A problemática das cidades

Por João Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Pedro Jacobi, professor do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, e outros autores*

 06/10/2022 - Publicado há 2 anos

João Sette Whitaker – Foto: Reprodução/FAU-USP
Pedro Roberto Jacobi – Foto: IEA/USP
O tema das cidades, que faz parte do projeto Eixos Temáticos da Reitoria da USP, é sem dúvida um dos que mais ensejam uma compreensão transdisciplinar, que se cruza com os outros temas do projeto e com a maioria dos Objetivos do Milênio da ONU (ODS), para se refletir sobre as políticas públicas necessárias ao enfrentamento da problemática urbana. O tema engloba a questão ambiental, já que o metabolismo urbano suga recursos planetários em grande escala – água, combustíveis fósseis, matérias-primas para sua construção – e os destrói com a mesma intensidade, com a emissão de poluentes, a impermeabilização do solo, o desperdício de água etc. Hoje, os desastres ambientais ligados às mudanças climáticas são tragicamente potencializados pela generalização da precariedade urbana.

A temática também está inserida nas discussões sobre energia e engenharia ambiental, pois para viverem em cidades, as pessoas dependem de serviços básicos – água, luz, saneamento. Um dos maiores obstáculos para uma vida digna é a dificuldade em se locomover nas cidades, em especial no trajeto casa-trabalho, e por isso o tema da mobilidade é intrínseco ao das cidades, assim como o são o da educação, da saúde e da cultura, já que a moradia digna se constitui não só na casa, mas no acesso à escola, a centros de esporte, cultura e laser, e aos equipamentos de saúde. A necessária alimentação dos moradores das cidades insere o tema nas discussões de agricultura e pecuária, assim como devemos lembrar que todas essas políticas e serviços públicos devem ser financiados de forma equânime, o que nos mostra o cruzamento com a temática da economia e das finanças.

Em suma, a temática urbana recorta todas as áreas que afetam a vida em sociedade. Isto porque o que entendemos por “cidades” nada mais é do que uma rede sistêmica de infraestruturas sobre o território, sobre a qual ocorrem as relações sociais e suas disputas. Como essa rede é produzida socialmente, por meio do Estado, este tem um papel central nas dinâmicas urbanas. O primeiro aspecto se dá porque, ao prover essas infraestruturas e equipamentos mais ou menos homogeneamente pelo território, o Estado estará afetando diretamente a qualidade de vida nas diferentes regiões da cidade, servidas de maneira desigual, assim como gerando variações nos preços dos lotes urbanizados, acirrando e aquecendo o mercado imobiliário que ocorre sobre essa infraestrutura. Em segundo lugar, porque é o próprio Estado que regula esse mercado, estabelecendo regras que podem mitigar as disputas pela apropriação das melhores áreas, e utilizando-se de instrumentos legais para minimizar os desequilíbrios existentes na distribuição territorial da infraestrutura e dos equipamentos.

Nesse sentido, percebe-se que as políticas públicas urbanas têm enorme poder, pois podem produzir cidades socialmente mais justas e homogêneas, mas também podem ser instrumento para o acirramento das desigualdades. E, como se sabe, as cidades brasileiras são marcadas pela extrema desigualdade, como reflexo espacial de uma sociedade igualmente desigual. É difícil dizer que há políticas públicas “erradas”, ou malfeitas. Na maioria das vezes, trata-se de políticas públicas que direcionaram propositalmente seus investimentos para privilegiar certas porções do território, seguindo interesses bem específicos. Para mudar tal quadro, é fundamental restabelecer a prioridade em políticas públicas urbanas que, em todos os setores, afetem de maneira homogênea todo o território ou mesmo, devido às desigualdades cumulativas no tempo, sejam direcionadas preferencialmente às áreas de maior pobreza.

Porém, isso não é fácil. Embora tenhamos hoje o domínio técnico para trazer soluções e, ao contrário do que se pensa, recursos para tal, as políticas públicas urbanas não são “cardápios de soluções” que possam ser aplicados como carimbos, com a certeza de seu poder transformador. Tomemos o exemplo da política de mobilidade urbana, que é a mais fundamental para garantir o deslocamento democrático nas cidades: além da necessária opção pelo transporte público de massa, mais democrático e sustentável, em detrimento do privilégio tradicional dado ao modal automotivo, uma política para o setor deverá estabelecer uma série de decisões técnicas, todas existentes e viáveis, que dependem de decisões políticas sujeitas a interesses econômicos: qual sistema adotar (ônibus, VLT etc.)? O transporte será totalmente ou parcialmente financiado? Como será feita a negociação com o setor empresarial responsável? Quais as formas de cobrança, caso ela exista? Por passageiro? Por quilômetro rodado? Cada uma dessas decisões, que não são nem um cardápio de soluções, nem soluções técnicas mirabolantes inviáveis, poderá ser facilmente aplicada, mas dependendo dos arranjos decorrentes, dos interesses atendidos, da participação gerada em sua elaboração, ter efeitos práticos radicalmente opostos.

As políticas públicas urbanas são feitas para cada caso, no âmbito da realidade de cada cidade e os atores que lá atuam, entendendo os interesses econômicos e políticos que conduzem muitas das decisões, levando em conta a mediação dos conflitos decorrentes. Por mais que possam apresentar soluções técnicas elaboradas, não resolverão nenhum problema das nossas cidades se não desvendarem o processo político para uma leitura adequada desses conflitos. Em suma, evidenciando os impasses que regem a dinâmica urbana e mediando soluções para que se possa, em uma intermediação entre ciência e decisão política, não para “aplainar” ou resolver tais conflitos como por milagre, mas para refletir conjuntamente e participativamente sobre as melhores soluções baseadas em princípios éticos e socialmente comprometidos. Esse é o papel da universidade pública.

Assim, o grupo do Eixo Temático Cidades entende que pode contribuir para o debate apontando os pontos críticos a serem observados na formulação das políticas públicas no contexto de cada cidade, os parâmetros mais adequados à realização dos objetivos colocados pelo projeto: a inovação para a redução da desigualdade por meio da inclusão, visando à sustentabilidade com justiça ambiental. Cabe dizer que, no âmbito das cidades, a maior das inovações seria conseguir, enfim, que as políticas públicas se pautassem prioritariamente por três nexos, abaixo elencados:

Nexo 1 – Habitat e Estrutura urbana: trata-se de entender as cidades pelo conceito mais amplo de “habitat”, que envolve moradia, mas também tudo que faz a vida na cidade ser possível, ou seja, além da casa digna, o emprego e a renda, as condições de deslocamento na cidade (para o emprego inclusive) e, através de um estrutura urbana construída e reconstruída continuamente, o acesso a políticas, bens e serviços, reforçando a ideia de que iniciativas setoriais sem a necessária consideração integradora do território são fadadas a reproduzir a situação atual.

Nexo 2 – Desigualdades socioespaciais de acesso a infraestruturas básicas, saúde e educação: o acesso diferenciado a infraestruturas e políticas básicas (água, saneamento, energia, mobilidade e demais políticas setoriais) configura estruturas de desigualdade duráveis e imbricadas na estrutura das cidades. Este nexo foca as desigualdades cumulativas de acesso, e não a oferta setorial e pontual de serviços, que muitas vezes pode oferecer soluções técnicas adequadas, mas sem efeito estrutural efetivo.

Nexo 3 – Justiça ambiental, mudanças climáticas, resiliência, precariedades cumulativas e riscos de desastres: o conceito da sustentabilidade passa obrigatoriamente pelo de justiça ambiental, já que as questões ambientais e o risco de desastres estão muito ligados às precariedades cumulativas decorrentes da urbanização inadequada e desigual, que promoveu historicamente a ocupação periférica informal sem organização do Estado, está sujeita a marcos regulatórios inexistentes ou não aplicados, e gera confusões sobre os benefícios do crescimento econômico urbano que em geral são extremamente predatórios ao meio ambiente: impermeabilização do solo pela construção civil, incentivo à indústria automotiva, soluções de moradia ofertadas pelo mercado imobiliário pouco reguladas, individualizantes e promotoras da segregação social urbana.

A partir desses nexos e da discussão acima proposta, concluímos que políticas públicas para as cidades são antes de tudo a expressão de um “Estado em ação”, que deve envolver ações e processos orientados para a garantia de direitos e para a provisão de infraestruturas, serviços e políticas setoriais diversas. As soluções de políticas públicas urbanas devem ser desenhadas, mas pensadas como uma pequena parte de complexos processos de decisão e implementação. A forma como acontecem esses processos é tão ou mais crucial quanto as soluções adotadas, que pouco adiantam se não estiverem adaptadas ao contexto de governança de cada cidade. Por isso, aliás, a lógica de “transposição de modelos urbanos”, muito em voga no campo do urbanismo, raramente funciona de fato. Políticas públicas são processos intrinsecamente políticos, que dependem da mobilização e do convencimento dos atores relevantes, inclusive (ou sobretudo) dos mais prejudicados pela urbanização desigual.

Nesse contexto, a universidade tem o papel de fomentar a produção de melhores políticas, sem propor “cardápios” de soluções, mas atuando no âmbito de um esforço de participação em processos de coprodução de políticas junto com os atores relevantes – agentes públicos, organizações da sociedade civil e usuários. Assim, as pesquisas em torno dos problemas e de soluções técnicas em todas as áreas e escalas que afetam as cidades, um papel essencial da universidade, inclusive a normativa e financeira, são fundamentais para subsidiar esse processo e a tomada de decisões. Assim, este grupo de reflexão consegue enxergar um papel relevante para o projeto Eixos Temáticos da USP, levantando premissas para uma atuação “inovadora” da Universidade sobre as cidades, visando à sua funcionalidade democrática e à redução das desigualdades socioespaciais, que são a base para cidades (e sociedades) regidas pela tolerância e a cidadania plena para todas e todos.

* Contribuíram na redação deste artigo os docentes do Eixo Cidades: Eduardo Cesar Marques, Eduardo Nobre, Jeferson Tavares, Leandro Luiz Giatti, Luciana de Oliveira Royer, Luís Fernando Massonetto, Maria Lúcia Refinetti, Mariana Aldrigui Carvalho, Mauro Zilbovicius, Paulo Sinisgalli, Pedro Luis Cortês, Renata Bichir, Silvia Helena Zanirato, Sylmara Lopes Gonçalves Dias, Tomas Antonio Moreira e Ursula Dias Peres


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.