Desafiando os periódicos internacionais de alto impacto

Por Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP

 19/09/2024 - Publicado há 2 meses

Publicar em periódicos internacionais de alto impacto é uma diretriz de agências de fomento e de diferentes mecanismos de avaliação, que resulta na reprodução de assimetrias inaceitáveis sob a perspectiva ética. É deplorável drenar recursos financeiros escassos de países de baixa e média renda para pagar taxas exorbitantes de publicação, que enriquecem cada vez mais as empresas editoriais dos países desenvolvidos, favorecendo também a concentração de poder, dentro de cada país, em grupos de pesquisa que dispõem dos meios de alcançar estas publicações. Porém, a hipervalorização do fator de impacto e da internacionalização de publicações científicas acarreta iniquidades ainda mais graves, como a reprodução acrítica de visões de mundo largamente superadas pela realidade, empobrecendo a ciência e o pensamento, e limitando a relevância social da produção acadêmica. Sediadas nos países ricos, as revistas de alto impacto geralmente induzem agendas de pesquisa, métodos e enfoques que, embora apresentados como “neutros”, na verdade refletem os interesses e as perspectivas do Norte global.

No campo da saúde, a médica sul-africana Tirusha Naidu vem chamando de “ventriloquismo do Norte” a estratégia de conquistar financiamento e publicações científicas de alto impacto por meio da reprodução de posturas dos pares dos países ricos, no intuito de obter uma validação externa. Em outras palavras, trata-se de dizer o que os editores e revisores do Norte querem ouvir, na língua que eles dominam, e da forma que lhes agrada. Logo, sob o pretexto de “padronizar” publicações — frequentemente em revisões por pares altamente invasivas, senão desrespeitosas e violentas —, muito do que queremos dizer se perde no caminho, inclusive formas autônomas e críticas (e por isto mesmo fidedignas) de apresentar e interpretar dados e contextos.

O filtro do que é ou não uma evidência científica está em permanente disputa. A desinformação e o negacionismo científico galopantes infelizmente deram novo fôlego ao positivismo. A indispensável triagem do que é proposto às revistas pode deslizar, por ideologia ou por inércia, em direção ao apagamento sistemático de especificidades, métodos e inovações que supostamente não seriam assimilados pelos leitores, ou poderiam gerar controvérsias indesejadas. Trabalhos interdisciplinares, formalmente encorajados, na prática são avaliados por critérios oriundos das disciplinas dominantes, cujos métodos e referências são impostos sem pudor.

Eu diria, ousando uma comparação aventureira com o cinema, que parecemos diretores ou produtores levados a fazer periodicamente um blockbuster, sabidamente nutrindo um sistema perverso, como forma de sustentar, em paralelo, os filmes independentes que constituem uma verdadeira contribuição à sociedade.

Não obstante, precisamente em razão do poder do qual desfrutam, as revistas de alto impacto permitem atingir um público mais amplo em países cujas conjunturas e interesses são similares aos nossos. Isto explica que o movimento pela descolonização da saúde global, protagonizado por pesquisadores de origem africana e asiática radicados em países desenvolvidos, venha cavando espaços justamente nesses periódicos para criticar os sistemas políticos e econômicos, inclusive o editorial, e propor mudanças imediatas. Creio que Madhukar Pai, expoente da pesquisa global sobre a tuberculose, médico de origem indiana radicado no Canadá, representa exemplarmente este movimento, denunciando a persistência de um nefasto legado colonial, e clamando por novas práticas no campo da saúde global.

Foi sob esta perspectiva crítica — e, diga-se de passagem, em meio à fumaça de um Brasil em chamas — que recebemos na USP, em 4 e 5 de setembro, os principais editores do BMJ, antigo British Medical Journal, cuja sigla é atualmente o nome oficial. Eles vieram prestigiar a primeira reunião presencial do conselho editorial recentemente criado para a América Latina, do qual eu sou co-chair, ao lado de Miguel O’Ryan, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile. A descolonização da saúde global já veio pautada em nosso primeiro editorial, publicado em abril.

O editor-chefe do grupo BMJ, Kamran Abbasi, e a editora internacional Jocalyn Clark, ambos com larga trajetória em periódicos de alto impacto, compartilharam valiosas informações sobre o mundo das revistas médicas de alto impacto. Eles defenderam uma linha editorial independente dos interesses corporativos, em duas conferências abertas ao público que, em breve, estarão disponíveis no site da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A mesa foi coordenada por Patrícia Jaime, vice-diretora da FSP, e contou, como debatedoras, com Aylene Bousquat, presidente da Comissão de Pós-Graduação da FSP e membro da coordenação da área da saúde coletiva da Capes; e Marcia Theresa Couto, chefe do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina (FM) da USP.

Na reunião do conselho editorial do BMJ para a América Latina, a partir de um levantamento realizado pelo doutorando Paulo Roberto Trivellato (FSP/USP), discutimos um conjunto de recomendações voltadas à descolonização do campo editorial da saúde global, organizadas em três eixos: ética, forma e conteúdo. Participaram da reunião, além de Abbasi e Clark e dos já citados co-chairs, os membros do conselho Julio Croda (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul/Fiocruz), Mercedes Colomar (Universidade da República, Uruguai), Patrícia Garcia (Universidade Cayetano Heredia, Peru) e Pedro Cahn (Universidade de Buenos Aires, Argentina). É difícil avaliar as chances reais de conquistarmos as mudanças propostas a curto e médio prazo, mas é fundamental que elas sejam reiteradamente colocadas sobre a mesa.

A agenda dos editores do BMJ contou ainda com a visita ao projeto Quebrada Alimentada, no Jardim Julieta, Zona Norte de São Paulo, onde se encontra uma das chamadas “ocupações da pandemia”, abrigando desde o início de 2020 as primeiras pessoas desempregadas ou desalojadas em razão da covid-19. Fomos recebidos pela coordenadora do projeto, Adriana Salay , que nos contou como a parceria com a Unidade Básica de Saúde local foi decisiva para identificar famílias em situação de insegurança alimentar durante a pandemia, além de apresentar a cozinha-escola solidária, em fase de construção. Chamamos a atenção dos editores internacionais para a importância das respostas periféricas às emergências de saúde e dos métodos qualitativos de pesquisa, únicos capazes de captar a complexidade dessas experiências.

Também se realizou uma reunião de trabalho entre os editores do BMJ e os organizadores de sua agenda em São Paulo, liderada por Gabriela di Giulio, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade, no Centro de Estudos da Amazônia Sustentável (CEAS/USP), com apoio do Centro Observatório das Instituições Brasileiras (COI) e da Vice-Reitoria. O encontro discutiu temas para séries especiais no BMJ possivelmente focadas na América Latina. Abriu os trabalhos a apresentação de Claudia Moreno, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, na presença de José Ricardo Ayres (FM/COI), entre outros renomados docentes e pesquisadores.

Por fim, a programação do BMJ na USP só foi possível graças à parceria entre a FSP (Comissão de Pós-Graduação; Programas de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade, Saúde Pública e Nutrição; Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde-Nupens; Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário-Cepedisa), a FM (Departamento de Medicina Preventiva; LIM38 – Laboratório de Epidemiologia e Imunobiologia; LIM39 – Laboratório de Processamento de Dados Biomédicos) e o COI, com apoio de Capes e CNPq. Contamos, ainda, com o apoio à organização dos pós-doutorandos, pós-graduandos ou egressos Isabela Serra (Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública), Jameson Martins, Paulo Trivellato e Vitória Ramos (Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade), Pamella Liz Nunes Pereira (Cepedisa), Leandro Viegas e Luiza Witzel Farias (Instituto de Relações Internacionais da USP).

Nossos parceiros compreenderam a importância de, sem reverenciar o status quo, buscar alianças em espaços de interlocução como este conselho. Assim, esperamos avançar na construção de uma estratégia crítica e autônoma — brasileira, latino-americana e do Sul Global – no mundo das publicações internacionais de alto impacto.
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