Contra a democracia: Mulheres à direita

Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 15/06/2023 - Publicado há 1 ano

As mulheres entram lentamente no campo de disputa política. Para se candidatarem, precisam conquistar uma legenda num partido político, verba para divulgar suas propostas, apoio para material de campanha e transporte, meios de difusão através das mídias e espaço para se organizarem. São obstáculos que vão além da disputa pelo poder, são também de gênero.

Para superar o boicote machista, a legislação eleitoral procura equilibrar candidaturas, incluindo diversificação de pessoas de diferentes gêneros e cores. Os “donos” dos partidos não aceitam dividir o poder e boicotam as verbas partidárias. Julgados e condenados pelo Judiciário, criam alternativas legislativas através de emendas constitucionais que os absolvam do descumprimento da legislação que equilibraria a presença de todos e todas, brancos e negros, amarelos, indígenas nas campanhas eleitorais.

Veja-se por exemplo a emenda constitucional 9/2023, que isenta de sansão os partidos políticos que não cumprirem a aplicação de parte dos Fundos Partidários nas campanhas políticas das mulheres candidatas. E não é a primeira vez que essa aberração ocorre, pois essa proposta legislativa fora aprovada em 2009, modificada em 2019, reapresentada em 2022 e agora em 2023 tenta eliminar os sansões por descumprimento (Veja-se a corretíssima explicação de Miguel Reale Junior, no Estadão, em 3 de junho).

É de domínio público a ridícula expressão “candidatas laranjas” para se referir ao criminoso comportamento de alguns partidos de falsear a inclusão de mulheres apenas para cumprir a quota. Ou seja, só incluem mulheres para fazer número, são candidaturas falsas, não têm votos, e descobre-se que foram colocadas apenas para que alguns partidos utilizem o fundo partidário.

Ainda assim vemos que lenta e persistentemente algumas mulheres participam da vida política, sobretudo por meio da “representação extraparlamentar”, como mostraram Lucia Avelar e Patrícia Rangel, no livro 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile.

Há muitas maneiras de fazer política sem ocupar necessariamente um cargo. Basta ver o histórico científico, experiência profissional, carreiras construídas na base do estudo, da pesquisa e do compromisso público de algumas mulheres como as indicadas para os ministérios do governo atual. São profissionais de representação internacional e que, com todas as dificuldades, como quase todas nós, somam trabalho, pesquisa, família, companheiros, filhos, netos, amigos, estudantes e militância sociopolítica.

Essas mulheres são base e fruto do movimento feminista, enfrentaram no passado as conservadoras e carolas “mulheres de Santana”. Estas as acusavam de serem antifamília e libertinas, pois difundiam através de palestras questões sobre sexualidade. Hoje até as remanescentes conservadoras daquele grupo concordam com o paradigma feminista de que as mulheres devem estudar, podem trabalhar, ter o próprio dinheiro, registrar seus filhos, direitos consagrados na Constituição de 1988.

A partir das eleições de 2022, é cedo para avaliarmos quanto avançamos na igualdade de gênero na Câmara Federal e no Senado, onde foram eleitas apenas cerca de 18% de mulheres de diversas posições ideológicas.

O cenário não é confortável se focalizamos os ataques de 8 de janeiro à democracia e a presença de mulheres nos acampamentos à porta dos quartéis. Pessoas que pregavam a volta dos militares e uma educação militarizada. Ignorantes do conceito científico de gênero e apoiadas em falsas informações deliberadamente difundidas entre elas, propõem proibir a discussão desse tema nas escolas. Ignorando o número de mulheres que morrem nos hospitais públicos em decorrência de abortos malfeitos, são contra uma política que evitaria essa catástrofe humana, para não dizer econômica. São contra os direitos reprodutivos afirmando que a mulher não é dona de seu corpo. Propõem que o Estado não interfira na economia, mas contraditoriamente exigem que o Estado controle a reprodução dos corpos, impeça os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e até mesmo não aprove adoções por casais homossexuais.

Descendo para um nível mais vulgar, me pergunto se, ao impedir que se ensine na escola a educação sexual, vão persistir que ela seja aprendida nas frases dos banheiros, se os direitos reprodutivos continuarão a ser ensinados por sacerdotes pedófilos, ou se a saúde das meninas e meninos continuará a ser supostamente orientada em conversas com as próprias mães… tema que estas jamais ousam abordar porque também não sabem ou têm vergonha. E continuaremos a ver meninas engravidarem mal entrando na adolescência?

Os problemas descritos não são fictícios e estão presentes aqui e em vários países autoritários como Polônia, Áustria e outros regidos por governos não democráticos. Ministras e chefes de partidos de extrema direita como Georgia Meloni, na Itália, e Marina Le Pen, na França, são antifeministas, conservadoras quanto aos costumes, pregam uma determinada religião, são contra os muçulmanos, os negros, pessoas provenientes de países que antes eram colonizados mas agora inconvenientes.

Chegam a propor fechar portos, barrar mares, impedir ajuda aos náufragos imigrantes. São movidas pelo ódio, ódio ao saber, à ciência, ao diverso, ao estrangeiro e às mulheres liberadas. Propõem um paradoxal Estado liberal na economia e autoritário na moral e nos costumes. Por outro lado, a democracia garante um eleitorado multifacetado, dá espaço a conservadores, mas não aceita racismos e governos autoritários.

Nessa travessia, peço licença a Drummond pois “no meio do caminho tem uma pedra”, que mais uma vez temos de romper.

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