Ciência e suas controvérsias

Hernan Chaimovich é professor Emérito do Instituto de Química da USP

 01/06/2017 - Publicado há 7 anos

Hernan Chaimovich – Foto: Francisco Emolo / Arquivo Jornal da USP

É evidente, até pelo acompanhamento das edições recentes do Jornal da USP, que o assunto homeopatia é controverso. A palavra controvérsia vem do latim controversia (movimento oposto, discussão entre dois antagonistas, ponto de um litígio, processo), composta das raízes: contra (enfrentamento), versus (de vertere, dar voltas) e ia (qualidade). Um dos significados do termo controvérsia, que certamente se aplica ao material publicado, é “um desacordo público com dois lados abertamente debatendo”. Por enquanto, tudo bem. Estamos debatendo publicamente e certamente há pelo menos dois lados neste desacordo. A pergunta que se coloca é: por que a homeopatia vem sendo tema controverso há tanto tempo e, também, como uma controvérsia aparentemente inserida em parte numa única comunidade, a comunidade dos cientistas, pode subsistir há mais de um século. Adicionalmente deveria se perguntar como um tema aparentemente científico desperta tantas paixões.

Uma das controvérsias interessantes da segunda metade do século 20 se referia à origem da força motriz que explicava a síntese do composto central nas biotransformações de energia numa organela intracelular, a mitocôndria ou na membrana dos seres vivos sem núcleo. Posso afirmar que esta controvérsia despertou paixões e que cientistas, durante quase uma década, se tornaram aliados ou inimigos. Muitos cientistas repetiram experimentos e/ou revisaram teorias, e aí surgiu o consenso de que somente uma das interpretações podia explicar todos os dados. Até que dados experimentais demonstrem que a teoria quimiosmótica está errada, essa será a explicação aceita pela comunidade. O impacto desta teoria se estende desde a medicina até a agricultura e continua fornecendo aplicações e/ou formas de ver a natureza. Controvérsias existem em todas as áreas das ciências, assim chamadas, duras. Em todos os casos conhecidos a controvérsia é ultrapassada, pois, se a ideia controversa tem alguma importância, uma porção significativa da comunidade científica, muitas vezes conservadora, olha para essa ideia e tenta derrubá-la. Se a nova ideia é derrubada, ou se não pode ser derrubada, a controvérsia acaba. Os membros da comunidade científica estão sempre prontos para criticar ideias incomuns. Somente quando teorias são consensualmente aceitas ou derrubadas, ou experimentos são reproduzíveis, ou não, a comunidade global dos cientistas chega a acordos. Estes acordos não são “verdades”. São consensos, que duram enquanto não são derrubados ou incorporados numa teoria mais geral.

Por que a homeopatia vem sendo tema controverso há tanto tempo e, também, como uma controvérsia aparentemente inserida em parte numa única comunidade, a comunidade dos cientistas, pode subsistir há mais de um século? Adicionalmente deveria se perguntar como um tema aparentemente científico desperta tantas paixões.

A homeopatia, portanto, constitui uma controvérsia muito particular que parece não ter fim. Um dos princípios basilares da homeopatia é a existência de uma força, que ninguém conseguiu demonstrar, que determinaria, por exemplo, que moléculas deixassem a sua assinatura depois de desaparecer de um solvente. Esse solvente particular é a água. Não existe nenhuma dúvida de que a vida, como a conhecemos na Terra, depende do fato de que a água é um solvente muito particular. Tanto é assim que moléculas de água podem até formar cadeias quirais quando associadas a material biológico (DOI: 10.1021/acscentsci.7b00100, 2017). As interessantes propriedades da água não incluem “memória”. Nenhum experimento sobre “memória” da água foi repetido por muitos cientistas e essa teoria somente foi aceita pela comunidade já convencida de que a homeopatia funciona ou que as bases da homeopatia são científicas.

O método científico rejeita argumentos de poder. Contudo, é necessário adicionar que distintos países como Austrália, Rússia ou Estados Unidos aprovaram medidas de saúde pública exigindo a informação, na caixa que os contém e na bula, de que os produtos homeopáticos não têm seus resultados respaldados em conhecimento científico. Essas medidas, em geral, apoiam-se em relatórios consensuais das comunidades científicas nacionais.

Existem, portanto, dificuldades essencialmente intransponíveis para resolver esta controvérsia, pois a discussão não se trava em torno da procura de consensos através de experimentos ou discussão de teorias, mas, pelo contrário, entre os convencidos que, por exemplo, a água tem “memória” e uma enorme maioria da comunidade científica, da qual eu participo, que não consegue desenhar experimentos ou teoria que confirmem esse fato. Os poucos artigos científicos publicados em revistas não homeopáticas que dizem “provar” esse tipo de fenômeno, ou não têm nenhuma visibilidade ou são acompanhados por ampla variedade de experiências que demonstram o contrário.

 


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