A escravização e racismo no Brasil, mazelas que ainda perduram

Por Eunice Prudente, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP e colunista da Rádio USP

 10/06/2020 - Publicado há 4 anos
Eunice Prudente – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
Ainda que tenhamos, ao longo da história brasileira, criado legislações que reconhecem nossa diversidade, estamos muitos distantes da inclusão social necessária. Enfrentamos momentos difíceis, ditaduras, crises políticas e econômicas, mas a democracia conquistada há trinta anos nos inspira a prosseguir, construindo uma sociedade pautada por direito respeitoso de nossa diversidade que expresse todos os cidadãos. Ao retornar aos primeiros séculos de nosso estado, percebemos como o direito expressou as relações sociais e econômicas, baseando-se no trabalho escravo e, assim, chegamos ao protagonismo dos africanos na História do Brasil.

Sem dúvida, a escravização de africanos e afrodescendentes foi o ponto contraditório do liberalismo à brasileira. A escravização em período áureo do liberalismo – que louvava a liberdade aliada ao principal objetivo da classe burguesa, o direito à propriedade privada – cresceu. Nos séculos XVII, XVIII e XIX as ideias liberais são introduzidas pelos jovens de famílias abastadas que estudavam na Europa, no entanto, aqui foram devidamente adaptadas. Nossa primeira Constituição foi a monárquica de 1824, considerada de cunho liberal, não fazia nenhuma referência ao sistema econômico adotado, pois era o escravizador chamado de escravocrata. O liberalismo de “casa” serviu aos salões e, portanto, nunca foi efetivamente aplicado.

A ideologia liberal somente foi experimentada nas revoltas nativistas para vencer e afastar o jugo português, porém com ressalvas. Em seu auge, as revoluções chegaram a um momento de enfrentamento com homens e armas, numa época em que a maioria da população era negra e escravizada. Armar mãos escravizadas? Nunca! Assim, eliminaram-se as revoluções liberais. Foi, no entanto, o governo imperial que, ao participar do maior confronto internacional que já atingiu o País, a Guerra do Paraguai, acabou por armar escravizados em troca de cidadania. Vencida a guerra, em 1870, não havia, assim, condições de manter a escravização. A desarticulação do trabalho no meio rural, a formação de movimentos políticos e, sobretudo, fugas e novos quilombos pronunciaram novos tempos, uma vez que os batalhões dos Voluntários da Pátria não devolveram as armas ao Exército Nacional e o País nunca mais foi o mesmo.

O ser humano e o direito à liberdade

Não há, nunca houve, nem haverá escravos. O ser humano, sob violência física ou simbólica, tem sido escravizado, mas não escravo. O escravo é um ser inerte convencido de sua inferioridade face ao opressor, subordinado em todas as esferas da vida. Isso, nenhum ser humano o é.

O que o mundo conhece sobre dominações – adiciono escravidão, escravatura, escravismo – são formas de violência, impedindo e opondo-se ao exercício da liberdade. Alguém, muitas vezes falseando amor ou proteção, submete pessoas. Em família, em uniões amorosas, observam-se formas suaves e racionais de escravizar o outro mediante formas de violências simbólicas. Violência simbólica, como pensada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, constrange, submete e provoca dor moral.

A liberdade é condição da espécie humana, integra a nacionalidade dos humanos. Liberdade é oposição da escravização, posto que escravidão seja apenas a dominação de formas de escravização como vigentes na antiguidade. As contribuições de Kant confirmam a dignidade como atributo de todo ser humano e a liberdade também o é. Somente pela verve violenta se escravizam pessoas. Pensa-se livremente, o direito de pensar é livre e assim absoluto. Ao direito, expressando o sentido do justo em sociedade, cabe garantir expressões do exercício dessa liberdade – seja ela de comunicação, locomoção, permanência ou crenças -, mas também é seu dever discipliná-lo.

Escravidão e escravização

A escravidão, portanto, foi importante instituto jurídico do mundo antigo. Nosso direito, sendo da base romanística, impõe-nos o estudo do direito romano. Respeitáveis juristas e historiadores brasileiros, entre eles, Alexandre Correa e Evaristo de Morais, preceituam que no Brasil (colônia e império) utilizou-se o direito romano como subsidiário ao direito brasileiro. Ao contrário do Brasil, na Roma antiga não ocorreu escravização racial, mas sim aquela que atendia interesses, daí a escravização por dívidas ou a escravização de inimigos derrotados em guerras. Entre nós, foi e é bem diferente, uma vez que a questão étnica discriminatória foi muito manifesta.

Em Roma, caso a união entre senhores e suas escravizadas gerasse filhos, este filho seria livre, pois repugnava aos romanos pais escravizarem os próprios filhos. No caso brasileiro, porém, foi essa escravização que originou nossa miscigenação. Em nosso país houve uma série de práticas terríveis para as quais não havia punição constitucional, entre elas, a escravização de mulheres negras pelos seus senhores proprietários que as obrigavam a se prostituir, muitos, inclusive, compravam negras para tais finalidades. Mesmo com o advento do primeiro Código Criminal brasileiro, em 1830, tal crime não constava entre os previstos, pois era uma prática comercial muito presente nas cidades brasileiras. Nas pesquisas de Evaristo de Morais há relatos de visitantes estrangeiros que noticiavam os senhores documentando suas escravas com “bilhetes de permissão”, que as autorizavam a permanecer nas ruas após o toque de recolher.

Durante seus quatro séculos, a escravização no Brasil fez também parte de um importante ciclo do sistema socioeconômico do capitalismo em sua fase mercantil, já alcançando a primeira industrialização. As relações brasileiras com a Inglaterra eram intensas, posto que os ingleses lucraram com o tráfico de pessoas, acumulando capital suficiente para aplicar em sua industrialização. Assim, no século XIX já não interessava à burguesia liberal inglesa a escravização. Necessitavam, sim, de mercados consumidores para suas manufaturas e se impunham entre os estados produtores com ampla campanha contra a “escravidão”. No Brasil, no entanto, o tráfico prosseguiu ilegalmente, mesmo depois de criada a Lei de 7 novembro de 1831, que declarava livres os africanos importados após a proibição e incriminava os traficantes nos termos do artigo 179 do Código Criminal. E prossegue também depois de criada a Lei Eusébio de Queirós (Lei 581, de 4 de setembro de 1850). Certamente, imperavam interesses econômicos, visto que foram trazidos ilegalmente para o Brasil 560.000 africanos nesse período. A expressão “lei para inglês ver” advém dos descumprimentos da Lei Eusébio de Queirós.

Impressiona a exclusão dos negros cidadãos em nosso país, pois, como escravizados, estavam em todos os ambientes: nas minas, face aos conhecimentos da metalurgia, nas cidades foram ourives e na agricultura atuaram como profundos conhecedores de terras e plantações. Também foram barbeiros, costureiros, músicos etc. Como muitas obras bem o expressavam, a imagem do escravizado fez parte da paisagem urbana e rural.

Assim, mesmo conquistando a cidadania, os negros brasileiros passaram à invisibilidade, ausentes em todas as instituições públicas e privadas. Exceto nas cadeias públicas, manicômios e nas verdadeiras extensões das favelas e periferias das cidades brasileiras. No século XIX, os negros eram aproximadamente 53% da população nacional, mas permaneciam à margem do desenvolvimento. Como a imigração dos trabalhadores livres europeus iniciou-se em 1811, famílias trabalhadoras brancas e negros escravizados conviveram por quase cem anos. Atos normativos monárquicos, manifestadamente racistas, bem demonstram a opção por imigração de famílias e por determinadas regiões da Europa.

A política imigratória era acolhedora com os europeus, provendo estruturas administrativas com cargos e verbas públicas. A vontade política era para a inclusão. Entretanto, nenhuma providência para a inclusão dos negros. Enquanto escravizados, as reações são as rebeliões e a formação de quilombos ou ações libertadoras; somente com os processos judiciais, propostos por Luís Gama, importante advogado dos negros perante os tribunais, houve a libertação de dezenas de escravizados. Quando na posição jurídica de libertos, os negros não votavam no legislativo monárquico e, constantemente, eram obrigados a esclarecer sua situação de cidadãos libertos, pois sempre se suspeitava serem escravos fugidos. Ser negro no Brasil era ser escravo, portanto, para ser escravo e livre era preciso comprovar.

Assim, a legislação manifestadamente racista revela, por si, a monarquia escravizadora, mas também a república desigual, pois os primeiros decretos de Deodoro da Fonseca, de 1890, proibiam a imigração de africanos. Soma-se a isso a inexistência de qualquer política integradora para os negros brasileiros. Mais tarde, em 1938, Getúlio Vargas instaura o decreto-lei número 406, no qual o governo federal reservava-se o direito de limitar ou suspender, por motivos econômicos ou sociais, a entrada de indivíduos de determinas raça ou origens, ouvindo o conselho de imigração e colonização.

É, portanto, urgente que o Brasil reconheça sua adversidade sob a égide da atual Constituição Federal em vigor nos últimos trinta anos. Reconheça a importância da dignidade da pessoa humana como princípio estruturante ao reconhecimento dos direitos humanos. Ressalto aqui as determinações da ONU que coíbe formas discriminatórias sejam étnicas ou de gênero, das quais o Brasil é signatário. Hoje, convivemos com legislações específicas sobre os direitos de coletividades vulneráveis (crianças, adolescentes, mulheres, negros, indígenas, pessoas trans etc.). Criamos políticas de ações afirmativas, visualizando na sociedade sujeitos coletivos discriminados e marginalizados, tratando-os diferentemente, ou seja, discriminando-os positivamente, busca-se medidas protetivas para incluí-los ao desenvolvimento.


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