiras juntamos, à moda brasileira, Oriente e Ocidente. Viva a diferença, a mistura. Criei um lugar secreto repleto de prazer, de tesouros, habitado por mulheres corajosas, as amazonas. Tem noite de lua, floresta majestosa e presentes dos fenícios. De herança o muiraquitã, amuleto da sorte. Receita? A felicidade durante a festa, e sonho depois dela. Garantia, um talismã capaz de virar o jogo depois da festa. Esperança é seguro de vida. Convém plantar sempre.
Mais uma vez a palavra é fartura. 700 mulheres para um rei só, Rei Salomão brasileiro.
Entenderam?
Simples: Sempre o inverso, os antônimos. Evitem os sinônimos.
Agora a palavra é empreendedorismo. Não dá samba. O som é anasalado. A junção dos dois “es”. Mas, não escapa à lógica de olhar as coisas pelo avesso. O avesso da fartura é a miséria; do escravo, o rei; do brilho, a sombra. O reverso do empreendedor é o desocupado. Misericórdia, verdade e mesmo amor ao próximo não ganham a avenida, não vencem nas urnas, não sugerem força.
Bom coração não ganha eleições. Olhos se movem com a luz, com lantejoulas, ouro, fantasias.
Em linguagem de campanha eleitoral, o desafio é compreender a rejeição. Ela explica o lugar da dor. A fórmula carnavalesco-política envolve a arte de transformar miséria em riqueza, emprego em negócio, modéstia em ambição, inveja em competição. Quanto ao empreendedorismo, a mudança é de linguagem. Transformar os vícios, assim nomeados pela filosofia moral, em virtude. A cobiça virou trabalho (em excesso); ambição, dinheiro (em abundância); e ódio, inveja (em potência).
Sonhos impossíveis na realidade e, cativantes, como objetos de desejo dão lucro, vencem eleições.
Amor por vadios, drogados e desempregados, afasta. Justiça social, assistência aos necessitados e distribuição de renda são temas para mobilizar consciências no silêncio das igrejas ou do quarto. Virtudes não impulsionam a venda de qualquer coisa ou ideia. O enredo deve sugerir a fantasia das virtudes em gotas, sem desvendar as ambiguidades humanas, a raiva, o ódio, o prazer da desigualdade contido nos vícios, humanos. O que está embaixo do tapete, a vontade de ser rei, patrão, encontrar tesouros na internet e, com uma bala de prata mudar o mundo, são sonhos capazes de impulsionar boas ou más políticas. A arte é produzir a personagem, a roupa e a cenografia afinada com o sonho do bem.
O Pedro (Álvares Cabral, 1467-1520) explica o lado triste do Brasil. Desde o período colonial os vadios eram perseguidos e presos. O ócio, considerado pecado, não era bem visto. Expressão de ausência de trabalho, desde há muito, ficar à toa, perambulando sem direção, sugere desapego à produção de riqueza. Completando a explicação, na modernidade, o velho Marx (1818-1883) acrescentou o fato do lumpesinato não ter voz nem papel político em razão de sua ausência no processo de produção de mercadorias. Muitos personagens envolvidos com a defesa dos aflitos, abandonados, despossuídos, têm bom coração, mas não agregam votos, apegados à realidade, ou fora do mercado, da greve, do sindicato ou de qualquer associação.
Os motoboys, nos últimos anos, têm chegado em grande quantidade aqui no céu. Dão entrada muito machucados, com fraturas nas pernas e morte cerebral causadas por acidentes de trânsito. Estão cansados de trabalhar num trânsito infernal, sem lugar para ir ao banheiro, respirando fumaça por mais de oito horas, sacrificam a vida para levar dinheiro para casa. Eles odeiam os vadios, invasores, drogados. Ouvindo suas histórias de vida, é possível compreender. Preferem se espelhar em gente musculosa, bonita, sem chefe e com perfil de vencedor. É compreensível, para quem vive neste ritmo, irritar-se com a lentidão dos idosos, com gente de pouco músculo, fracos, doentes da cabeça, invasores de propriedades alheias, criaturas dispostas a jogar o tempo de muitas entregas, com conversa fiada. Eles apostam em gente com capacidade de vencer, sem mi-mi-mi. Descontos para o Estado? Não. Em acidentes com buracos nas ruas, o problema não é o pneu do carro, é a vida.
Onde está o Estado? Foi na festa do pix?
Em uma cidade sem banheiros públicos, sem sinal de internet em zonas periféricas e repleta de bandidos roubando o celular, instrumento de trabalho valioso, é difícil apostar no bem comum. Se o Estado é um bom sujeito, que aparente ser bom.
3. Já a nuvem dos teólogos produz reflexões sugestivas sobre as eleições e a esquerda no Brasil. Não podemos esquecer: Pindorama é um país católico de velha data. Eles explicam: parte do mistério eleitoral está na Teoria da Graça. Os antigos pensam de uma maneira, os modernos, reformados, de outra. O Nordeste brasileiro pensa de uma maneira, antiga, o Sul de outra, moderna. Pensam e votam de maneira diferente. A esquerda no Brasil é herdeira de um humanismo arcaico: gente é gente, coisa é coisa. Tem almoço de graça. Afinal, a Graça é dom gratuito. (Já para o outro grupo não tem almoço de Graça.)
Dito de outra forma, sucesso em um empreendimento, dinheiro sobrando e, mesmo, uma boa ação não explicam o dom da Graça. Repito: o dom é gratuito. Uma pessoa pode fazer um péssimo negócio, perder todo o dinheiro economizado e ser O cara, a pessoa com quem a gente gosta de sentar à mesa e confia os filhos. Ele pode conseguir a salvação eterna e ninguém ficar sabendo. A Graça depende da fé. A Graça não dá sinais, não avisa, “cheguei”. Para os católicos, sucesso em uma vida empreendedora, e mesmo a impressão de bíblias não significam um empurrão para a obtenção da Graça. Negócio é só negócio. Tudo bem. Quando dá certo é muito bom. Vira comida, casa, carro, aumenta o número de amigos e almoços (de Graça). Empreender, quando dá certo, é dádiva do investimento, da análise do mercado e da sorte (acaso). Mas ninguém vira santo, não ganha Graça e nem a vida eterna fazendo negócio.
Negócio (empreendimento) não é pecado.
Você pode estar me perguntando, qual a relação desta história com a eleição, segundo a nuvem dos teólogos, onde vivem discutindo dominicanos, jesuítas e franciscanos? Faz parte do hábito do grupo discutir, com ciência (consciência) e dar comida para os pombos.
O Brasil arcaico é católico. Gente, segundo a tradição antiga, com alma. Motivo de muita discussão entre Bartolomeu (de Las Casas, 1484-1566) e Juán (Ginés Sepulveda, 1489-1573) sobre os índios e seus costumes. Os dois teólogos discutiram no limite de suas forças e inteligência e prevaleceu a ideia de humanidade una, embora escalonada (em graus de civilidade. Não de gênero).
O voto de pobreza, no franciscanismo, significa renunciar às coisas pelo reino de Deus. Os limites entre criaturas e Deus são claros. Gente faz parte do grande bloco da criação, os humanos: rico, pobre, preto, branco, amarelo, marrom. Se surgir um azulzinho, colocam junto no pacote de nome: Criaturas (criação). Amam a natureza e, ao longo da história, as imagens franciscanas agregam animais. Atual. Mas andar vestido de pobre e pregar o cristianismo nem sempre deu certo. Os franciscanos foram perseguidos e executados por crucificação em Nagasaki.
Já os jesuítas foram mais hábeis em observar os diferentes usos e costumes dos chineses. Afinaram a escuta. Olharam para as roupas dos mandarins, na China, aproveitaram a beleza e a fartura de seda, não abriram mão do brilho. Copiaram a cenografia. Mudaram até a forma de rezar a missa para não dar as costas para ninguém. Respeito à cultura dos Outros. Especialistas em cálculos fizeram com muita ciência cálculos para estimar o eclipse do Sol (julho de 1730) e vencer a competição no Tribunal das Matemáticas, em Pequim, 1731. Como recompensa, conseguiram dois degraus de precedência na Ordem dos Mandarins. Ganharam poder, por sabedoria, entendimento e ciência (razão). Uma pomba voou.
A esquerda precisa aprimorar a escuta e compreender o lugar das diferenças do Brasil arcaico e do moderno. Os negócios, ou, como chamam hoje em dia, o empreendedorismo, palavra da moda, é apenas uma antiquíssima atividade em países com mercado singelo e economia de mercado complexa. O necessário é separar o empreendimento, sucesso ou derrota no negócio, da interferência divina e das formas para se obter o poder. O perigo mora no vínculo retórico transformador do dinheiro em virtude, medida de todas as coisas. Gente vira coisa.
Neste pacote de inversões, a generosidade, e outras virtudes (humildade, temperança, justiça) típicas do mundo arcaico, se tornam veneno na propaganda eleitoral, em tempos de modernidade. Tempos de ira, inconstância e injustiça justificada eleitoralmente. Na origem, generosidade é força. Faz parte das doçuras humanas. É riqueza, no mundo arcaico. Não é patrimônio no mundo moderno, nele o lugar de destaque é dado para a ira, para a injustiça e para vaidade. Narcisismo contemporâneo.
Resumo da ópera:
Em matéria de apoio político, para colocar muita gente na avenida, para ganhar as eleições, o entendido em fantasia e em enredo, com Graça, é o meu querido amigo Joãozinho Trinta. O solvente do ódio, tipo Trinta, é a alegria. Existem outros.
P.S. Em caso de dúvida contratem: Trinta Advogados Associados.
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