O enfrentamento simultâneo dessas ameaças globais e de seus riscos sistêmicos – cujos efeitos ampliam os abismos existentes não apenas entre nações e dentro dos países, mas também entre grupos sociais e indivíduos – exige soluções provenientes de diferentes contextos, que são janelas de oportunidade para um futuro habitável, justo e sustentável. Porém, em que medida as soluções postuladas abordam, enfrentam ou agravam questões de desigualdade social e as múltiplas dimensões de injustiça?
Esse conjunto de questões expressa uma parte importante do campo de conhecimento e atuação da saúde global. Ao compreender e tensionar as causas e efeitos das crises atuais, reconhecendo as dimensões políticas dos problemas que estão nas suas bases, a saúde global busca jogar luz sobre aspectos fundamentais que dizem respeito, por exemplo, ao modelo predatório de desenvolvimento, à produção de relações de dominação e de desigualdade, às formas de compreender e se relacionar com a natureza e suas reverberações.
É a partir desse cenário, com seus desafios e possibilidades, que o Programa de Pós-Graduação (PPG) Saúde Global e Sustentabilidade segue celebrando, com entusiasmo, seu primeiro decênio. Criado em 2013, exclusivamente na modalidade de doutorado acadêmico, e sediado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, o programa foi idealizado à luz das discussões sobre os múltiplos efeitos do processo de globalização acelerada e suas reverberações na saúde e no ambiente em escala planetária.
Na primeira década de atuação, foram 46 teses defendidas em temáticas consideradas de fronteira, que demandam por sua complexidade e originalidade um conjunto expressivo de aportes teórico-analíticos e metodológicos. Entre os principais temas estudados, estão por exemplo as emergências em saúde (como a pandemia de covid-19); as crises socioecológicas em curso (como a emergência climática); atuações de organizações internacionais e seus impactos (como a proposição do Acordo Internacional sobre Pandemias); os sistemas agroalimentares e seus desfechos na saúde e no ambiente; e os desafios implicados nos processos de transição para sustentabilidade.
Desde a sua criação, o programa tem por objetivo formar profissionais qualificados; contribuir para o avanço do conhecimento técnico-científico em temas estratégicos para as interfaces entre saúde global e sustentabilidade, com ênfase nos estudos críticos; aperfeiçoar metodologias de pesquisa; e ampliar e consolidar a produção brasileira e latino-americana neste campo. O programa tem como público-alvo pesquisadores e profissionais de diferentes formações originais (incluindo, por exemplo, Direito, Relações Internacionais, Ciências Sociais, Arquitetura e Urbanismo, Nutrição, Saúde Pública, Ciências Biológicas, Comunicação, Psicologia), mas cujas atuações profissionais e acadêmicas, nacionais e internacionais, se alinham aos esforços de avançar em análises críticas e propor soluções, respostas e trajetórias transformativas para importantes problemas atuais.
Atualmente, estão em curso 45 projetos de pesquisa (teses de doutorado) conduzidos pelos discentes do programa, sob orientação de 16 orientadores permanentes, co-orientadores e de orientadores pontuais. Para além da pandemia de covid-19 e suas múltiplas dimensões (temática fortemente estudada nas pesquisas realizadas desde 2020, apresentadas inclusive em um livro e um dossiê comemorativo aos dez anos do programa), outros temas relevantes continuam a ganhar destaque, como migrações e direitos humanos, sistemas agroalimentares e segurança alimentar, cidades e suas complexidades, modos de produção e consumo, mudanças climáticas e negociações e disputas em torno de acordos e tratados internacionais.
Com o processo seletivo aberto, cujas inscrições podem ser realizadas até o dia 20 de maio, o programa segue com esforços para integrar o movimento de constituição de uma identidade própria da saúde global, em constante diálogo e interação com outras redes de pesquisa e ação, em particular no contexto do Sul Global, mas mantendo laços e parcerias também com grupos do Norte Global.
Um dos parceiros internacionais deste programa, o professor João Nunes, em sua contribuição ao livro e ao dossiê já citados, pondera justamente que os estudos do campo da saúde global têm o potencial de ampliar o reconhecimento acerca da interconexão fundamental entre a saúde dos humanos e dos mais que humanos, e fortalecer perspectivas de atuação e de transformação social pela coletividade. Podem contribuir com esforços na garantia da saúde como um direito universal que se concretiza com responsabilidade e participação pública, e fomentar o reconhecimento tão necessário e urgente dos diversos saberes e modos de pensar que foram historicamente marginalizados.
Com uma atuação “glocal”, a saúde global possibilita, como argumenta Nunes, reconhecer o cotidiano como a arena de realização das potencialidades humanas e de transformação da realidade. Para tanto, um dos desafios centrais da saúde global é justamente mobilizar e reenquadrar uma perspectiva crítica de sustentabilidade não apenas enquanto discurso ou utopia. Como abordamos em artigo publicado neste mesmo espaço, em 2022, é preciso articular a sustentabilidade como um “caminho concreto para contrariar a insustentabilidade da organização socioeconômica e política eminentemente destrutiva”.
A expectativa de nosso PPG é ampliar os esforços de pesquisa, fomentando a diversidade e inclusão por meio de ações afirmativas, e garantir maior pluralidade de ideias e de experiências da comunidade do programa. É no fortalecimento dessa trajetória que buscamos alcançar um aprofundamento analítico e crítico sobre conflitos de interesses, relações de poder, vulnerabilidades, negligências e iniquidades que estão em jogo nas questões de saúde e ambiente, e pensar coletivamente um futuro habitável, justo e sustentável.
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