Estamos todos exaustos, alguns mais exaustos que outros

Por Gerson Yukio Tomanari, professor titular do Instituto de Psicologia e superintendente de Assistência Social da USP

 27/04/2021 - Publicado há 4 anos
Gerson Yukio Tomanari -Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

Passado mais de um ano de pandemia, os profissionais das áreas da saúde que atuam nos atendimentos aos pacientes de covid-19 são os maiores exemplos de exaustão decorrente de condições de trabalho física e emocionalmente estressantes. Não bastasse isso, estes profissionais precisam lidar com o fato de que os seus esforços poderiam ser menos exauridos houvesse compreensão, empatia, sensibilidade, colaboração por parte da população no que diz respeito à prevenção. Diferentemente de uma catástrofe natural de grande porte, mudanças no comportamento das pessoas bastariam para reduzir consideravelmente sofrimentos e mortes e impactar menos negativamente a vida destes servidores.

Por um lado, há uma parcela considerável de cidadãos engajada em seguir rigorosamente os protocolos sanitários, mas que nem sempre tem suas necessidades atendidas satisfatoriamente pelo poder público.

Por outro, há um conjunto de pessoas que se recusa a seguir os protocolos sanitários. Este grupo tem como modelo lideranças políticas, esportivas e artísticas que parecem desconhecer o papel institucional que representam e fazem uso do alcance midiático que possuem para promover tão somente interesses restritos.

O vírus é invisível e os seus efeitos em cada organismo humano são relativamente incertos e distantes no tempo, do suposto contágio à possível manifestação de sintomas. Análises incompletas baseadas nesses fatos menosprezam a gravidade da pandemia e regem as ações do ignorante. Nesse quadro sombrio, buscar mudanças nas práticas sociais alinhadas com os protocolos sanitários requer agir ativamente na promoção de mudanças comportamentais. É insuficiente supor que tais mudanças acontecerão naturalmente, por efeito de maior consciência, empatia, senso cívico, responsabilidade social da população, entre outros mantras pouco efetivos. Frequentemente analisamos o “comportamento de um determinado grupo”, “comportamento da sociedade”, “comportamento da população” etc., desconsiderando que grupos não se comportam, pessoas se comportam em grupo.

Dentro de uma aeronave, prontos para decolar, os passageiros não hesitam em apertar o cinto de segurança ao comando dos comissários de bordo. Aqui, a relação funcional entre o comportamento e seus determinantes, a contingência, é simples e direta. A aeronave inicia a viagem quando todos estiverem devidamente presos às suas poltronas. Os comissários verificam um a um. Não apertou o cinto, ninguém parte. Esta é a razão imediata que faz que todos coloquem o cinto de segurança e sigam o mando sem contestação.

Dentro de um automóvel, ninguém ordena, mas muitos motoristas brasileiros colocam o cinto de segurança, pois é assim que têm evitado multas e garantido a sua percepção de segurança no trânsito. Certamente, o motivo não está exatamente em sua preocupação de, no caso de um acidente, não onerar os serviços públicos de resgaste, de saúde, de seguridade social. Apesar disso, do ponto de vista da sociedade, os tímidos efeitos do comportamento de cada indivíduo acumulam-se e atingem o ponto de impactar o grupo social como um todo.

Os programas de arrecadação de estados e municípios que incentivam os consumidores a solicitar as notas fiscais de suas compras são outros bons exemplos, uma vez que não utilizam controles coercitivos, pelo contrário, propõem condições desejáveis de incentivo. Aos consumidores, importam fundamentalmente os retornos financeiros que recebem. Ao Estado, importa o recolhimento de tributos, cujos números atuam mais diretamente sobre o comportamento dos gestores públicos.

Ao longo da evolução da espécie humana, características individuais de cada organismo são submetidas ao crivo maior da seleção dos que possuem destacada adaptação ao ambiente vigente, aumentando a chance de sobrevivência, não somente do organismo em particular, mas de suas gerações futuras.

Por processo semelhante, as práticas vigentes em um grupo social são resultado dos sucessos e fracassos das práticas que foram selecionadas ao longo do tempo. No entanto, diferentemente dos limitados alcances da intervenção humana sobre a evolução da própria espécie, o desenvolvimento social está em nossas mãos. Podemos e devemos atuar com competência sobre os comportamentos que nos levam em direção a uma sociedade capaz de se autorregular em prol da convivência civilizada.

O comportamento dos indivíduos em sociedade nem sempre se alinha com a melhor adaptação da espécie ou da manutenção das práticas do seu grupo social. Temos fartos exemplos em conhecidos episódios de destruição ambiental, maus hábitos alimentares, desrespeito às leis, entre muitos outros. Por isso, não é suficiente esperar que as pessoas passem generalizadamente a usar máscara, lavar as mãos, manter distanciamento social em razão de efeitos que não sejam produto do seu próprio comportamento. É neste sentido que a relação entre tais medidas sanitárias e a transmissão do sars-cov-2 é tão invisível a olho nu quanto o próprio vírus.

É preciso avançar e o caminho é estabelecer contingências que atuem sobre o comportamento das pessoas ao mesmo tempo em que selecionam práticas sociais que levem ao desenvolvimento da sociedade como um todo. A tarefa é intelectualmente complexa, quase sempre de difícil implementação, por vezes contraria interesses individuais, porém é extremamente recompensadora quando os resultados aparecem.


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