“Pra cachorro”: uma explosão de abundância no português brasileiro

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH/USP

 04/07/2024 - Publicado há 5 meses
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal

 

 

 

A língua portuguesa, especialmente em suas variedades regionais, é rica em expressões idiomáticas que muitas vezes têm origens obscuras ou curiosas. Uma dessas expressões é “pra cachorro”, utilizada no português brasileiro para denotar algo em grande quantidade ou intensidade, em construções como: “Esse mês eu tenho trabalho pra cachorro, nem sei por onde começar”; “O evento estava lotado, tinha gente pra cachorro”; “Ontem choveu pra cachorro, alagou a cidade inteira”.

Mas como cachorro entraria na composição de uma expressão indicando quantidade ou intensidade?

Latidos e zurros em cena: uma primeira hipótese

Uma hipótese para a origem da expressão “pra cachorro” estaria enraizada na cultura rural brasileira. No contexto rural, cães são frequentemente numerosos e desempenham papéis importantes na guarda de propriedades, pastoreio de animais e caça. Esse cenário sugere que a expressão poderia ter surgido da observação da vida rural, onde a abundância de algo era associada à necessidade de sustentar muitos cães. Assim, “pra cachorro” poderia significar “em quantidade suficiente para muitos cães”, ou seja, em grande quantidade. Reflexão análoga poderia ser feita para a hipótese formativa da expressão “pra burro”, tendo em vista que ambas as expressões são usadas para indicar uma quantidade ou intensidade (embora o emprego dessa última seja ligeiramente mais comum em algumas regiões do Brasil).

Essa explicação, porém, teria algumas limitações. Não há evidências concretas ou registros históricos que comprovem diretamente essa origem. A conexão entre a vida rural e a expressão parece lógica, mas falta documentação que a solidifique.

Além disso, burros são animais herbívoros que pastoreiam, portanto, não haveria grande preocupação com a necessidade de produzir quantidades de alimento para mantê-los.

O papel dos cachorros na sociedade: uma segunda hipótese

Os cachorros têm sido companheiros humanos por milênios e são frequentemente encontrados em grandes números tanto em áreas rurais quanto urbanas. A expressão “pra cachorro” possivelmente se originou da observação cotidiana de grandes matilhas em ambientes urbanos ou rurais, onde a quantidade ou intensidade de algo era comparada à presença significativa de cães.

Essa explicação encontra respaldo em Antenor Nascentes, em livro publicado no ano de 1953. No verbete “cachorro” de A gíria brasileira, lê-se: “Pra cachorro, em grande quantidade como os cachorros do meio da rua […]”. Como se vê, o valor quantitativo da expressão está diretamente associado à numerosa população canina que vagava.

Ainda assim, caberia perguntar: essa possível conexão entre a numerosa presença de cães nas ruas e a expressão idiomática poderia ser documentada? O que não tornaria essa interpretação também especulativa? Cenas de um próximo capítulo…

Uso hiperbólico da expressão

As expressões idiomáticas frequentemente contêm hipérbole, uma figura de linguagem que exagera uma ideia para enfatizar seu significado. A expressão “pra cachorro” pode ser vista como um uso hiperbólico em que a referência aos cães serve para amplificar a ideia de quantidade ou intensidade.

A análise parece-nos avalizada do ponto de vista linguístico e também histórico, haja vista a documentação citada por Luciana Imaculada de Paula. Em artigo intitulado “Controle populacional de cães e gatos em áreas urbanas”, a autora menciona registros históricos indicando que, já na época do Brasil Império, o número excessivo de cães errantes nas ruas da capital Rio de Janeiro era motivo de preocupação para as autoridades. É o que se lê, ainda segundo a autora, no ofício expedido em 3 de fevereiro de 1816 pelo intendente de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana, ao cel. José Maria Rebelo de Andrades Vasconcelos e Souza, comandante da guarda real da Polícia. Nesse ofício, o intendente chega a pedir que se matem os cães vadios do Campo de Santana e de outras partes da corte, alegando que a presença desses era insuportável, pois avançavam, mordiam e esfarrapavam o povo, além de poderem transmitir alguns tipos de males.

Conclusões para as quatro patas: formação linguística e história social

“Pra cachorro”, no português brasileiro, seria exemplo de como a linguagem se modifica e se enriquece com contribuições culturais e históricas. Sua provável origem na observação cotidiana de grandes matilhas em zonas urbanas ou rurais – em que a quantidade ou intensidade de algo era comparada à presença significativa de cães – ilustra como as experiências cotidianas influenciam a formação dessas expressões idiomáticas. Uma análise linguística mais aprofundada, aliada à comparação com outras línguas românicas, poderia ainda reforçar a inclinação românica ao uso dessas construções hiperbólicas.

Isso ressalta a complexidade e a riqueza da etimologia dessas locuções, mostrando que, muitas vezes, elas carregam consigo uma bagagem cultural e histórica que vai além da explicação imediata. A investigação etimológica de “pra cachorro” revela não apenas a história de uma expressão, mas também oferece um vislumbre da cultura e das vivências dos falantes que a utilizam, mesmo que de maneira especulativa e interpretativa.

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