Há quem considere que para alguma coisa ser verdadeira, ela não pode ser ambígua ou ambivalente, de modo que a verdade eliminaria as contradições, apenas aparentemente experimentadas no mundo. Debates atuais sobre identidade enfrentam estes pressupostos, produzindo separações e exclusões na história do conhecimento e das relações sociais. Por exemplo, se uma pessoa é parda, então não seria indígena, se algo é branco, não pode ser preto. Mas diversas experiências que acontecem ao longo da história nos mostram algo diferente.
Quando Pero Vaz de Caminha, em 1500, registrou suas impressões sobre a terra no primeiro documento escrito na história do que veio a ser posteriormente chamando Brasil, afirma ter encontrado pessoas pardas, um tanto avermelhadas. De modo que a primeira vez que o termo pardo foi utilizado aqui, foi, então, para descrever pessoas indígenas.
Muitos séculos depois o termo “pardo” passou a ser utilizado como categoria étnico-racial no Brasil. No censo de 1940 a categoria “pardo” passou a ser utilizada para definir a combinação de heranças africanas e indígenas na ancestralidade das famílias das pessoas brasileiras. Designada como mestiçagem, que não é reduzida a cor ou traços fenotípicos físicos, mas também remete à consciência histórica, ou seja, memória representada de experiências de vida.
As respostas ao censo passaram a exigir uma tomada de posição das pessoas entrevistadas, escolhendo por uma ou outra classificação para os fins de produção de dados populacionais. Com isso, promoveu-se também um apagamento da história, dado que ao responder simplesmente “pardo”, não são explicitados os nomes das comunidades de pertencimento.
A criação da categoria pardo se deu num período em que concepções eugenistas estavam em alta na ciência. Ou seja, a tese de que haveria diferentes raças humanas e que umas seriam superiores às outras. A ciência teria o papel de contribuir para a evolução racial, que significava a eliminação ativa daqueles ou daquilo que era identificado como inferior.
Estas concepções predominaram por décadas até serem derrubadas enquanto propostas cientificamente válidas. Isto só foi possível porque a boa ciência é aquela que tem disponibilidade para rever suas concepções quando diante de dados e argumentos pertinentes. É preciso abrir espaço para que tais dados e argumentos sejam produzidos em vez de eliminar e excluir os interlocutores que são seus porta-vozes. É relevante criar oportunidades de debate e dialogar sempre que possível.
As categorias socialmente difundidas participam da criação da realidade social de que as pessoas fazem parte, embora grande parte das pessoas permaneça em zonas fronteiriças, nas quais uma ou outra categoria não se adequa bem. Por isso se diz que a linguagem, em grande medida, cria o mundo. Ela fraciona o real e promove a percepção das pessoas e das coisas. Ao mesmo tempo, as experiências ambivalentes e ambíguas demandam a elaboração de categorias de análise, necessárias à organização dos sentimentos, pensamentos e das ações dirigidas para os fins de interesse pessoal e social.
É aí que a concepções de verdade duras, excludentes das ambiguidades e ambivalências, periga dar saltos desastrosos e violentos ao serem aplicadas para a solução de impasses concretos. O medo das misturas tende a produzir movimentos bruscos para eliminação daquilo que é tomado como ameaçador. O medo dos seres fronteiriços é, também, fundacional da psicologia enquanto ciência e profissão que lida com percursos de vida situados.
A feitura de novas categorias é uma forma de deslocar a questão sem, necessariamente, resolvê-la. Com criação de novas categorias há a possibilidade nomear identidades antes invisibilizadas, gerando novas fronteiras e novas zonas de indefinição. A mudança na classificação hierárquica, invertendo os pólos de dominância ou tentando igualá-los, por exemplo, o oprimido se tornar opressor, não enfrenta a questão de que existem dimensões que permanecem ambíguas ou desencaixadas e que demandam atenção cuidadosa. Diante disto, torna-se mais pertinente olhar para a história, e para as histórias que as pessoas podem contar, sustentando a possibilidade de lidar com o ambivalente e ambíguo, sem se apressar em formatá-los.
Uma pesquisa valiosa sobre como tecedoras Mapuche do Chile identificam suas produções, publicada em The Cambridge Handbook on Identity, organizado por Michael Bamberg, Carolin Demuth e Meike Watzlawik no ano de 2021, pode ser tomada como um caso paradigmático para as reflexões colocadas aqui. Nas belas produções indígenas de tecido, as mulheres produzem com pigmentos naturais usados pelos antigos e com pigmentos industrializados mais acessíveis hoje. Produzem grafismos da simbologia ancestral e grafismos modificados pelas exigências de comercialização, dentre outras pressões sociais contemporâneas. Quando perguntadas qual tecido é verdadeiramente Mapuche, as tecedoras responderam que todos são, porque todos foram feitos por pessoas Mapuche. Esta conclusão direciona o olhar para como as coisas e as pessoas são “feitas”, suas histórias, pertencimentos e não somente para o resultado do “produto” acabado no presente.
Ao falarmos de identidades sociais, chegamos a um entendimento de que para serem verdadeiras elas não precisam ser fixas e imutáveis ou sem contradições. É relevante olhar para os processos, como fomos feitos e por quem fomos feitos, para transgeracionalidade e ancestralidade do que existe hoje.
Compreender a continuidade das experiências em transformação supõe não perpetuar o apagamento da história com o olhar focado no presente. Há uma célebre expressão bastante utilizada pelo movimento indígena atual que diz “eu posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou” que traduz uma possibilidade de entender as identidades sociais de forma sofisticada. Também reconhecemos esta possibilidade na expressão poético-filosófica de Arthur Rimbaud com as quais dialogamos em estudos sobre suas cartas visionárias, ao afirmar “EU é um outro”.
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