Sentidos da Reforma

Jean Pierre Chauvin é o professor responsável pela disciplina Romance Distópico, na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)

 17/07/2019 - Publicado há 5 anos

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Jean Pierre Chauvin Leciona – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A economia é séria e moderna; o social, perdulário e arcaico. É o que justifica priorizar o socorro a um banco ou à banca em geral, sobre as necessidades sociais

(Renato Janine Ribeiro)[1]

 

De tempos em tempos, a historiografia registra incertos termos como palavras-chave relacionadas a episódios decisivos para o curso da humanidade, ou de parte dela. Foi assim que as 95 Teses de Martinho Lutero, afixadas em portas de igreja de Wittenberg em 1517, engrossaram o coro e o movimento contra a comercialização de indulgências, então praticadas pela Igreja Católica. Elas também sugeriam que o fiel fosse o primeiro intérprete das Escrituras, retirando o poder concentrado nas mãos da extensa hierarquia reproduzida desde a Alta Idade Média, no Vaticano.

Neste texto, que não ultrapassa o breve comentário (ainda que pretenda estimular a reflexão ligeira), valeria a pena discutir as implicações envolvidas ao denominar o posicionamento firme de Lutero não como crítica profunda e estrutural a uma das vertentes do Cristianismo, mas como Reforma – palavra com valor mais positivo que negativo e que, no fim e ao cabo, subtrai a virulência com que o teólogo investiu contra a instituição sediada no Vaticano.

Isso porventura explicaria por que a reação do braço católico, documentada nas reuniões do Concílio Ecumênico de Trento, realizadas entre 1545 e 1563, foi denominada, digamos, positivamente como Contrarreforma. Reunidos em diversas sessões, os conselheiros precisaram reafirmar os fundamentos da instituição, o que lhes permitiu denominar hereges (quando não, heréticos) os praticantes de atos contrários às determinações da igreja; e heresias, as inovações que depunham contra a autoridade dos representantes legais de Deus sobre a terra – por sinal, prestes a se tornar redonda.

É sintomático que o subtítulo dado às decisões do Concílio tenha sido “Contra as Inovações Doutrinárias dos Protestantes”, e que seu coletivo objetivasse: “extirpar as heresias” e “reformar os costumes”. Para isso, pareceu essencial ao Conselho que, “para refrear as mentalidades petulantes” decretasse:

 

[…] que ninguém, fundado na perspicácia própria, em coisas da fé e costumes necessárias à estrutura da doutrina cristã, torcendo a seu talante a Sagrada Escritura, ouse interpretar a mesma Sagra Escritura contra aquele sentido que [sempre] mantém e manteve a Santa Madre Igreja, a que compete julgar sobre o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Escrituras, ou também [ouse interpretá-la] contra o unânime consenso dos Padres.[2]

 

A discussão ganharia nova dimensão e colorido, se levássemos em conta que a palavra Reforma admitiria usos contrários, pelo menos entre os séculos XIV e XIX. O sociólogo Raymond Williams observou que:

 

O verbo reform (reformar) entrou na língua inglesa no S14, vindo da percursora imediata reformer, do francês antigo, e de reformare, do latim (formar novamente). Na maioria de seus primeiros usos, é muito difícil distinguir entre os dois sentidos latentes: (i) restaurar a forma original; (ii) converter em uma forma nova. […] Na luta pela representação parlamentar, reforma transformou-se em um termo radical (cf. reforma radical desde o S18) e os reformistas parlamentares, que haviam sido sutis (um termo nada bondoso), já em 1641 estavam em correspondência com os jacobinos e eram vistos como reformistas violentos (com o significado de “ardentes”) por Lady Granville, em 1830.[3]

 

Ora, é justamente a ambiguidade do termo Reforma que permite questionar, também no plano semântico, as chamadas “Reformas” que, sazonalmente, costumam ser levadas a termo em nosso país. O leitor minimamente sério conhece vários capítulos de nossa história, tocada quase sempre sob o signo da violência – seja ela aplicada física, mental ou verbalmente.

Por que aceitamos nomear os ataques aos direitos básicos (que prejudicam em especial a população mais carente, menos assistida e com menores oportunidades de [4]estudar, trabalhar, cuidar da saúde, ter moradia digna, transporte decente) como Reformas? Eis o post em rede social atribuído ao presidente da República, minutos após a votação vitoriosa (para quem?) do texto-base que embasa a tal Reforma: “O Brasil está cada vez mais próximo de entrar no caminho do emprego e da prosperidade”.

Recapitulemos. O primeiro gesto de resistência seria questionar o emprego de determinadas palavras em lugar de outras. O segundo ato seria relembrar que a famigerada Reforma da Previdência (aprovada no dia 10 de julho de 2019, em primeiro turno) sucedeu a Reforma Trabalhista, levada a termo durante o governo de Michel Temer.

Como disse, ambas as medidas prometem salvar a economia em um país que carece, pelo menos desde 2014, com o enxugamento do Estado, a redução do parque industrial, o desemprego, o aumento impressionante de miseráveis (eufemisticamente denominados “moradores de rua”) e a rarefação do mercado consumidor[5]. Sob a promessa de recuperar as finanças, liquida-se o Estado – que de Mínimo, passa a quase nulo, como Marilena Chauí alertava há quase vinte anos:

 

[…] a ideia de direitos sociais como pressuposto e garantia dos direitos civis ou políticos tende a desaparecer, pois o que era um direito converte-se num serviço privado regulado pelo mercado e, portanto, torna-se uma mercadoria acessível apenas aos que têm o poder aquisitivo para adquiri-la.[6]

 

Alguém poderá objetar que o autor destas linhas não estaria habilitado a tratar de matérias que, em tese, fogem à sua área de formação e não correspondem a sua alçada. Pode ser. Mas também é verdade que o curso de Letras o ensinou a ler criticamente e a desconfiar de palavras e índices positivados, com que incertos sujeitos favorecem a si mesmos (e a seus protegidos) e alvejam a maior parte do povo – embora se digam homens de bem e patriotas, a modernizar o país, no honesto combate aos privilégios (resta saber quais e de quem).

Nesse sentido, quase falta ânimo para questionar, com o melhor espírito cívico, e sem esquecer minha classe, origem e lugar na sociedade civil que resta: onde está a Reforma Política? Quando acontecerá a Reforma Tributária? Por que ainda não se concretizou a Reforma Agrária? Quando as reformas favorecerão, efetivamente, a maioria da população? Diante das contramarchas em nome do suposto progresso, resta proclamar que não cairemos; quicaremos.

 

[1] Renato Janine Ribeiro. A sociedade contra o social. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 21.

[2] Concílio Ecumênico de Trento (1545 – 1563) – contra as inovações doutrinárias dos protestantes. Petrópolis: Vozes, 1953, p. 6.

[3] Raymond Williams. Palavras-chave [um vocabulário de cultura e sociedade]. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, pp. 348 e 349 (grifos do autor).

[4] “Após reforma avançar, Bolsonaro agradece a deputados e destaca Rodrigo Maia”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/10/apos-reforma-avancar-bolsonaro-agradece-deputados-e-rodrigo-maia.htm – Acesso em 11 de julho de 2019.

[5] “[…] o grosso dos impostos não vem do capital, mas do trabalho e do consumo”, lembrava Marilena Chauí, em Escritos sobre a Universidade. São Paulo: Editora Unesp, 2001, p. 21).

[6] Idem. Escritos sobre a Universidade, p. 20.


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