Com relatos de pessoas trans, USP discute espaços segregados por gênero e propõe mudanças

Conversa pretende ampliar políticas institucionais na Escola de Comunicações e Artes, assegurando o direito de estudantes trans e travestis transitarem em espaços livremente de acordo com o gênero com o qual se identificam

 19/04/2023 - Publicado há 1 ano
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Algumas unidades de ensino da USP, como a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, já aderiram aos banheiros unissex. A medida visa a romper com binaridade presente nos tradicionais bonequinhos com e sem saia – Ilustração do Jornal da USP

A vivência de pessoas trans e travestis nos espaços públicos é carregada de muitos entraves institucionais. Na Universidade, situações constrangedoras envolvendo dificuldades em aceitar o nome social e a livre circulação em espaços segregados por gênero, como banheiros e vestiários, tornam-se alguns dos motivos de desistência do ensino superior. Nesta quinta-feira, 20, às 18h, a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP promove um encontro intitulado Orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero nos espaços da Universidade de São Paulo e mecanismos para sua operacionalização

A conversa aberta pretende reunir estudantes, docentes e funcionários no desenvolvimento de políticas institucionais na unidade de ensino, assegurando o direito de estudantes trans e travestis transitarem em espaços livremente de acordo com o gênero com o qual se identificam. O evento será realizado em formato on-line, por meio de link de transmissão disponibilizado pela Comissão de Direitos Humanos da ECA, responsável por organizar o evento. Para participar, basta se inscrever neste formulário.

O encontro é resultado de decisão da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), que exige a todas as unidades de ensino promover orientações e ações para garantir o direito de trans e travestis na Universidade utilizarem os espaços que lhes são confortáveis, de acordo com o gênero de identificação. Segundo o parecer da Comissão de Inclusão e Pertencimento, por meio de portaria 10198/2022 da Procuradoria Geral da USP, “o não reconhecimento da identidade de gênero e do direito ao uso de espaços segregados por gênero se caracteriza como violência simbólica”. A comissão entende, ainda, que a garantia de acesso a tais espaços significa o respeito à diversidade de gênero de pessoas trans e travestis no âmbito da USP, evitando constrangimentos, estigmas, preconceitos, violência e a evasão escolar dessas pessoas.

Os assuntos discutidos na reunião serão: formas de garantir que espaços separados por gênero sejam utilizados livremente de acordo com o gênero com o qual a pessoa se identifica; realização de campanhas educativas e de conscientização de estudantes, visitantes, docentes, equipe técnico-administrativa e equipes terceirizadas e planos práticos para a operação do acolhimento, com o objetivo de assegurar o respeito ao nome social, à identidade de gênero, além de propiciar o tratamento adequado às pessoas trans e travestis; e difusão de placas e cartazes educativos informando as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero. 

Escuta “trans”formadora

Myra Gomes – Foto: Arquivo pessoal

A questão sobre gênero e sexualidade é percebida em diferentes graus pela comunidade trans nos diversos departamentos da ECA. Myra Gomes, estudante na Escola de Arte Dramática (EAD), tradicional no País por formar atores e atrizes, sente que faltam ações que orientem os funcionários sobre a forma adequada de lidar com o público trans e travesti que circula pelos espaços da Universidade. “A EAD é mais aberta à questão. Mas, no geral, é sempre muito cansativo se reafirmar, sobretudo, nas áreas comuns, quando é frequente o tratamento inadequado pelo nome social ou o pronome correto.” 

Ela também destaca o acolhimento recebido pelos estudantes da ECA, quando se mobilizam contra qualquer atitude de violência ou discriminação ocorrida dentro ou fora da unidade de ensino. “Os alunes da ECA já tombaram que os banheiros da unidade são unissex, sem gênero. Ao riscarem os bonequinhos com ou sem saia, já demonstram o movimento político-estudantil, antes mesmo das políticas institucionais romperem com espaços segregadores de gênero”, conta orgulhosa sobre a acolhida que tem recebido desde que ingressou na Universidade neste ano e por descobrir a recém-chegada da primeira professora travesti do Centro de Artes Cênicas (CAC).  

Dodi Leal – Foto: Adeloyá Magnoni/Flickr

Não só professora, Dodi Leal é pesquisadora e doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia (IP) da USP. Professora convidada no primeiro semestre de 2023 para integrar o Programa de Pós-Graduação da ECA, ministrando a disciplina Fabulações Travestis sobre o Fim, Dodi comemora o aumento do número de pessoas trans na Universidade. “Percebo o quanto é importante tratar com profundidade e visceralidade os processos de gênero de pessoas que estão fora da norma, e busco compreender isso a partir dos estudos de teatralidade”, diz. “Os processos de inclusão e exclusão se manifestam também na arquitetura dos espaços”, explica a docente, que pretende difundir a cosmovisão travesti nas aulas.  

No entanto, para Micael Franchi, estudante de Educomunicação na ECA, a presença de uma professora trans não basta. “A grande necessidade que se mostra para a comunidade trans na ECA é, primeiramente, um canal de denúncia direto na própria unidade de ensino, que não precise passar pela burocracia do Conselho Geral de Graduação da Universidade”, relata o discente, mais conhecido como Mica. “Além disso, é preciso a aproximação da diretoria da faculdade com alunes trans, para que não exista a evasão desses estudantes por conta de tratamentos inadequados”, acrescenta ele, que também participa do Centro Acadêmico Lupe Cotrim (Calc) e procura desenvolver ações que lidem com a pauta. 

 “Se não nos vemos em espaços, não nos sentimos pertencentes a eles!” – Micael Franchi

Mica Franchi – Foto: Arquivo pessoal

Ao longo do curso, estudantes de Educomunicação também desenvolvem projetos por meio de diferentes plataformas comunicacionais que procurem educar a sociedade a respeito de problemas sociais, como a transfobia. Mica conta que “alunes trans produzem material informativo voltado ao público trans. Como fotonovelas [novelas em quadrinhos que utilizam fotografias em vez de desenhos] com temática transvestigênere e, em breve, o lançamento de um curta-metragem sobre a vivência trans”, explica. “Pontuo também a felicidade em ter estudantes e docentes nos conselhos e comissões da ECA lutando por pautas transvestigênere, como a das cotas que é a de maior vigência.”

Saiba mais: cdh.eca@usp.br, com a Comissão de Direitos Humanos da ECA


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