Nossa Rosa falou

Luiz Jurandir S. Araujo é professor do Depto. de Contabilidade e Atuária da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP

 02/05/2018 - Publicado há 6 anos

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Luiz Jurandir Simões – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

O professor Renato Janine, no artigo Quais lições a academia pode tirar do voto da ministra Rosa Weber? (do Jornal da USP, de 11/4/2018), discute com grande eloquência e solidez as profundas discrepâncias entre teoria e aplicações práticas de muitos trabalhos acadêmicos. Usa como exemplo o voto da ministra do STF Rosa Weber no habeas do ex-presidente Lula. Nesse voto, a ministra citou e caminhou por várias teorias, inclusive várias bem atuais, que não ofereciam, aos ouvintes, nenhum sinal de qual voto ela proferiria. Toda a estrada argumentativa não levou a lugar algum. O exemplo escolhido (tão atual e marcante) e a utilização de senso comum nos trabalhos acadêmicos, carente de vínculos teóricos, levantou um dilema recorrente na academia. Como sempre, o professor Janine instiga debates importantes e relevantes para o aprimoramento da universidade brasileira. Parabenizo-o por essa iniciativa. O que a linguagem popular chamaria de ”blablabá” ou “conversa para boi dormir”, infelizmente, está presente em vários cantos e recantos do País, inclusive em trabalhos acadêmicos.

Um exemplo ilustrativo desse blablablismo: há poucos dias o magnífico reitor fez um evento para divulgar a importância da internacionalização da Universidade. Coisa chique! Os jovens doutores estão desanimados com TANTA burocracia e dificuldades básicas para fazer pesquisa; inúmeros professores visitantes ficam chocados com tanta dificuldade para fazer pesquisa, mas o magnífico quer internacionalizar. E os detalhes operacionais e estruturais? Fogem da teoria de internacionalização?

Na linha argumentativa do professor Janine transpareceu a ideia de que uma ministra do STF precisaria ter coerência teórica no seu voto. Essa ideia até poderia ser viável e útil num sistema jurídico bem estruturado e justo. No entanto, o sistema jurídico brasileiro tem inúmeros pilares e procedimentos cotidianos que carecem de qualquer solidez teórica e de funcionalidade democrática. A realidade é pão com água, mas queremos discurso lagosta.

Pobres e pretos lotam as cadeias em prisões provisórias sem julgamento. Já os ricos corruptos (que roubaram o dinheiro dos mesmos pretos e pobres) conseguem percorrer quatro instâncias com um número infindável de recursos. Alguma consistência teórica nisso? Num sistema tão enviesado, como ter solidez teórica?

O que a ministra fez foi inteligente e teatral. Mostrou que tem bagagem intelectual para estar na Suprema Corte, mas é sensível aos dilemas duma sociedade que está numa luta intestina por mudanças de paradigmas. A sua alma manteve os olhos na plateia e nos compromissos inexoráveis de transformação que a sociedade brasileira clama. A ministra seguiu o protocolo do cargo com todas as mise en scènes necessárias da nossa república teórica.

Professor Janine, quando há rupturas de paradigmas, a academia tem um período transitório de procura de novos equilíbrios. Não é diferente na sociedade. Estamos há alguns anos, instigados por atores históricos destemidos e ousados (Sérgio Moro; manifestantes de 2013; jovens procuradores; jovens que não têm perspectivas de futuro e vários outros), gritando, lutando, chorando e sangrando para construirmos um país justo e digno, com consistência conceitual.

No meio da batalha manter-se fiel a paradigmas teóricos é pouco provável. No período da Revolução Francesa houve consistência teórica? Como manter todo o regramento jurídico intacto, regramento que preserva e realimenta privilégios torpes e cruéis?

Há dois outros ministros do STF que usam exemplos de regras do século XIX, do império, para justificar seus votos. Votos que são na essência defesa dos privilégios e torpezas de república teórica.  Para eles o princípio teórico válido é “já que sempre foi assim, vamos manter”.

Nossa história escravizou e chicoteou milhões e no dia da abolição, nem um centavinho de indenização para que eles pudessem organizar suas vidas. A abolição foi teórica.

O presidente cantado em nova bossa e prosa, Juscelino, gastou os tubos para construir a Burocrasília; o Lulinha paz e amor e a sua sucessora gastaram mais tubos com copa, olimpíada e outras teorias; a mesma presidenta planejava gastar dezenas de bilhões para construir trem bala. Num país com tantas estradas esburacadas, com carências básicas na saúde e educação, esse trem bala geraria mais balas perdidas, devidamente encontradas por crianças nas escolas, por grávidas, por bebês que ainda nem nasceram, por policiais mortos diariamente.

Num país com tão pouco foco em educação, saúde e segurança, tudo fica tão triste e vazio. No discurso somos teoricamente muito consistentes: somos uma república democrática, somos uma sociedade multirracial e tantos outros blablablás.

A ministra pensou no concreto, manteve a tradição do discurso teórico, mas agiu com coragem e destemor. Fez.

Cartola diria: “Bate outra vez com esperanças o nosso coração, as rosas não falam, as rosas apenas exalam.”

Num perfume de coragem e renovação, nossa Rosa falou.

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