A ciência pela história, episódio 3 – Pasteur, das vacinas à origem da vida

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 20/05/2024 - Publicado há 2 meses

A vida provém sempre de uma vida anterior?

As experiências de embriologia de Francesco Redi no século 17 e posteriormente as de Lazzaro Spallanzani no século 18 parecem responder afirmativamente à questão. Elas apontam na direção vencedora do debate ocorrido entre 1864 e 1872, que consagrou triunfalmente Louis Pasteur (1822–1895) contra o defensor da geração espontânea, Félix Pouchet e seus apoiadores.

Tem havido controvérsia entre historiadores da ciência a respeito de o resultado das respectivas experiências de Pasteur sobre o assunto ter sido mais favorecido pela sorte do que por sua metodologia experimental. De toda forma, a sorte apenas ajuda o espírito preparado e ele conseguiu naquela ocasião mostrar de forma convincente que os germes vindos do ar geravam vida em frascos supostamente herméticos.

Apesar de muitos pensarem que a vitória de Pasteur foi a palavra final sobre a questão da geração espontânea, ela permanece em aberto em termos do problema da origem da vida, para saber se a abiogênese é possível, isto é, se a partir da matéria inerte pode surgir a vida animada. O interessante é que o próprio Pasteur deu uma outra contribuição neste sentido, que tem sido pouco discutida em sua profundidade científica e que tem a ver com a assimetria molecular, como será visto adiante.

O que é mais conhecido a respeito de Pasteur é que, após uma fase de indecisão quanto à sua carreira, em que cursou várias faculdades, ele se formou na Escola Normal de Paris em 1845, estudando física, química e cristalografia. Na década de 1850, ele obteve sucesso ao colaborar com a indústria de bebidas alcoólicas, identificando a bactéria que azedava vinhos e cervejas, com grandes perdas econômicas. Verificou que aquecendo a bebida essa bactéria era morta, e que podia evitar nova contaminação selando o recipiente – processo que passou a se chamar pasteurização, de ampla utilidade na conservação de alimentos.

Nas décadas de 1870 e 1880 ele se dedicou à imunologia, tendo sucesso ao desenvolver vacinas contra cólera aviária, antraz e raiva. Sua fama possibilitou a criação em Paris do famoso Instituto Pasteur em 1887, logo seguido por várias filiais na França e em outros países – presente inclusive no Brasil, onde ganhou instalações recém-inauguradas na USP em março de 2024.

Voltando à questão da vida, o historiador da ciência John Farley afirma em seu livro The spontaneous generation controversy from Descartes to Oparin que a crença na geração espontânea não foi derrubada por provas experimentais como as de Pasteur. Estas só conseguiam provar que em casos específicos não tinha havido geração espontânea, mas não eram uma demonstração geral e cabal de sua impossibilidade. O sucesso de Pasteur naquele debate científico terminado em 1872 se deveu também a fatores sociais e políticos do momento, externos ao laboratório, pois tanto ele como seus prestigiosos apoiadores eram defensores da religião católica e da monarquia. Do outro lado, os adeptos da geração espontânea eram vistos na França como materialistas e ateus, perigosamente próximos aos cientistas da inimiga “nova Alemanha”, nação consolidada na segunda metade do século 19 com a ascensão da Prússia de Otto von Bismarck, e que infligira dura derrota em 1871 à França na Guerra Franco-Prussiana. Assim, crer na geração espontânea tinha nessa ocasião uma conotação de duvidar da origem divina da vida e ao mesmo tempo de simpatizar com a queda de Napoleão III decorrente daquela guerra e com o movimento da recente Comuna de Paris.

No entanto, de certa maneira, Pasteur mudou de opinião em relação à origem da vida ao longo de seus estudos sobre a assimetria da ação da luz polarizada sobre a matéria. O ácido tartárico, essencial para obtenção de vinho, e o ácido racêmico (ou paratartárico) são isômeros ópticos (substâncias com a mesma composição química, mas cuja disposição espacial das respectivas moléculas difere assim como um objeto difere de sua imagem no espelho). Uma solução de ácido tartárico derivada de compostos vivos girava o plano de polarização da luz que a atravessava. O ácido tartárico obtido sinteticamente no laboratório não tinha esse efeito. Por extensão, Pasteur audaciosamente concluiu que em geral os produtos sintetizados por organismos vivos seriam opticamente ativos, ao passo que as mesmas substâncias sintetizadas artificialmente no laboratório não agiriam sobre o plano de polarização da luz.

Um dos frutos dessa descoberta (que tem poucas exceções) foi a sua aplicação ao estudo da fermentação, estabelecendo que microrganismos conseguem diferenciar entre as formas dextrógira (giro da luz polarizada para a direita) e levógira (giro para a esquerda) para a consequente metabolização de compostos. Estabeleceu assim que a fermentação não era um fenômeno puramente químico, mas muito mais complexo, pois o fermento consistia em organismos vivos (leveduras, que são tipos de fungos), que se alimentam de substâncias presentes na mistura em fermentação. Acreditava-se até então que a fermentação era produto de uma putrefação.

Em 1883 Pasteur publicou um trabalho (A dissimetria molecular), em que considera a diferença entre a vida e a matéria inanimada. O importante papel da luz na sua interação com os cristais de isômeros ópticos o levou a supor que a luz solar interage em reações químicas com moléculas compostas por carbono, a base da vida por nós conhecida, de forma que os processos vitais aproveitam a referida assimetria entre direita e esquerda. Pasteur concluiu que a origem da vida poderia afinal estar envolvida em reações químicas de substâncias inertes e não na tradicional asserção de que o ser vivo sempre provém de outro ser vivo.

Houve uma reviravolta no início do século 20 em termos de admitir que a vida pode vir de matérias inertes, quando o trabalho com coloides e vírus sugeriu que a vida no nível subcelular poderia ter aparecido exatamente por geração espontânea. Assim, uma molécula com propriedades de um ser vivo poderia ter surgido por meio de uma combinação de moléculas inanimadas, como sustentado nas décadas de 1920 e 1930 pelo inglês John Haldane (1892–1964) e pelo russo Alexandr Oparin (1894–1980). Embora ambos os bioquímicos fossem ligados a partidos comunistas de seus países, a aceitação de uma origem abiogenética da vida não implica necessariamente uma adesão a algum tipo de materialismo, ou de ateísmo.

Para Oparin, o primeiro estágio para o processo da vida teria sido o aparecimento na Terra de uma atmosfera primitiva oxidante, com hidrocarbonetos, cianogênio e amônia – substâncias que haviam sido identificadas nas primeiras décadas do século 20 por astrônomos no espectro de estrelas. Num segundo estágio, apareceriam substâncias cada vez mais complexas nas águas quentes dos oceanos primitivos, formando uma “sopa primordial”. No terceiro estágio, apareceriam sistemas em que se misturam proteínas, lipídeos, hidrocarbonetos e, em seguida, algumas misturas adquiririam uma estrutura físico-química com porções diminutas de enzimas. Prevalecendo uma organização físico-química mais desenvolvida e capaz de troca de substâncias com o meio teríamos, por fim, o surgimento de organismos vivos primitivos mais simples – e o processo pôde continuar se complexificando até chegar às formas vivas atuais.

Em 1953, o norte-americano Stanley Miller (1930–2007), a partir dessas ideias, sintetizou em laboratório alguns aminoácidos dentro de um recipiente com atmosfera de metano, amônia, vapor d’água e hidrogênio, submetido a descargas elétricas e ciclos de aquecimento e resfriamento.

Embora o surgimento de uma primeira ocorrência de geração espontânea possa ter sido excepcional e único, nada impede que o fenômeno não possa se realizar mais de uma vez. Hoje em dia os estudos de exobiologia admitem até a possibilidade de transporte de formas de vida pelo espaço interestelar, mas naturalmente isto não resolve a questão de se essa vida foi gerada a partir de outra vida ou de materiais inertes.

É bastante interessante que o estudo de substâncias inertes, mas altamente organizadas, como os cristais, tenha levado Pasteur à hipótese de uma ligação de ondas eletromagnéticas (a luz) com a origem da vida. A história da cristalografia permite estabelecer uma elucidativa linhagem de pesquisas científicas relacionada com o estudo da vida. A retomada do assunto a partir dos trabalhos do francês Pierre Curie (1859-1906) favoreceu a descoberta (1912) da difração de raios X (que são também ondas eletromagnéticas), facilitando estudar a estrutura de cristais.

Foi devido a essa aplicação dos raios X em soluções de cromossomos que se conseguiu, décadas depois, em 1953, a descoberta da estrutura em dupla hélice da molécula de ADN e, a partir de então, abriu-se um novo campo de estudos, que é a genômica. Para alguns, esta estrutura permitiria a descoberta da lógica da vida – pretensão que não foi cumprida, mostrando que ainda falta muito para termos uma melhor compreensão de como surgiu e se desenvolveu a vida de seres complexos como nós.

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