“Coincidência retórica”, não. Escolhas

Por Lineide Salvador Mosca, professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP e coordenadora do Grupo de Estudos de Retórica e Argumentação (GERAR)

 04/02/2020 - Publicado há 5 anos
Lineide L. Salvador Mosca – Foto: Arquivo pessoal
Ao falar, estamos construindo a todo momento, desde as camadas mais profundas do pensamento, passando por suas disposições e articulações, que chegam às mais diversas manifestações discursivas. O mesmo movimento ocorre em sentido inverso, ao acessarmos todas essas manifestações. Dá-se um constante produzir que envolve escolhas diante das muitas circunstâncias que se apresentam.

No recente episódio do vídeo, protagonizado pelo então secretário especial da Cultura, pode-se reconstruir o cenário em que se deu a emissão de seu pronunciamento, constituindo aquilo que na retórica antiga se chamou de actio, ou seja, as circunstâncias presentes e atuantes em sua execução. Nesse fazer, entram a postura daquele que faz o pronunciamento, as expressões faciais, o olhar, os gestos, a aparência pessoal, o tom de sua voz, a entonação, o ritmo da fala, as pausas, enfim, tudo o que faz parte dessa proxêmica, isto é, o uso que se faz desses elementos e do espaço para produzir a significação.

Ocupando a posição central do espaço, encimado pela foto oficial do presidente da República, o secretário se vê ladeado pela bandeira brasileira, à esquerda, e à direita a cruz dos missionários jesuítas, que remete à ação colonizadora. O fundo musical da partitura wagneriana (Lohengrin) evoca, por sua parte, a predileção musical do líder nazista, trazendo à memória nefastos momentos da História. O quadro estava perfeitamente concebido por um homem de teatro, conhecido como dramaturgo e experiente nessas questões.

Não bastassem esses elementos de forte valor simbólico, o texto produzido remete ao pronunciamento do arquiteto da propaganda nazista, o criador das estratégias de adesão das massas, do modelo da eloquência hitleriana, seu idealizador Joseph Goebbels. Cabe lembrar que as referências diretas ou implícitas, de natureza cultural e social, por meio de alusões, insinuações e subentendidos são também constituintes do sentido, uma vez que fazem parte do acervo comum dos interlocutores e estabelecem uma certa cumplicidade com estes. Nos dias subsequentes à emissão, falou-se muito de paráfrase, de plágio do texto produzido para a divulgação do Prêmio Nacional das Artes, momento de homenagem e condecoração que acabou resultando num debate de repúdio geral, tanto em âmbito nacional como nas repercussões internacionais de indignação diante do fato.

Esse tipo de discurso, a que a retórica antiga denomina epidítico, tem sido valorizado pela Nova Retórica, a partir dos anos de 1950, que viram surgir dois tratados da maior importância para os estudos da argumentação: Tratado da Argumentação – a Nova Retórica, de Chaim Perelman, e Os Usos da Argumentação, de Stephen Toulmin, ambos de 1958. São os discursos de ocasião e de circunstâncias que cumprem a sua função, quer ao enaltecer o que apresentam, quer ao fazer severas críticas, gerando reações de desagrado ou de indignação, muitas vezes desencadeando reações mais efetivas e duradouras do que seriam obtidas nos discursos jurídicos e deliberativos, as duas modalidades mais praticadas no mundo greco-latino.

Os limites dos discursos de ocasião não ficam bem claros, pois podem beirar o humor, o ridículo, a bajulação. O caráter emocional dominante permite transmitir uma exaltação do tipo comoção, dados os elos ou rupturas que podem criar, daí a eficácia de seus resultados. Não bastaram os pedidos de perdão do protagonista, alegando “infeliz coincidência retórica”, para desfazer o desastre produzido. Aqui ficou pior a “emenda que o remendo”, por não revelar lisura no tratamento da questão e ocultar intenções. Não se poderia alegar desconhecimento e ignorância quando se trata da condução de um cargo de relevante importância. Os bons princípios do jornalismo, os trabalhos acadêmicos e as produções das ciências em geral se pautam pela indicação das fontes e pela responsabilização das palavras.

As citações são muito bem-vindas para endosso das ideias e opiniões, desde que pautadas pelas normas que as regem. Contaram, antes, os efeitos produzidos, o impacto generalizado causado e o desnudamento das posições assumidas, conquanto não reveladas com clareza. As diversas vozes que circularam e que englobaram políticos, artistas e personalidades de toda ordem, usaram das mais veementes qualificações, ou melhor dizendo, desqualificações, tais como “inaceitável”, “insustentável”, “desastroso” e outras.

Tomando de perto os dois textos, o fundante, a matriz do texto de Goebbels, e o produzido para a situação descrita, do ex-secretário especial da Cultura, constata-se a “infelicidade” deste último, merecedor de todos os adjetivos de que foi alvo. O texto pastiche nada mais é do que uma imitação grosseira de outras vozes, podendo soar como uma paródia ou imitação burlesca: apropriações léxicas e temáticas (heroica, nacional, imperativa) e decalques sintáticos (“ou então não será nada”), adaptações a equivalentes da outra cultura num exercício de paráfrase (ferreamente romântica por vinculadas às aspirações urgentes de nosso povo; com grande pathos por envolvimento emocional).

Por tudo que ficou aqui exposto, é bastante leviana a argumentação de que houve uma “coincidência retórica”, sabendo-se que esta não é um fenômeno de superfície, mas que revela e desvela as intenções de seu produtor, por mais que tente disfarçá-las. O mostrar-se já foi um grande mérito do vídeo, deixando menos obscuras as reais intenções. Prudência e virtude não são suas melhores qualificações.

 


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