Levantamento feito por uma empresa especializada em algumas dezenas de países indica ser “123456” a senha mais adotada pelos usuários da internet em 2023, mantendo uma tradição de anos. O tempo para “quebrar” essa senha é inferior a um segundo. Mesmo senhas sofisticadas são vulneráveis a ataques cibernéticos cada vez mais poderosos, aguardando-se avanços das criptografias quântica e pós-quântica para afastar a “espada de Dâmocles” tecnológica que paira sobre as pessoas de bem. Senhas são também sujeitas a intercorrências funestas, como o seu esquecimento ou o falecimento inesperado do portador único. Essas situações têm gerado casos de perdas milionárias no florescente mercado de criptomoedas a agentes e a usuários, impedidos de acessar as suas contas.
Situações assemelhadas estão presentes na história real recente e em narrativas imaginárias antigas. Um episódio real dramático é o tratamento dado a contas dormentes de vítimas do Holocausto por bancos da supostamente neutra Suíça. Mesmo sabedoras das condições inusitadas que ceifaram a vida de depositantes que a elas acorreram nos anos 1930, como forma de proteger suas poupanças da rapacidade dos líderes nazistas e seus colaboradores, essas instituições mantêm a exigência de indicação da senha informada aos titulares originais. Vedam assim o acesso de grande parte dos herdeiros documentados às poupanças remanescentes de seus antepassados.
Um acordo para pagamento de uma indenização compensatória a sobreviventes do Holocausto por bancos suíços apenas acontece meio século após o término da Segunda Guerra Mundial. A mudança da postura dos bancos decorre da forte pressão internacional sobre aquele país, potencializada pela depreciação do capital reputacional dessas casas financeiras acarretada por uma reportagem investigativa que revela a sua ganância. Bancos renomados não se pejaram de fazer negócios com valores saqueados pelos nazistas nos países ocupados, inclusive ouro das próteses dentárias extraídas de pessoas que foram mortas nos campos de extermínio. Desmascarando a alegada neutralidade suíça, propiciaram à Alemanha recursos financeiros que contribuíram para o prolongamento da guerra e a consequente perda de numerosas vidas.
Ouro e rapinagem também estão na essência de uma das historietas que integra a coleção de tradições orais populares originárias do Oriente Médio e do sul da Ásia conhecida como As Mil e Uma Noites. Essa obra do século 9, que não tem um autor ou compilador definido, passa a ser difundida no mundo ocidental apenas a partir do século 18, quando é traduzida do árabe ao francês. Merece destaque ter o tradutor incluído narrativas não presentes na obra original, sendo uma dessas adições o familiar conto Ali Babá e os Quarenta Ladrões.
A historieta gira em torno de Ali Babá e de Cassim, seu irmão mais velho. Este assume os negócios do falecido pai e se casa com uma mulher abastada, tornando-se rico. Por sua vez, o irmão caçula se casa com uma mulher pobre e se torna lenhador. Um dia, ao trabalhar na floresta, Ali Babá avista um grupo de 40 ladrões em visita ao tesouro amealhado em roubos, que está armazenado numa caverna cujo acesso é bloqueado por uma grande rocha. A entrada se desobstrui ao se pronunciarem as palavras mágicas “abre-te, sésamo” e se veda novamente pelas palavras “fecha-te, sésamo”. Quando os ladrões se vão, Ali Babá, que entreouvira as senhas, entra na caverna e dela sai levando um único saco de moedas de ouro para casa.
Cassim, que é ganancioso, pressiona o irmão a lhe revelar a origem do ouro e as senhas de acesso à caverna. Na sequência, vai até lá com uma mula, para poder levar tanto ouro quanto possível. Consegue entrar na gruta pronunciando as palavras mágicas e carrega o animal. No entanto, em sua excitação pelo tesouro amealhado, esquece a senha necessária para sair. Confinado na gruta, ele acaba sendo encontrado pelos ladrões, que o matam. A história prossegue com os ladrões buscando Ali Babá para também o eliminarem. Contudo, numa elaborada trama, ele é salvo graças à astúcia de uma jovem escrava de Cassim, que mata os ladrões usando um ardil. Como recompensa, Ali Babá a liberta e lhe oferece o seu filho em casamento.
O que é ou quem é “sésamo”, da senha que passa a ser tão conhecida como a bisonha “123456”?
É sabido que, favorecendo a memorização em detrimento da segurança, preferimos frequentemente utilizar um nome pessoalmente significativo, como o de um animal de estimação, ao invés de ter de lembrar uma combinação esquisita de letras, números e caracteres especiais. É o que acontece com “sésamo”, que é sinônimo de gergelim (o nome científico é Sesamum indicum). Suas sementes são comestíveis e estão presentes em preparos alimentares de diversas culinárias, com destaque para a do Oriente Médio, onde a historieta de Ali Babá é gerada.
Nessa região formam a base para a pasta tahine, que acompanha os ubíquos humus e falafel, assim como para a halva, popular doce feito de sementes de gergelim torradas, moídas e misturadas com açúcar derretido e, ainda, para o za’atar, uma mistura de especiarias que é muito utilizada ali. As sementes do gergelim contêm elevado teor de óleo, assim como diversos princípios nutritivos importantes, contribuindo também para reduzir o nível de colesterol em humanos, o que aumenta o seu valor.
A familiaridade e apreço por essa planta nos diversos países do Oriente Médio torna o gergelim/sésamo, que em inglês se denomina sesame, a sigla identificadora de um empreendimento pioneiro, criado sob a égide da Unesco, que congrega cientistas de estados que não poucas vezes estão em conflito latente ou aberto. Essa articulação tem um duplo objetivo – avançar a excelência científica na região e construir uma plataforma de colaboração, diálogo e entendimento transfronteiriços entre cientistas com diferentes origens culturais, políticas e religiosas.
O Synchrotron-light for Experimental Science and Applications in the Middle East (Sesame), primeiro grande centro de pesquisa internacional do Oriente Médio, é uma fonte regional de raios-X síncrotron de terceira geração situada em Allan, na Jordânia. As obras começam em 2003 e a inauguração oficial ocorre em 2017. Os atuais membros do Sesame são Chipre, Egito, Irã, Israel, Jordânia, Palestina, Paquistão e Turquia. Observadores ativos de numerosos países, inclusive do Brasil, acompanham essa iniciativa. A visão comum que impulsiona o Sesame é a crença de que, mesmo no contexto de tensões e conflitos, os seres humanos podem trabalhar juntos por uma causa que promove os interesses de suas próprias nações e da humanidade como um todo.
A história do Sesame começa há três décadas na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, conhecida pela sigla francesa Cern. Trata-se de local propício para a concepção do projeto no Oriente Médio conflagrado, pois o Cern é constituído após a Segunda Guerra Mundial para ajudar a curar a Europa, e em particular a ciência europeia, de traumas ocasionados pela tragédia inimaginável ocorrida poucos anos antes.
O evento-marco da acidentada trajetória de implementação do Sesame começa, em 1995, com uma reunião de 100 cientistas da região e de outras partes do mundo sob uma tenda beduína no deserto do Sinai. Esse encontro é viabilizado pela decisão do então presidente egípcio de remover a política da colaboração científica internacional, e pelo apoio financeiro aportado por duas entidades de elevada credibilidade – o Centro Internacional de Física Teórica e a Escola Internacional Superior de Estudos Avançados, ambas baseadas em Trieste, na Itália.
Relato detalhado dessa saga venturosa por um de seus idealizadores e protagonistas está registrado numa publicação do Cern. Seu autor, professor Eliezer Rabinovici, é antigo diretor do Instituto de Estudos Avançados de Israel, sediado na Universidade Hebraica de Jerusalém. Ele preside atualmente o Conselho do Cern e é vice-presidente do Conselho do Sesame.
Visitante frequente da USP, em especial do seu Instituto de Estudos Avançados, Eliezer ministrou tocante conferência sobre a inspiradora jornada de concretização do Sesame por ocasião da primeira edição da Escola Avançada de Diplomacia da Ciência e da Inovação (InnSciD-SP), iniciativa no âmbito do programa Escola São Paulo de Ciência Avançada, da Fapesp.
No trecho final do depoimento escrito, o professor indica que “em numerosos aspectos o Sesame é um filho muito especial do Cern, e muitas vezes os nossos filhos podem nos ensinar lições importantes. Como presidente do Conselho do Cern, posso dizer que a maneira como os estados membros do Sesame se comportaram durante as décadas de tempestades que afetam nossa região serve como referência para manter pontes de entendimento sob as circunstâncias mais difíceis”.
A senha mágica do gergelim/sésamo abriu as portas da caverna do tesouro para Ali Babá. Também permitiu a realização de um sonho quase impossível, o da abertura do Sesame numa região explosiva, permitindo a cientistas de todo o mundo desenvolverem experimentos e colaborarem. Que essa senha igualmente ajude a abrir corações rancorosos e mentes empedernidas, fazendo com que a sigla BDS seja entendida e praticada na sua acepção benfazeja “Building Dialogue through Science”*.
*A autoria dessa acepção da sigla BDS é do Instituto Weizmann de Ciência.
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