Lula III e o se…

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e consultor político

 22/11/2022 - Publicado há 2 anos

Não será fácil. Com esta ênfase, tento abrir um raciocínio sobre o governo Lula III. Não se trata de ser pessimista, porquanto adiciono ao final desta frase a platitude: o Brasil é maior do que a crise. Mas o pacote de desafios a ser enfrentado pelo maior líder popular do País mostra que só mesmo contando com a certeza de que “Deus é brasileiro”, ele realizará as principais metas de seus compromissos.

Para começar, o desafio de acabar com a fome que atinge cerca de 30 milhões de pessoas. Ou, segundo sua recorrente promessa, garantir que todos tenham direito a três refeições por dia, o café da manhã, o almoço e a janta. 100, 150, 200 bilhões fora do teto de gastos? Haja Bolsa Família. Haja recursos. Que serão necessários para oferecer as mínimas condições de vida digna aos cidadãos.

E como cumprir essa meta com a ideia de transformar uma economia claudicante em um sistema forte, capaz de puxar para cima os índices de crescimento? Dá para tapar os imensos buracos que afundam as áreas da habitação, do saneamento básico, da saúde, da educação, dos transportes, da segurança pública? Como suprir as grandes demandas da população, sem recorrer aos orçamentos superdimensionados, aos recursos extraordinários, à quebra da ordem fiscal?

A par da frente interna, a administração Lula III elege a sustentabilidade do meio ambiente como prioridade com a qual o Brasil voltará a ganhar credibilidade e respeito das Nações. Essa será a senha que abrirá os recursos dos fundos voltados para preservação das riquezas naturais, a partir do bioma amazônico. Lula acaba de ganhar aplausos internacionais na COP27, no Egito, o que demandará urgentes esforços para tapar a buraqueira aberta pelo governo Bolsonaro no espaço devastado da floresta amazônica.

Querem ver mais complicações? Olhem para a equação partidária, composta, na Câmara, por representantes da direita, que passarão a ocupar 50% das vagas e, no Senado, por 44% dos senadores. A formação oposicionista será bem diferente dos tempos do Lula I, em 2003, e do Lula II, em 2008. Luiz Inácio, é oportuno lembrar, ganhou muita experiência nos anos de mando e comando, do PT e do País. Saberá como tratar descontentes, indignados, fiéis aos princípios franciscanos (“é dando que se recebe”), mas o custo será altíssimo para seu governo. Parcela dos quadros será atraída pelo gosto do poder, sob o império do pragmatismo, mas não percamos a noção de que os tempos serão abrasadores nos vãos e desvãos das casas congressuais.

O debate será acalorado. Desta feita, os fogueteiros terão aplausos das galerias ou, se quiserem, das ruas. O País está rachado ao meio, levando-se em consideração o fato de que muitos votos foram dados a Lula não por simpatia ou adesão ao seu ideário, mas por decisão do eleitor em querer dar um fim à era bolsonarista. Da mesma forma, muitos votos do capitão saíram de eleitores que não aceitam a volta de Luiz Inácio ao poder central.

Portanto, teremos de conviver, nos tempos que se abrem, com aplausos e apupos, aglomerações e palavras de ordem, movimentos de rua. Por mais que os poderes da República tentem se ater às suas funções constitucionais, as tensões aumentarão a temperatura social.

Lula promete um “governo além do PT” e com os ouvidos atentos ao clamor da sociedade organizada. Procurará expressar um discurso suprapartidário com a convicção de que as pressões serão a cada dia mais intensas. As entidades intermediárias, despertadas pela tuba de ressonância de grupos e categorias profissionais, subirão ao Planalto com mais frequência, com a noção de que o País caminha na direção de sua democracia participativa.

Naveguemos, agora, na corrente do “Se”.

Se o novo presidente conseguir ultrapassar a barreira dos 100 dias de governo, sem tumultos e barulhos, adensa o fio de esperança que impregna metade do país.

Caso as margens comecem a sentir os efeitos da política social, com a extensão do cobertor de proteção, uma onda de otimismo nascerá na base da pirâmide, sinalizando o transporte de parcela da população para os cômodos da classe C. Coisa para ocorrer na metade do mandato.

Se o Brasil escalar ao pódio da defesa do meio ambiente, as pedras do dominó, após caírem, voltarão a dar força aos jogadores, liderados por Luiz Inácio.

Teremos no meio do mandato do presidente eleito, em 2024, um ciclo de forte disputa, a eleição para prefeitos e vereadores, base do edifício político. As cartas serão realinhadas. Ali deverá ser construída a pista para uma nova decolagem do avião presidencial, prevista para ocorrer em 2026. O futuro a Deus pertence, diz a matreirice política. Nada disso, o futuro aos governantes pertence.

Dedico este penúltimo “Se” aos pilotos que acabam de subir aos ares. Saindo das tempestades, uma, duas ou mais borrascas, até divisarem os horizontes do amanhã, conseguirão dar sobrevida a seus percursos políticos. A recíproca é verdadeira.

Seja qual for a vertente vencedora, estaremos fechando as portas de 1964, com a aposentadoria de Bolsonaro e Lula.

O último “Se” vai para um senhor que sempre nos visita, nem sempre acompanhado de anjos: o Imponderável. Nesse caso, S.D.S. (Só Deus Sabe).


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