1964-2024: 60 anos depois do golpe

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 22/04/2024 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 24/04/2024 às 16:05

O golpe

É fato ter ocorrido, em 1 de abril de 1964, um golpe. O presidente João Goulart foi deposto por meio de uma eleição indireta do Congresso Nacional, a partir de um argumento, sem fundamento constitucional, defendido por Auro de Moura Andrade (vacância da sede do governo, o que deu justificativa para o Congresso Nacional declarar vaga a presidência da República).

O presidente não havia sequer deixado o país. Estava no Rio Grande do Sul.

Os Atos Institucionais, decretos com força constitucional elaborados pelos militares, foram o artifício utilizado para limitar o poder do Congresso e reprimir organizações da sociedade civil contrárias ao golpe. O cenário internacional era marcado a Guerra Fria, favorecendo o combate indiscriminado a qualquer manifestação com cheiro de esquerda.

O militar eleito, em 11 de abril de 1964, foi o marechal Humberto Alencar da Castelo Branco. Os Atos Institucionais permitiram a cassação de mandatos políticos, a suspenção de direitos políticos e o expurgo de 49 juízes e 50 parlamentares. “Calcula-se, em números conservadores, que mais de 1.400 pessoas foram afastadas da burocracia civil e em torno de 1.200 das Forças Armadas”, afirmou o professor Boris Fausto, em seu História do Brasil. Neste mesmo ano foi criado pelo general Golbery do Couto e Silva o Serviço Nacional de Informações (SNI).

A tentativa de golpe

É fato ter ocorrido, no dia 8 de janeiro de 2023, uma tentativa de golpe. O artifício utilizado para a preparação do golpe foi desacreditar o sistema eleitoral (dentre outros). Tática utilizada na atualidade pela extrema-direita para favorecer o desmonte interno das instituições democráticas. O “modelo”, como projeto político da extrema direita, foi utilizado nas eleições norte-americanas e no Brasil.

Apesar de algumas semelhanças entre 1964 e 2023, a conjuntura internacional é distinta, dificultando um golpe “à moda antiga”. Hoje, o perigo é a corrosão das democracias, das instituições democráticas, pela extrema direita.

Em caso de dúvida, basta observar o atentado ao Congresso norte-americano e o esforço da extrema-direita em desacreditar o sistema eleitoral, a votação, as urnas, as instituições democráticas.

O perigo (ameaça à democracia) é a pauta atual.

Como evidência observe-se o fato do Ministério Público ter ajuizado, no dia 3 de março de 2024,uma ação civil pública contra a União, para determinar a retirada da referência à data do golpe militar, como “revolução democrática”, num quartel do Exército em Juiz de Fora.

Sobre a memória

Toda memória se constitui e se reconstitui em meio ao tecido social. Depende de gente disposta a contar. Alguéns com tempo para relembrar, repetir, reelaborar. Faz parte da memória museus, bibliotecas, arquivos, cemitérios, autobiografias e lugares simbólicos, gerando comemorações, peregrinações e festas emblemáticas. Memória tem vida longa. Depende de humanos enraizados em sociedade capazes de narrar, dar sentido ao vivido do ponto de vista pessoal e histórico.

Foram inúmeras as manifestações realizadas pela sociedade brasileira ao longo do mês de março e na data do golpe de 1964. A desmemoriada sociedade brasileira, lembrou! O golpe faz parte da memória social.

Cito alguns exemplos. A Pinacoteca e o Memorial da Resistência realizaram em conjunto exposição Sol fulgurante: arquivos de vida e resistência” e, em abril de 2024, foi apresentado o documentário Maurina, O outono que nunca acabou, sobre a freira presa durante a ditadura militar. Um momento importante foi a anistia de Clarice e Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto no DOI-Codi, em 1975. O filme Vlado, 30 anos depois, obra de João Batista de Andrade, manteve, com o passar dos anos, a chama da memória acesa.

Depoimentos como de Chico Buarque, disponível na rede, e documentários apresentados e reapresentados na TV, no rádio e em todos os meios de comunicação são exemplos de memória, repetida e reelaborada pelos viventes.

O golpe é fato de memória.

Memória institucional e memória histórica

Quem garante a memória é a sociedade na pessoa dos seus tecelões. As instituições podem favorecer ou desfavorecer uma determinada narrativa, mas o que está enraizado no corpo social volta a brotar. Memória é semente.

É penoso compreender o silêncio sobre o golpe em um país onde o presidente eleito foi perseguido durante a ditadura militar.

Mas, silencio é arte. Arte literária e, especialmente, arte política. Dostoievski, em Uma criatura dócil, cita onze tipos de silêncio: desdenhoso, orgulhoso, redobrado, insolente, trágico, intenso, sofrido, mortal, prolongado e continuo. Cada um mais complicado do que o outro como a nossa própria natureza. Na política os silêncios podem salvar vidas.

Dada a fineza do tema, é melhor não julgar.

O presidente optou pela prudência.

Certo ou errado?

Um presente. A retórica argumentativa e a narrativa

Existem argumentos sólidos para concordar com a prudência e para discordar do silêncio. Governos podem atuar de diferentes formas no trato com a memória, dependendo da conjuntura política. A cidade de Macau, na China, por exemplo, tem uma memória histórica chinesa e outra memória histórica portuguesa. Sequer posso dizer, Macau cidade fundada em… As diferenças tornam as duas narrativas instigantes, cada qual à sua maneira.

Ganhei de presente de uma aluna em Macau, China, um verso chinês traduzido para o português. Ela, de forma elegante, me explicou como a retórica argumentativa é disputa e, portanto, só tem um vencedor, e como a narrativa permite a negociação. De forma delicada, explicou a diferença entre o chinês e o português e suas consequências políticas. Diferenças no pensar e formas de narrar distintas. Disse ela: a retórica é a maneira – apenas – do Ocidente dizer a coisas. Existem outras maneiras, gentis, sem fazer com que o oponente perca a face e continue negociando.

Divido com os meus leitores o presente da minha aluna:

“Suponhas que argumentas comigo.
Se me venceres, e eu não a ti, estarás tu necessariamente certo, e eu necessariamente errado?
Ou se eu vencer-te, estarei então, eu na realidade certo e tu errado?
Neste caso terá que haver sempre um que esteja certo e outro que esteja errado?
Ou estaremos ambos certos, ou ambos errados? ”
Livro de Zhuang Zi

Ela sempre pedia para que eu contasse uma história em cada aula. Ficaria mais fácil compreender o incompreensível Ocidente. Aproveitei a sugestão. Virei uma “contadeira” de histórias e Histórias.

Uma narrativa do tipo memórias políticas

Ainda jovem, tive um amigo, da espécie homem-memória (entre outros). Especialista em memorização de eventos políticos recheados de personagens reais. Iniciou o treino, desta capacidade mnemônica nos estudos para o exame do Itamaraty, no tempo em que só aristocratas faziam parte desta corte. Sonhou, até o final da vida, com o exame de línguas. Lembrava sempre de uma tradução literária que envolvia cordames de uma embarcação. Técnica sofisticada (tradução) e antiga para evitar a aprovação de forasteiros no Itamaraty.

As histórias contadas pelo homem-memória, formado em colégio jesuítico, eram longas e detalhadas. Iam da criação do mundo à redenção dos corpos. A parte mais sugestiva e verdadeira tinha início na Segunda Guerra Mundial. Ele ainda jovem trabalhou no programa de imigração de deslocados. Por experiência profissional também conhecia os desafios do Oriente-Médio. Hoje, em razão do conflito em Gaza, sinto falta da conversa. Sua participação no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) fundava as nossas controvérsias, em razão dos dilemas vividos pelo Brasil, um país, como dizia ele, eternamente perigando ter um futuro brilhante atrás de si.

Sua narrativa, marcada pela atuação como deputado federal, servia como observatório da política onde a condição humana, não raro, encontra seus limites. Amigo de Amaury Banhos Porto, diplomata com atuação no Oriente, introduziram na conversa vivências das quais eu estava distante. Histórias do Egito, Marrocos, Japão e da China. Amaury, criatura humana admirável, experimentou perseguição política silenciosa por anos. No final da vida, o grande especialista em Ásia-Pacífico conseguiu o cargo de embaixador e, aposentado, na USP encontrou lugar para as suas pesquisas sobre o Oriente. Escreveu as cartas de Cingapura refletindo sobre o processo asiático de desenvolvimento no seu nascedouro.

As amizades, em época de perseguições políticas, envolvem um companheirismo de raiz, natureza de amizades forjadas em tempos de perseguição e guerra. Lembro também de Antônio Houaiss, perseguido político em 1952, reintegrado em 1954 e aposentado compulsoriamente em 1965 pelo Ato Institucional no. 2.

Artesão brilhante das palavras, foi cozinheiro e exímio apreciador de vinhos. Amigo.

Foi de igual modo um apreciador da boa mesa, escrevendo livros e artigos sobre o assunto. Aliando teoria e prática, era considerado um excelente cozinheiro que levava para suas criações a mesma liberdade que trouxera para a língua portuguesa. Um de seus livros é dedicado à cerveja: “O bebedor de cerveja é cordial, não um porrista como o uisquidor. Um bebe porque está alegre. O outro porque está amolado”. E arremata: “Cerveja é para quem anda de bem com a vida”.
Folha de S. Paulo, 08/03/1999. Texto de Carlos Heitor Cony

Como foi importante reunir os amigos de diferentes gerações. Escutar histórias.

Embora nossas posições políticas e idade fossem distintas, a amizade com o homem-memória e sua “turma” persistiu até a sua morte. Aposentado, liberto dos limites da linguagem diplomática, narrava histórias dos políticos brasileiros. Narrativas marcadas por luz escassa e sombra abundante. Seu francês proustiano incorporava antropofagicamente histórias da vida cotidiana nos municípios brasileiros, no coração baiano do Brasil. Era conversa boa. Mistura de política brasileira com literatura estrangeira. Brincava que só conhecia o Brasil, de fato, quem tinha feito campanha política e almoçado, em diferentes municípios brasileiros, a mesma maionese com batata. Como ele tinha sido eleito deputado federal pela Bahia, eu acreditava no seu conhecimento municipal com base na maionese/campanha/batata.

Tinha lido Proust para treinar o francês quando jovem (para fazer o exame do Itamaraty) e sabia muitas passagens de cor. Em um encontro em casa com amigos, rimos muito em companhia de Serge Gruzinski, historiador francês. Ele qualificou a conversa como o encontro entre a língua francesa atual, a dele, um francês proustiano, do homem-memória, e um francês corintiano, o meu. O historiador, com livros publicados sobre mestiçagens, encontrou entre a comida e o papo ingredientes saborosos sobre o Ser brasileiro, objeto de sua análise no almoço.

Lembrei das narrativas escritas de Levi Strauss sobre as elites brasileiras e seu amor pelos franceses e do filme de Nelson Pereira dos Santos, Como era gostoso o meu Francês (1971). Alegoria cinematográfica do Brasil. O filme conta a história antropofágica de um viajante alemão, Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás.

Antropofagia sempre é um prato-tema saboroso.

Gostava de juntar gente diferente para discutir soluções para o Brasil. Assim, passávamos horas desenhando soluções para Pindorama. Ambos de acordo com a impossibilidade de uma política externa independente, sonho do passado. Em um mundo globalizado, o homem-memoria imaginava, com detalhes estratégicos, um porto no Pacífico para o Brasil. Baratearia o frete para o Oriente, sem deixar de lado, lógico, o melhor, a insondável alma humana brasileira.

À moda do Ocidente retórico, a constante nas conversas era a crítica à premissa apresentada, qualquer uma delas. Lá estava o não no começo da frase, para dizer sim ou para dizer não. Coisa de retóricos e juristas. Em matéria de política, o homem-memória tinha um prazer narcísico em afirmar que os uspianos, vaidosos por natureza, supunham conhecer toda a missa (política). Doce ilusão. O Brasil profundo, lembrava ele, é conservador na raiz. Abandone as ilusões. O Brasil calado, difícil de desvendar, tem amor incontido pela irracionalidade. Hoje, a chamada irracionalidade, virou ódio.

Repetia centenas de vezes: Faça política pensando nos conservadores o tempo todo. Este é a primeira carta do jogo.

Você já experimentou o amargo no DOI-Codi. Não esqueça 1964.

Relembrar

Lembrei, por analogia, de suas elucubrações sobre os riscos da política. Um andar na corda bamba, como na música O bêbado e o equilibrista. Memória cantada para não esquecer das Marias, esposa de Manuel Fiel Filho, morto no DOI-Codi em 17 de janeiro de 1976, e Clarices, esposa de Vladimir Herzog, assassinado n DOI-Codi, em 25 de outubro de 1975.

No eco póstumo de sua voz, a solução de um presidente equilibrista: Não autorizar eventos em torno do golpe, em 2024, permitindo, como ocorre em Estados democráticos, manifestações de Memória.

Lembrei da frase repetida por ele: Basta olhar para a história. Nem Getúlio Vargas, nem Jango Goulart e, nem mesmo Golbery do Couto e Silva conheciam a missa toda, razão pelo qual o último, o general, montou o SNI (Serviço Nacional de Informações). Para terminar, sempre vinha uma cutucada no estilo antigo: Não esqueça, ninguém sabe a missa toda… nem o presidente, nem a USP. Os que ainda conhecem um bom pedaço da política são os antigos gregos. Seja prudente e escape da cicuta. Frase, por amizade, repetida incansavelmente.

Rememorando a sabedoria e experiência do amigo na arte da política, imaginei o presidente do Brasil, olhando o Brasil do ponto mais alto da montanha. Enxergando o mar, a Marinha com 76 mil pessoas armadas, o céu, a Aeronáutica com 65 mil pessoas armadas, e a terra, o Exército, com 215 mil pessoas armadas. Um efetivo de 356 mil militares na ativa não é pouca coisa, em um paés com apreço pela farda, como bem demonstrado por Machado de Assis em seu conto, O espelho.

Lula conhece as ambições do Congresso e as instabilidades da democracia atual. Para um presidente com formação na luta sindical e no combate à ditadura não deve ter sido fácil optar pela prudência. Da mesma forma, deve ter sido espinhoso para o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Luiz de Almeida, ver o sonho de um museu voltado para a Memória e para os Direitos Humanos (proposta do atual ministro do STF, Flavio Dino) ser deixado para atrás.

Admiro a sabedoria grega em ambos, praticando o caminho do meio.

Como dizia o velho amigo-memorialista citado, fazer política é engolir sapos de todas as colorações e sabores. Os mais amargos fazem parte da própria saparia, em geral são branco e preto, os sapos caramelados são dos opositores, mantendo com o açúcar a brecha da negociação, se for necessário sobreviver às intempéries da política.

Esta pequena história não sugere conformismo, nem exclui os indignados.

A Prudência também ganha batalhas.

Muitas vezes evita o pior, o sangue, a barbárie e o Estado de exceção.

O pouco que se pode fazer, às vezes, é muito.

Imaginem um indivíduo indiferente às normas legais, entregue a sua “imaginação diabólica”, sem os mecanismos de controle do Estado. Um ser todo-poderoso se sentido autorizado para praticar as suas fantasias num Estado de exceção. Imaginem Elon Musk mandando na Galáxia. Quem vai ter dinheiro para pagar a passagem para um outro planeta, depois da destruição da terra, brinquedo dileto do super-rico?

A torcida do Corinthians terá dinheiro para uma viagem interplanetária?

Imagine sobrar na fila de espera de um foguete, em uma terra devastada, sem agua e sem comida?

De volta à terra. Recontar a história

De volta ao planeta terra, leiam o livro de Marcelo Godoy, A Casa da Vovó. Não é ficção. É fato, recheado de documentos e testemunhos gravados. O autor explica bem como funcionavam as coisas, na época da ditadura.

O livro é uma “biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar”, com detalhes do funcionamento de um Estado de exceção. Godoy mostra como indivíduos empoderados por governos autoritários e ditatoriais dão vazão para a sua perversidade. Justificam a tortura, a morte e o desaparecimento de corpos por ordem superior: são governos organizados para esconder a tortura, a morte e, distorcer a história dos fatos ocorridos.

Tortura, mortes e desaparecimentos

É importante narrar. Sempre.

Conheci JC, torturador do DOI, cujo nome de guerra era, Jesus Cristo. Ele se “apresentava orgulhosamente para os presos como um sádico”. A chamada Casa da Vovó, nome do livro de Godoy, designava o prédio onde funcionava a Oban (Operação Bandeirantes, depois DOI-Codi, Destacamento de Operações e Informações).

O uso das palavras “Casa da Vovó” e “Jesus Cristo” sugerem a compreensão, nos dias de hoje, das raízes do pensamento conservador brasileiro com foco na família, religião e cegueira relativa.

A narrativa de Godoy, a partir de depoimentos de agentes do DOI-Codi, é esclarecedora:

“Obrigaram Mari a subir em um banquinho e passaram-lhe uma corda pelo pescoço. Se ela não contasse o que sabia, iam enforcá-la. A corda foi passada por cima da porta da sala e amarrada na maçaneta do lado de fora. A todo o momento JC ameaçava a chutar o banco. Sem que Mari soubesse, Ubirajara desamarrou a corda, mas continuou segurando-a firme em suas mãos. Quando, finalmente, JC cumpriu a ameaça, chutando o banco, Ubirajara soltou a corda. A militante do Molipo caiu no chão desmaiada”.

Civilização e Barbárie são faces da mesma moeda.

Jesus Cristo

Dirceu Gravina, o JC citado no livro A Casa da Vovó, conforme informou a Policia Civil para o G1, foi investigador de Polícia, chefe na extinta Delegacia Regional de Polícia de Presidente Prudente e no 4º. Distrito de Polícia de Presidente Prudente. O ex-delegado foi professor no curso de Direito da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste) e em cursinhos preparatórios para concursos.

Dirceu Gravina foi educador, professor universitário.

Só a educação de crianças e jovens pode auxiliar a compressão das mazelas do mundo, auxiliando cada ser humano, em circunstância específica, evitar a barbárie. É preciso ensinar o que é estética romântica, o que é vida em sociedade e, principalmente, o que é livre-arbítrio. Desculpe, leitor, a complexidade necessária ao tema.

“O que nós denominamos de progresso é esta tempestade” (Benjamin). No momento em que se deposita na ordenação e intervenção jurídica uma expectativa de redenção social, não é inútil relembrar, com Freud, o fato de que o crime não é exterior à lei, mas pertence a sua determinação originária, e sempre se pode auscultar no coração da civilização o rumor da violência e da barbárie. (A questão do crime em Freud)

Em matéria de perigo à vista nada supera a normalização da violência.

Um filme e a história brasileira da ditadura

O filme Zona de Interesse, dirigido por Jonathan Glazer, cineasta britânico, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro exemplifica o fato. Um exercício cinematográfico da arte de narrar uma história. O protagonista, Rudolf Hoss, é o comandante do campo de concentração nazista Auschwitz, durante a Segunda Guerra. O diretor mostra, em linguagem cinematográfica, a “banalidade do cotidiano como banalidade do mal”. Um Eu dividido entre a família feliz e as violências profissionais praticadas por um obediente funcionário, diante de ordens para torturar, matar, desaparecer com os corpos. O sentimento de humanidade do protagonista não ultrapassa as fronteiras da sua família, dos Seus.

Família

Estava escrevendo este artigo e encontrei na internet o obituário de Dirceu Gravina, o JC, Jesus Cristo de A Casa da Vovó. Suas duas filhas expressaram publicamente, em matéria divulgada pelo G1, o pesar pela morte do pai. A primeira filha se refere ao delegado como pai maravilhoso, excelente avô, amigo, porto seguro. A segunda filha menciona a sua capacidade de amar e protegê-la.

A minha primeira ideia foi reproduzir neste artigo as palavras das filhas. Dormi recheada de dúvidas. Pai a gente não escolhe. Rememorei cenas, os tacos no chão da Oban, um rato, o medo, tentando compreender, como naquele na época um jovem de cabelos longos, cruel, sádico confesso, batizado de JC, era um excelente pai. Eu o conheci no interrogatório. Era impossível compreender a sua capacidade de amar as filhas. Mas era fato. Ele amava as filhas. Só as filhas.

Dúvidas, ambiguidades e incompreensões constituem os humanos. Em tese, é possível compreender. Na vida real, bem difícil. Somos homens divididos. Treinados culturalmente para separar o que é família e o que não é família. Adestrados para levantar fronteiras, estimular a cegueira, separar, separar, separar.

Cuidar da sociedade envolve zelo com os humanos, compreensão das circunstâncias e a capacidade constante de fazer amigos, beber shops no bar da esquina, jogar bola, sentar junto na mesa, com-viver (viver com outros além da família), enfrentar a difícil tarefa da discórdia e a fácil, da concórdia. Coisas das gentes.

Eu mesmo não sei, se sei.

Lembrei de Drummond. Dos homens divididos.

Peguei o livro. Li pela enésima vez.

Esse é tempo de partido
Tempo de homens partidos
(…)
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
(Nosso Tempo. Carlos Drummond de Andrade, 1945)

Memória é narração. Relembrar, repetir, reelaborar

Para contar uma história é necessário ter alguém disposto a ouvir. Memória é costura entre um e outro. Cada um conta um pedaço, resgata uma emoção, relembra de um ladrilho no chão, um buraco na parede, uma barata. Lembro. Eu tinha medo das baratas voadoras moradoras das bolhas emboloradas das paredes do Presídio Tiradentes. Memórias da ditadura.

Memória é assim, cada pedaço de história se junta a um outro, de outro memorioso, mais um e, mais um, assim, sucessivamente. São as gentes, juntas, as criadoras de narrativas, de memória. Algumas histórias sobrevivem, outras morrem.

A costura, a junção dos pedaços, quem faz é o tempo. Com gente disposta a contar, escutar ou mesmo ler o Jornal da USP.

P.S. Sugestão para os remendos no tecido social: Impedir torturadores e milicianos de se transformarem em professores.

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