Contradições raciais no conflito Rússia x Ucrânia

Por Afrânio Mendes Catani, Eunice Aparecida de Jesus Prudente, Ricardo Alexino Ferreira e Rogério de Almeida, professores da USP, e outros autores*

 25/03/2022 - Publicado há 2 anos
Afrânio Mendes Catani – Foto: Reprodução/FE-USP
Eunice Aparecida de Jesus Prudente – Foto: Reprodução/Direito-USP
Ricardo Alexino Ferreira – Foto: Marcos Santos, USP Imagens
Rogério de Almeida – Foto: Reprodução/Facebook

 

A consolidação da Revolução Tecnológica da Informação aprofundou, por meio de plataformas, a globalização, permitindo ainda mais a constatação das notícias em tempo real. Entre essas notícias, destaca-se o conflito entre a Rússia e a Ucrânia.

Nesse conflito foram constatadas contradições nas relações raciais, revelando inequívoco racismo com a população civil no momento em que esta busca se evadir da guerra. Foi motivo de notícia confirmada na imprensa internacional o caso de populações de origem africana e asiática, incluindo crianças, mulheres e jovens, que têm sido vítimas de discriminação racista, uma vez que foram retiradas dos transportes coletivos que tinham como destino o além-fronteiras da Ucrânia. Tem sido ainda constatado que essa contradição é também reproduzida no acesso às ajudas humanitárias, situações de racismo omitidas por alguns setores da imprensa internacional outros veículos que as replicam em suas coberturas jornalísticas.

Infelizmente, vivemos dias em que os exemplos de como o racismo se estrutura nas práticas sociais e nos imaginários unem a tragédia da guerra na Ucrânia à tragédia do racismo. Nas práticas sociais, foram noticiados casos em que pessoas negras, africanas e seus descendentes, se viram impedidas de usar transportes de pessoas refugiadas da guerra, sendo obrigadas a sair dos meios de transporte e caminhar longas distâncias (25 a 32 km) para dar lugar em ônibus e trens às pessoas brancas.

Foram noticiados dois casos de crianças negras que foram retiradas do ônibus para dar lugar às crianças brancas, e o argumento foi que, por serem negras, seriam mais fortes para enfrentar as intempéries da viagem a pé. As condições de desumanização, sujeitas ao frio, à fome, à insalubridade, à ausência de assistência, foram reservadas para as pessoas negras. O racismo foi noticiado, e líderes de países africanos fizeram apelos humanitários às autoridades ucranianas, e sua evidência estava também nas autoridades polonesas, que negaram ou atrasaram em dias a entrada de refugiados negros. As pessoas que foram discriminadas incluíam indivíduos de classe média/alta, como alguns jogadores brasileiros de futebol que buscavam refúgio e denunciaram, eles mesmos, a discriminação em redes sociais.

No plano simbólico, o racismo mostrou-se estrutural no discurso do jornalismo internacional. Jornalistas de diversas redes tiveram afirmações racistas destacadas e criticadas em redes sociais. O conjunto de afirmações revela uma normatividade branca e europeia que opera com sentidos do racismo que propõe uma “estética ariana”, que compreende que traços de aparência de europeus do Norte são superiores. O fato de as diversas falas ocorrerem em tão múltiplos veículos de comunicação mostra a dimensão de quanto a normatividade branca europeia e os sentidos de superioridade ariana estão arraigados no imaginário, ocorrendo de forma muitas vezes não refletida/reflexiva nos discursos de uma grande multiplicidade de jornalistas e de meios midiáticos. A cobertura midiática orientada pelo racismo discursivo e estruturado nos imaginários sociais, também fica explícita nas marcas discursivas, consoante aos recortes das reportagens: as marcas de aparência (“olhos azuis e cabelos loiros”), de identificação mútua (“se parecem conosco”; “essa gente se parece conosco”); de normatividade de modelo de família europeia (“se parecem a qualquer família europeia que vive ao nosso lado”), de “civilidade europeia” (“cidade europeia”; “cidade civilizada”); de expurgo do outro (“não são refugiados do Oriente Médio ou do norte da África”; “fogos de mísseis de cruzeiro como se estivéssemos em Iraque ou Afeganistão”; “não estamos falando de sírios fugindo… estamos falando de europeus”).

Temos, portanto, exemplos de como a forma de acreditar na superioridade e modelo estético nórdico-europeu, de suposta civilidade europeia, de modelo familiar como formas de superioridade branca-nórdica, em oposição ao outro racializado e inferiorizado.

Diante dessa situação, em que se evidencia o racismo, nós, pesquisadores e pesquisadoras, professoras e professores, chamamos a atenção dos organismos internacionais para que concorram em proveito do fim desse violento e hediondo crime que tem constrangido a comunidade internacional.


*Também assinam o texto:
Aderito Fernandes Marcos, professor da Universidade de São José (USJ) Macau/China
Alexandre Siles Vargas, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
Ana Vitória Luiz e Silva Prudente, mestranda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Andréa Luciana Harada Sousa, diretora do Sindicato dos Professores/as de Guarulhos.
André Salgado, professor do Instituto Federal de Educação do Amazonas (Ifam)
Antônio Luiz Nascimento, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)
Aurélio Nogueira de Souza, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
Benedito Dielcio Moreira, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)
Carlos Eduardo Amaral de Paiva, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)
Carlos Roberto Elias, professor da Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares)
Celso Luiz Prudente, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)
Cláudia Maria Ribeiro, professora da Universidade Federal de Lavras (Ufla)
Cláudia Regina Reina, doutora em Ciências Sociais (IFCH/UNIAMP)
Cleber Santos Vieira, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) (Unifesp)
Eder Rodrigues dos Santos, doutorando na Universidade Federal de Rondônia (Unir)
Eduardo Pinto e Silva, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Eduardo Viana Vargas, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Eliane Costa Santos, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
Elisa Larkin Nascimento, pesquisadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO)
Evaldo Piolli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Evelyn Yamashita Biasi, pesquisadora do NETSS
Fábio Andrade, professor da Universidade Federal do Rondônia (Unir)
Flávio Carraça, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira/SP)
Flávio Pimenta Regente, coordenador da Associação Cultural Meninos do Morumbi
Gil Clarindo, presidente do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo (CPDCN)
Ginarajadaça Ferreira dos Santos Oliveira, pesquisadora no Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA)
Helena Teodoro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – LUPA/LHER/IFCS)
Hélio Santos, presidente da OXFAM Brasil; presidente do Pacto de Promoção da Equidade Racial
Hernando José Mejía Urrutia, pesquisador no Centro de Investigação Lisboa Algarve – Ilha da Madeira
Hilton Pereira da Silva, professor da Universidade Federal de Brasília (UNB)
Ivaldo Ananias Machado da Paixão, diretor cultural da Associação Cultural Afro-Brasileira Bloco Afoxé Camutuê Alaxé – ACABACA ORA SABÁ OMI
Ivan Cotrim, pesquisador na PUC/SP-CEHAL
Ivanir dos Santos, Babalawo e professor da Universidade do Federal do Rio de Janeiro UFRJ
Jacqueline Costa, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
Jair Ribeiro, membro da Parceiros da Educação
João Clemente Souza Neto, professor membro da Pastoral do Menor
João Lindolfo, pesquisador do Observatório Permanente da Juventude Universidade de Lisboa
João Paulo Pinto-Có, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau (Inep)
Jorge Ferrão, reitor da Universidade Pedagógica Maputo (UPM) – Moçambique
Jorge Luiz de Oliviera, conselheiro da Escola de Samba Vai-Vai
José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares)
Larissa Nepomuceno, pesquisadora da Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Lígia de Souza Cerqueira, pesquisadora da Universidade Católica Portuguesa Portugal
Lucilene Schunck Costa Pisaneschi, pesquisadora do NETSS
Luiz Carlos Ferreira, professor do Instituto Federal de Educação do Amazonas (Ifam)
Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Sorbonne Université
Luiz Fernando de França, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa/Afroliq)
Marco Antonio Fontoura Hansen, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
Marcos Moreira, professor na Universidade Federal de Brasília (UNB/Neab)
Maria Francisca de Moraes, pró-reitora de Extensão do Instituto Federal de Educação do Amazonas (Ifam)
Mônica Markunas, Pesquisadora do NETSS
Nsambu Baptista Vicente, professor do Instituto Superior Politécnico Atlântida – Angola
Otair Fernandes, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (LEAFRO/UFRRJ)
Paulo Morais-Alexandre, pró-presidente para as artes do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL) – Portugal
Paulo Vinicius Baptista Silva, superintendente de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Renato Noguera, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Ricardo Dias da Costa, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ/LEAFRO)
Ronald Acioli da Silveira, conselheiro da Fundação Viva Previdência
Sandra Jacqueline Barbosa, doutoranda da Unicamp
Sheyla Gorayeb Silva, professora do Instituto Federal de São Paulo; pesquisadora do NETSS
Silvio Romualdo Júnior, esportista diretor do departamento aquático do Sport Club Corinthians
Vinícius Santos Fernandes, vice-presidente do Conselho de Política de Ação Afirmativa (PRAE/UFMT)
Wilson Rosalia, membro da Academia Brasileira de Educação


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