Arte drag busca maior visibilidade e consolidação no meio acadêmico

As drag queens Rita Von Hunty e Kam Middle incorporam a arte performática drag na Academia, descrevem suas experiências e buscam entender o porquê da eficácia e sucesso da arte nesse ambiente

 29/03/2023 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 31/03/2023 às 12:50
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Drag queens e drag kings estão usando da sua arte para ensinar – Foto: Reprodução/Pixabay
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A arte drag é a arte de entreter com perucas loiras, saltos altos, roupas com lantejoulas e maquiagem expressiva. A extravagância sempre fez parte da performática drag. Embora bela no quesito visual, as pessoas que se vestem de drag sempre foram julgadas e marginalizadas, uma arte atrelada ao lado pejorativo do que se entende como cultura. A desconstrução desse conceito tem sido lenta mas certeira, tanto é assim, que ela já entrou em ambientes antes considerados herméticos, como o acadêmico. Drag queens e drag kings estão usando da sua arte para ensinar.

Rita Von Hunty, persona de Guilherme Terreri – Foto: Arquivo pessoal

Ao contrário do que muitos acreditam, a arte drag não está diretamente relacionada à identidade de gênero ou orientação sexual. Qualquer pessoa pode ser uma drag queen ou drag king. Essa prática tem raízes antigas, que remontam aos teatros gregos e ao Kabuki japonês, onde homens se caracterizavam como mulheres para representar papéis femininos, uma vez que as mulheres eram proibidas de integrar elencos nas peças teatrais. Alguns estudiosos acreditam que drag provém do polari, um dialeto inglês do século 19, um acrônimo para “dressed as a girl” (“vestido como uma garota”), supostamente presente em roteiros de teatro antigos, para orientar o diretor da peça. Uma anotação que até o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 – 1616) costumava fazer no pé de página de seus textos. Outros acreditam que a palavra vem do verbo em inglês “to drag”, arrastar em português. E se refere ao fato de que as longas roupas femininas arrastavam pelos palcos.

Com o tempo, o conceito de drag se atrelou a um ato político de respeito, representatividade e reconhecimento dos direitos dos membros da comunidade LGBTQIA+. Rita Von Hunty, personagem criada por Guilherme Pereira, professor de filosofia e sociologia que possui um canal no YouTube chamado Tempero Drag, com mais de um milhão de inscritos, sente a necessidade de esclarecer o conceito de ser uma drag queen, “não é uma identidade, é uma ocupação, uma ocupação majoritariamente artística onde se tem uma elaboração de uma personagem performática, mas que também traz consigo um reflexo político”. afirma.

Arte drag no meio acadêmico

Mais recentemente, esse universo chegou ao ambiente acadêmico. Lincoln Marques fez história na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto ao se apresentar como Kam Middle, seu nome drag, ao receber o prêmio de melhor apresentação oral pelo seu mestrado em cuidados paliativos, no 12º  Workshop do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da USP. 

Kam Middle, persona de Lincoln Marques – Foto: Arquivo pessoal

“No ano passado, tive a oportunidade de expressar minha arte drag e foi transformador. Um dos sentimentos que experimentei foi a sensação de segurança. Essa segurança me acompanhou no palco, em casa, na condução de meus trabalhos e até na escrita de artigos. A arte drag, por sua própria natureza, é inovadora, vibrante e linda, e ela reside dentro de cada um de nós. É como escrever um artigo científico – você tem uma ideia que é natural para você e a coloca no papel. Quando essa ideia é aceita socialmente, é uma sensação incrível. Por isso, ter a aprovação social é uma grande ajuda”, comenta Kam Middle.

Mas nem sempre foi fácil. Kam Middle compartilha relatos de discriminação e preconceito que enfrentou ao longo de sua trajetória. Apesar das dificuldades, ela vê essas experiências como fonte de fortalecimento e superação, o que lhe permite oferecer um conteúdo mais rico e uma  visibilidade ampliada. Para Kam, é crucial transformar o ódio em algo positivo e construtivo.

A drag receou a mesma discriminação no ambiente acadêmico pelo seu legado conservador, mas comenta ter se surpreendido. “O preconceito veio do mundo afora. Eu tive uma receptividade maravilhosa dos meus amigos, dos docentes e todos os outros profissionais do ambiente acadêmico, inclusive muitos vieram me elogiar. Definitivamente, um feedback muito positivo e que também me incentiva a seguir em frente”. Kam Middle tenta unir esses dois mundos: dar visibilidade à arte drag no meio acadêmico e mudar a visão tradicionalista por meio da drag. 

Por sua vez, Rita Von Hunty, aborda o assunto de forma mais científica. Ela explica o porquê da arte drag ter sido bem recebida no ambiente escolar e divide sua resposta em três vertentes. A princípio, seu enfoque é denominar a drag como uma ferramenta pedagógica não tradicional, uma vez que ela busca questionar a figura que pode ensinar e, portanto, a figura que pode aprender, causando um rompimento com o tradicionalismo de ensino e com a narrativa de história envolvida no processo de aprendizagem. Em segundo, ela comenta sobre o encantamento imagético que a drag produz, que ajuda a fixar a atenção para que a ideia do ensino seja passada à frente e, para ela, uma drag falando sobre temas intelectuais desperta muito mais a atenção do público, que está acostumado a ver homens brancos heterossexuais fazendo discursos. E, por fim, ela ancora o debate em uma discussão dos filósofos franceses Gilles Deleuze (1925 – 1995) e Félix Guattari (1930 – 1992), que fundamentam o conceito do professor midiático, também conhecido como showman. “Deleuze e Guattari, ainda na segunda metade do século passado, anteviram que a educação estava se midiatizando. E percebem, com alguma tristeza, que esse novo momento demandaria essa alma de pessoa de palco”, afirma.

Consolidação

Rita também discorre sobre suas expectativas quanto ao futuro das drags no ambiente acadêmico. “Eu espero que essa arte possa ir se consolidando tanto em campo de pesquisa e experimentação quanto em um campo de exercício das pessoas dentro das academias, em especial nas artes cênicas, porque inevitavelmente a arte drag ainda é uma forma artística que ocupa um lugar muito marginalizado”. 

Ela afirma que essa marginalização advém da influência neoliberalista nos meios acadêmicos, através do financiamento de projetos. “Grandes corporações e instituições financeiras que defendem a filosofia neoliberal têm investido cada vez mais em pesquisa acadêmica, em sua maioria com o objetivo de promover suas próprias agendas políticas e econômicas. Esse financiamento vem com a exigência de resultados que defendam os interesses dessas instituições, assim, as pesquisas são vistas como áreas chave para a promoção do neoliberalismo,” analisa.

Apesar do preconceito que envolve a figura drag, para Kam Middle, todos deveriam passar pelo menos uma vez por experienciar essa arte. “É uma transformação, pois a drag nasce como uma nova personalidade. E seus ensinamentos são diversos, com certeza ela irá te surpreender e iluminar uma originalidade da existência que você nem imagina,” conclui.


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