Qual é a matéria-prima da sociologia?

Por Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 15/01/2025 - Publicado há 2 meses

Escrevi este texto em meio às festas de final de ano, quando parece que quase ninguém mais presta atenção nos textos e nas notícias. Todos parecem em outro ritmo, entrando nesse movimento obrigatório de celebrações. Este período sempre me trouxe sentimentos ambíguos. Se antes eu não gostava dessa época pela ausência dos meus pais, hoje enxergo de outra forma. Depois destas ausências aprendi a romper com certos idealismos e, por mais duro que seja, aprendi que tudo é passageiro e agora celebro as pequenas coisas como as receitas que minha mãe fazia de um jeito único, ou a maneira caótica, simples e acolhedora como o Natal era celebrado em nossa casa.

Gosto dessa época entre o final de um ano e o início de outro, pois ela dá a sensação de que o ano realmente acabou e que, no próximo, poderemos iniciar algo novo. Mas a realidade não pausa, e nem sempre o ano traz coisas boas. Todos os dias algo acontece – preocupações, tristezas e, às vezes, alegrias, muitas vezes amplificadas pelas contradições deste período. É um tempo de excessos, de muitas compras, de preparativos, mas também de irritações e reflexões.

Nas últimas semanas, me peguei pensando no papel da sociologia em tudo isso. Como podemos analisar os encontros e desencontros humanos, as pequenas celebrações e frustrações e os limites cotidianos? Tentando traduzir o que vivemos e atribuir alguma racionalidade a isso. Um exemplo que sempre me inspira é o trabalho de José de Souza Martins, que também escreve aqui nesta seção de articulistas. Um livro dele de que gosto muito é Uma Arqueologia da Memória Social. Nele, Martins organiza sua história de um modo que nos convida a adentrar nela e perceber que toda experiência é socialmente construída e partilhada. Ou seja, reflete sobre uma história pessoal e, ao mesmo tempo, coletiva.

Além disso, Martins mostra como o imaginário de alguém oriundo da chamada (e talvez já em desuso, embora cada vez mais presente) “classe trabalhadora” do seu tempo foi se formando. E, como sempre gosto de frisar, não se trata de ser um ideólogo da própria vida. Pelo contrário, a verdadeira compreensão surge quando reconhecemos que nossa trajetória, a história que construímos e buscamos dar sentido, é simultaneamente retrospectiva e prospectiva. Ao pensarmos sobre a nossa história, podemos ver que não somos apenas um nome isolado, mas sujeitos cujas trajetórias atravessam e são atravessadas por um espaço social determinado. Com isso, é necessário compreender as condições objetivas em que nossa história se desenrolou, para, então, buscar sua superação.

É aqui que entra o trabalho do sociólogo, que deve ser capaz de exercitar a “imaginação sociológica”. Acredito que, no cenário atual, ela está em falta. Muitos trabalhos sociológicos recentes que li parecem simplificar demais os processos sociais ou cair em fórmulas conceituais prontas, isto é, encaixam a realidade naquilo que querem dizer. Pior ainda: frequentemente aparecem piruetas teóricas para conceituar premissas básicas, como a própria crise do sistema do qual fazemos parte. Outras vezes, vejo críticas repetitivas, que rendem publicações e aplausos fáceis, mas que não dizem muito de novo, apenas usam as categorias da “moda”.

Talvez isso se explique, em parte, pela precarização da profissão. O relatório da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) Onde estão os cientistas sociais? aponta que apenas um terço dos egressos das áreas de ciências sociais está empregado no mercado formal. Em tempos de produtivismo e exclusão, muitos acabam se adaptando ao sistema para não ficarem de fora, o que também limita o espaço para reflexões e críticas.

Tempos difíceis para as ciências humanas…

Nos últimos meses, ao trabalhar com geólogos, comecei a pensar sobre qual seria a matéria-prima da sociologia. Assim como eles vão a campo, lidam com sedimentos, separando camadas e analisando rejeitos, nós, sociólogos, buscamos nos depoimentos, práticas, culturas e políticas os vestígios que revelam as dinâmicas sociais.

Foi essa busca por relevância e atualidade que me levou ao campo da sociologia da energia, área à qual venho me dedicando. Recentemente, tive acesso a um texto de Carrosio (2021) que explora a evolução histórica da sociologia da energia como uma perspectiva crítica, identificando fases de intensificação dos estudos entre o técnico e o social. Ele sugere que futuras pesquisas devem focar nas interações entre energia, sociedade e desigualdade.

E aqui entra o trabalho do sociólogo: compreender a representação social e atribuir algum sentido a ela. Portanto, a matéria-prima da sociologia está nas relações sociais, nas contradições que emergem delas e na capacidade de interpretá-las. É um trabalho de reconstituição do social, que exige rigor, ética e conexões teóricas – mas sem cair no ecletismo vazio.

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