Votações unânimes em colegiados acadêmicos, após pouca ou nenhuma discordância ao abordar temas polêmicos, não representam consensos. Estas concordâncias, em realidade, mostram autocensura por medo à retaliação ao emitir uma opinião.
Em recente resolução histórica, o Conselho Universitário da Universidade de São Paulo decidiu estender a política afirmativa, já consolidada para o ingresso de estudantes, à contratação de docentes e funcionários. Atrevo-me a pensar que uma votação na qual se deliberasse genericamente pela adoção de uma política afirmativa poderia ser aprovada, quiçá, por unanimidade sem discussão. Já a deliberação dessa política com a mecânica recomendada, em um colegiado sem autocensura, deveria ter sido precedida por livre discussão e dificilmente aprovada por unanimidade. Tanto a falta de discussão, quanto a unanimidade da votação, representam, a meu ver, autocensura e o receio de, ao discutir o detalhe, ser acusado de racista ou de fascista.
Em uma universidade, poucas ameaças à autonomia são tão perigosas como a autocensura, em particular em ambientes políticos democráticos. A autocensura ocorre quando docentes, ou alunos, limitam de forma voluntaria sua própria expressão devido ao medo de represálias. Muitas vezes, a autocensura surge em resposta a pressões sociais, climas políticos ou o potencial de riscos profissionais. Embora a autocensura possa parecer um mecanismo de proteção, ela representa perigos significativos para a liberdade acadêmica. Situações recentes sugerem que a censura, as perseguições e o medo da censura estão erodindo, lenta, mas seguramente, a liberdade acadêmica nas universidades brasileiras, alicerce da sua própria autonomia.
Longe de ser um preconceito pessoal, a minha percepção nada mais é do que uma sensação sustentada por experiências recentes e dados que tratam da liberdade acadêmica no mundo. A própria definição de liberdade acadêmica, apesar de não ser unânime, é um tema de discussão, pois esse termo vem sendo tratado de formas distintas. Será que o escopo hoje pode ser limitado ao ideal humboldtiano de proteção do ensino e da pesquisa nos limites da Universidade, e na área de especialização do estudioso? Ou a definição deveria abranger expressão, e talvez ação, em uma gama mais ampla de questões dentro e fora da Universidade? Hoje, a falta de acordo sobre a natureza da liberdade acadêmica dificulta o entendimento comum e a ação unificada.
Apresento duas definições como exemplo.
“A liberdade acadêmica é a liberdade de um professor ou pesquisador no ensino superior para investigar e discutir os problemas em seu campo acadêmico e para ensinar ou publicar resultados sem interferência de figuras políticas, conselhos de curadores, doadores ou outras entidades. A liberdade acadêmica também protege o direito de um membro do corpo docente de falar com liberdade ao participar da governança institucional, bem como de falar livremente como cidadão” [da American Association of University Professors].
Esta definição não contempla a instituição nem alunos e se refere exclusivamente a professores. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) define desta forma:
“Liberdade acadêmica é a liberdade dos indivíduos de expressar livremente suas opiniões sobre a instituição ou sistema em que trabalham, de cumprir suas funções sem discriminação ou medo de repressão do Estado ou qualquer outro ator, de participar de órgãos acadêmicos, profissionais ou representativos e de gozar de todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos aplicáveis a outros indivíduos na mesma jurisdição”.
Novamente personalista sem considerar o contexto institucional.
O Instituto de Ciência Política da Universidade Friedrich-Alexander, da Alemanha, publicou um Índice da Liberdade Acadêmica (ILA) que ordena 179 países conforme o seu grau de autonomia universitária. Antes de descrever os resultados deste documento, e como deveria ser feito sempre que se fala sobre uma ordenação de propriedades, é imperativo discutir os critérios utilizados para construi-lo.
Num trabalho de 2022, Janika Spannagel e Katrin Kinzelbach apresentam e discutem a validade dos indicadores que levaram à construção do ILA. O artigo discute as vantagens dos critérios propostos em relação a outros tipos de dados sobre liberdade acadêmica, detalha a conceituação dos novos indicadores e apresenta uma proposta de validação dos resultados. A meu ver, agora se tem, pelo menos, uma série de critérios objetivos que fornecem dados que parecem comparáveis, quantitativos e aplicáveis a todos os países que tenham universidades.
Um dos indicadores mais conhecidos sobre atentados à liberdade académica se refere a violência e repressão contra acadêmicos e estudantes. Contudo, estes dados têm limitações críticas, pois o foco exclusivo em eventos de repressão ou violência significa que, na ausência de violência ou perseguição política extremamente públicas e conhecida por todos, as restrições institucionais existentes e a intimidação sistemática permanecem não detectadas. Um efeito contraditório dessa omissão é que tais dados, obtidos em instituições onde a violência e a repressão inexistem, podem tornar ambientes muito repressivos, mas isentos de violência física conhecida, parecer comparativamente benignos. Liberdade acadêmica e liberdade de expressão são conceitos distintos, mas relacionados. Portanto, os indicadores de liberdade acadêmica devem considerar ambos.
Um problema comum à obtenção de dados sobre liberdade acadêmica mediante relatos espontâneos é a dificuldade de verificação independente, em especial em sistemas politicamente fechados, onde, aliás, atentados à liberdade acadêmica são muito mais frequentes. O cuidado das autoras na seleção de mais de dois mil especialistas do mundo todo, cujas respostas às perguntas já codificadas eram coletadas, codificadas e, muitas vezes, analisadas de maneira independente por membros do mesmo conjunto, pode ser analisado no artigo mencionado acima.
O novo Índice de Liberdade Acadêmica, obtido a partir das respostas verificadas, consiste em cinco indicadores sobre liberdade acadêmica, cada um dos quais é codificado por especialistas do país em uma escala predefinida de 0 a 4:
i. Liberdade para pesquisar e ensinar;
ii. Liberdade de intercâmbio e divulgação acadêmica;
iii. Autonomia institucional das universidades;
iv. Integridade do campus; e
v. Liberdade de expressão acadêmica e cultural.
Já que estes critérios se referem à liberdade acadêmica das universidades em determinado país, o índice não permite distinguir as diferenças existentes entre as universidades deste país. A integridade do campus avalia a preservação de um ambiente aberto de aprendizagem e pesquisa marcado (a) pela ausência de autocensura ou (b) por um clima de insegurança ou intimidação induzido de forma deliberada interna ou externamente no campus.
O Índice de Liberdade Acadêmica, versão 2023, fornece uma visão geral do estado da liberdade acadêmica em 179 países em 2022. Os resultados, obtidos usando os critérios descritos acima, indicam que a liberdade acadêmica está em declínio para mais de 50% da população mundial — totalizando quatro bilhões de pessoas. Esta atualização do índice identifica 22 países e territórios onde as universidades e acadêmicos gozam de liberdade menor hoje do que há dez anos. Durante o mesmo período, a liberdade acadêmica melhorou em apenas cinco pequenos países, que beneficia apenas 0,7% da população global. A liberdade acadêmica está estagnada na maioria dos países (152), muitas vezes em nível muito baixo.
Os valores relativos que medem o Índice de Liberdade Acadêmica variam de zero (nenhuma liberdade) até 1 (máxima liberdade relativa ao conjunto dos 179 países). Com poucas surpresas, os 19 países incluídos nos 10% onde se mede a maior liberdade acadêmica incluem países da Europa, como Bélgica, Itália, Alemanha, mas outros como Honduras, Argentina e Chile. Surpreende, apesar de toda a propaganda em contrário, que os Estados Unidos só se encontram entre os 40% a 50% dos países com maior liberdade acadêmica.
Para encontrar o Brasil, deve-se descer até os lugares mais baixos da lista, pois o índice calculado para medir a liberdade acadêmica do Brasil tem um valor de aproximadamente 0,4. O índice varia de cerca de 0,98 para Bélgica até 0,08 para Nicarágua e 0,02 para Coreia do Norte.
A deterioração evidente da liberdade acadêmica, bem como o ataque sistemático às universidades públicas no Brasil desde 2017, é bem conhecida. A forma como o ILA captou este estrago mostra, no trabalho citado de Spannagel e Kinzelbach, que a metodologia usada para calcular os índices, pelo menos no Brasil, é de fato adequada.
A emergência da autocensura nas universidades tem uma série de determinantes, e a polarização política produzida durante o governo Bolsonaro é somente um dos seus componentes. Os efeitos desta polarização, contudo, nem de longe acabam com os benefícios provenientes da eleição do atual presidente. A falta de discussão de temas polêmicos, como o mecanismo de implementação de políticas de ação afirmativa, mostra quão necessários são os foros de discussão nos quais os membros da comunidade universitária possam se manifestar livremente, sem autocensura. Ensinar, sem esta liberdade, restringe a nossa capacidade de formar cidadãos.
Enquanto persistir o medo a discutir com civilidade e sem ódio qualquer tema na Academia, é difícil que o Brasil saia do triste lugar que ocupa no Índice de Liberdade Acadêmica.
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