O pacote climático aprovado nos EUA e a expansão da mineração de matérias-primas críticas

Por Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 10/10/2022 - Publicado há 2 anos

Diante da retração ocidental e a ascensão geopolítica da Ásia-Pacífico como um novo polo de desenvolvimento econômico, a partir do que alguns autores chamam de economia do projetamento e de uma globalização instituída pela China, tanto a Europa quanto os Estados Unidos trabalham para reagir a este cenário através de uma reindustrialização doméstica, tema que abordei no meu último artigo.

Nos Estados Unidos, parte deste projeto está plasmado na Lei de Redução da Inflação (IRA – sigla em inglês) sancionada no último agosto pelo presidente Joe Biden. A legislação abrange questões fiscais, relacionadas ao sistema de seguro saúde, e inclui também uma série de incentivos de créditos e fiscais tanto para indivíduos quanto para empresas, estimulando o uso e os investimentos nas chamadas “energias verdes”. Tais incentivos compõem o intitulado “pacote climático”, que é o maior da história dos Estados Unidos, cerca de US$ 370 bilhões direcionados à redução das emissões de poluentes, incluindo também deduções fiscais para a compra de veículos elétricos, expansão da energia eólica e solar.

Para atender aos requisitos previstos no pacote climático, a produção doméstica de minerais terá que se expandir muito. Neste sentido, Biden invocou poderes especiais criados durante a Guerra Fria (Defense Production Act), encorajando a produção interna de minerais fundamentais para a fabricação de veículos elétricos e baterias. Entretanto, o plano focado na produção industrial local americana é uma política de Estado que já estava a ser pavimentada desde o governo de Donald Trump. Em 2019, Trump assinou diversas ordens presidenciais declarando a expansão da indústria de mineração de matérias-primas críticas e a diminuição da dependência chinesa, como essenciais para a defesa nacional. Portanto, o estímulo à produção interna que está subjacente ao conteúdo climático na Lei de Redução da Inflação é parte de uma continuidade político-econômica, prevista tanto no plano Made in America, do atual presidente, como na política America First, de Trump.

No pacote climático, Biden atrela o aumento da produção doméstica ao esforço de reduzir as emissões de carbono, uma medida que pretende também salvar a economia através da reorganização das cadeias locais/globais e que beneficiará principalmente as montadoras de automóveis, sendo também uma resposta estadunidense à China, país que neste momento é o principal operador mundial no processamento de minerais estratégicos.

Se a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, estiver correta “num futuro próximo, o lítio e as terras-raras tornar-se-ão mais importantes do que o petróleo e o gás“, cenário que coloca a China em vantagem.

Segundo o relatório divulgado pela Brooking Institution, o gigante asiático refina 40% do cobre, 59% do lítio e 73% do cobalto produzidos globalmente e é também um ator estratégico nas etapas posteriores da cadeia de fornecimento, como a fabricação de componentes de células de baterias. É ainda responsável por 70% dos cátodos, componentes importantes e que podem representar a metade do custo de uma célula fabricada. A China detém 78% da capacidade mundial de fabricação de células para as baterias de veículos elétricos e concentra 75% das megafábricas de baterias de íons de lítio do mundo. Em paralelo, os Estados Unidos, que eram líderes na produção de lítio até a década de 90, viram sua estatura como produtor de minerais diminuir nas últimas décadas. Suas operações caíram de 27% em 1996 para 1% em 2020 no mercado de lítio upstream, que abrange as atividades de exploração, desenvolvimento, produção e transporte para beneficiamento.

Portanto, se antes a tendência das grandes companhias sediadas nos Estados Unidos e na Europa era a de deslocarem parte substancial de suas atividades industriais para os países periféricos, agora o protagonismo chinês os obrigou a reordenar suas estratégias.

Assim, penso que esta reformulação das cadeias deverá ultrapassar a tão alardeada “desglobalização” e caminhar no sentido da regionalização da produção e do fornecimento. Isto porque as matérias-primas existentes nos países centrais são insuficientes para atender seus projetos de economia verde e transição energética, logo, periferizar parte da produção, bem como seus impactos, ainda será um caminho perfeitamente viável.

Na busca por parceiros comerciais mais confiáveis, os Estados Unidos poderão aumentar seu poder de influência e de intervenção junto à América Latina, considerando que os recursos sul-americanos são compreendidos oficialmente como domésticos e parte da solução, nomeadamente naqueles países onde existem acordos de livre-comércio. Neste cenário, nossa região poderá exportar mais recursos com baixo valor agregado e ser beneficiada com a alta de preços das matérias-primas críticas, contudo, sem uma estratégia de desenvolvimento adequada corremos o risco de aprofundar a nossa condição de quintal dos fundos das grandes potências.


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