Divulgação científica na mira da justiça: quando os interesses de poucos superam as necessidades da maioria

Por Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP

 14/10/2024 - Publicado há 1 mês

Setembro de 2024 começou com um sabor muito amargo para a ciência e, sobretudo, para quem divulga ciência de forma séria e socialmente referenciada no Brasil. Afinal, duas cientistas foram condenadas por desmentirem um nutricionista que afirmava que o diabetes seria causado por vermes e, por isso, poderia ser curado com um suposto protocolo de desparasitação. A polêmica decisão da juíza Larissa Boni Valeris, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível, punia a dupla de cientistas Ana Bonassa (bióloga com doutorado em Fisiologia Humana e especialista no metabolismo do diabetes) e Laura Marise (farmacêutica-bioquímica e doutora em Biociências e Biotecnologia Aplicada à Farmácia), responsáveis pelo canal NuncaVi1Cientista com o pagamento de uma multa de R$ 1.000 por danos morais e a remoção do vídeo em que desbancaram as afirmações estapafúrdias do nutricionista.

Em tempo, o diabetes é uma síndrome metabólica decorrente de falhas na produção ou na ação da insulina, que leva a um aumento crônico dos níveis de açúcar no sangue. Apesar de suas causas estarem relacionadas a múltiplos fatores de origem tanto genética quanto ambiental, destacando-se o sobrepeso, o sedentarismo e hábitos alimentares inadequados, não existe nenhuma evidência científica do envolvimento de vermes ou demais parasitas. Estima-se que 537 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 10,5% da população adulta, viva com diabetes, que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, é uma das principais causas de cegueira, insuficiência renal, ataques cardíacos, derrame, amputação de membros inferiores e morte. Seu tratamento, que não envolve nenhum protocolo de desparasitação, pode ser feito gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Ao longo dos últimos anos e mais intensamente a partir da pandemia de covid-19, o papel e a importância da divulgação científica têm se alargado exponencialmente. Não basta mais apenas recodificar o conhecimento científico em uma linguagem acessível para informar a população leiga sobre o que é produzido pelas instituições de pesquisa científica ao redor do mundo, tornou-se premente trazer a discussão científica para o domínio público, de forma que a sociedade como um todo possa se interessar, compreender e dialogar sobre ciência. Em um mundo interconectado e permeado por uma perversa rede de desinformação, é fundamental que a sociedade cada vez mais se aproprie do conhecimento científico para nortear o seu processo decisório e com isso coibir a ação de “influenciadores” dedicados a vender emplastros Brás Cubas ou outras soluções miraculosamente estapafúrdias.

É nesse contexto de combate à desinformação generalizada que se espalha como erva daninha pelas redes que iniciativas desvinculadas da academia formal, como os canais NuncaVi1Cientista, Escuta a Ciência!, Blablalogia e individuais, como as de Mellanie Fontes Dutra da Silva, Karina Lima e Gabriela Bailas, para citar algumas, têm florescido. Os temas abordados são diversos: abrangendo desde a crise climática até a importância e eficácia das vacinas, passando por questões espinhosas como o uso de práticas pseudocientíficas por órgãos públicos. Essa atuação não se restringe apenas às redes, como exemplificado pela cruzada para erradicar a constelação familiar do SUS e dos tribunais brasileiros, que levou Gabriela Bailas ao Senado Federal em março de 2022. Tal prática, criada pelo nazista Bert Hellinger, não apenas integra, juntamente com a acupuntura e a homeopatia, o conjunto de Práticas (pseudocientíficas) Integrativas e Complementares em Saúde (Pics), institucionalizado pelo SUS, como tem sido usada em processos jurídicos para criminalizar e punir mulheres em disputas familiares.

Apesar do valor monetário da multa imposta às cientistas do NuncaVi1Cientista ser modesto, ainda mais perante os custos envolvidos no processo judicial para recorrer desta sentença, elas reconhecem o perigo que o precedente aberto pela decisão da juíza Larissa Boni Valeris representa. É aterrador conjecturar os desdobramentos dessa jurisprudência. Qualquer pessoa que desbanque afirmações falaciosas, falsas ou pseudocientíficas, expondo seus autores, está passível de receber um processo judicial e perder. Com isso, institucionaliza-se o assédio jurídico, efetivamente, calando a boca de pessoas interessadas em propagar informação de qualidade e, principalmente, de interesse da população. Ainda há a oportunidade de a justiça se redimir, pois Ana e Laura estão recorrendo da sentença que, ao final de setembro, encontrava-se suspensa em virtude da decisão liminar tomada na Reclamação (RCL) 72140. De acordo com o relator, o ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal (STF), o vídeo em questão contém apenas uma “manifestação de pensamento crítico à atuação de perfil público” sendo fundamentada em fatos e dados científicos.

Resta, contudo, a pergunta incômoda: que justiça é essa que pode condenar cientistas por fazerem o seu trabalho e deixar impune quem de fato atenta contra a saúde da população?

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