Darwin e os darwinistas

Por Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, professora do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP

 16/10/2019 - Publicado há 5 anos
Lilian Al-Chueyr – Foto: Arquivo pessoal
O ano de 2019 é significativo para a história da biologia, particularmente, para a história da evolução, pois nele se comemora os 210 anos do nascimento de Charles Robert Darwin (1809-1882) e os 160 anos da publicação do livro Origin of species (Origem das espécies, 1859).  Essa obra, que teve seis edições, mudou completamente o estudo da biologia.

Ao defender a teoria da descendência com modificação, em substituição à ideia de que as espécies eram fixas, Darwin se opôs à visão que era aceita pela maioria dos naturalistas de sua época. Entretanto, como nos mostra a própria história da ciência, a aceitação de uma nova teoria não é algo imediato e simples e, nesse sentido, Darwin contou com a ajuda de colaboradores que apoiaram e defenderam sua teoria perante a comunidade científica.

O círculo de Darwin era constituído por diversos estudiosos, tais como Thomas Henry Huxley (1825-1895), Charles Lyell (1797-1875), Herbert Spencer (1820-1903), Joseph Dalton Hooker (1817-1911), Alfred Russel Wallace (1823-1913) e George John Romanes (1848-1894), dentre outros. Enquanto Darwin era vivo, eles apoiavam suas ideias e as eventuais divergências ficavam restritas a discussões no âmbito privado. Porém, após a morte de Darwin, os membros de seu círculo se envolveram em discussões de caráter público, enfatizando em suas publicações as diferenças em seu modo de pensar, disputando a posição de liderança em relação aos estudos sobre evolução, antes ocupada por Darwin.

Assim, Spencer, Romanes e Wallace, cada um por si e em assuntos diferentes, envolveram-se em controvérsias com August Friedrich Leopold Weismann (1834-1914), que acreditava que a seleção natural explicava tudo no processo evolutivo.

Durante boa parte do tempo foi Thomas Huxley, conhecido como o bulldog de Darwin, quem defendeu sua teoria publicamente. Entretanto, nos últimos anos de vida de Darwin, este papel coube a George John Romanes.

A proposta original de Darwin se caracterizou pela apresentação de uma grande quantidade de evidências de que a evolução é um fato; pela busca de explicações para as causas da evolução orgânica; e do papel dessas causas em casos particulares. Além disso, Darwin tentou responder a objeções às suas ideias e indicou linhas de pesquisa promissoras.

A partir do artigo publicado em 1858 e no Origin of species, em 1859, Darwin propôs a teoria da descendência com modificação de acordo com a qual as espécies viventes (incluindo os seres humanos) não surgiram como se apresentam hoje em dia: descendem de espécies extintas e ancestrais comuns modificadas por causas naturais. Uma dessas causas é a seleção natural, que foi considerada por ele como o principal, mas não exclusivo, meio de modificação das espécies.

A seleção natural é um processo semelhante à seleção artificial, empregada consciente ou inconscientemente pelo criador de animais ou pelo criador de plantas ornamentais para produzir novas variedades. A seu ver, o processo evolutivo é lento e gradual. A seleção natural age sobre variações leves que ocorrem ao acaso dentro de uma população, preservando aquilo que for útil para os organismos. Essas variações são transmitidas aos descendentes. Como nasce um número maior de indivíduos do que poderia sobreviver, existe uma luta pela existência. Nessa luta sobrevivem os indivíduos mais aptos, que deixam descendentes.

Além da seleção natural, Darwin atribuiu outras causas naturais para a transformação das espécies, como a seleção sexual, que explicava a beleza de algumas características apresentadas pelos machos de algumas espécies que influenciam sua escolha pela fêmea e consequente produção de descendentes, e a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso.

Assim, Darwin não apresentou uma proposta fechada no Origin of species, mas inaugurou um programa de pesquisa aberto a novas contribuições. Nem os próprios membros do círculo de Darwin seguiam todos os pressupostos de sua teoria. Eles adotaram alguns dos aspectos da teoria de Darwin, rejeitaram outros e, muitas vezes, acrescentaram novos aspectos.

É exatamente isso o que ocorre com algumas teorias. Conforme o tempo vai passando, alguns aspectos vão sendo esclarecidos, novas evidências são encontradas, o que faz com que sejam introduzidas modificações, como foi o caso da teoria de Darwin, que por esta razão pode ser caracterizada como um programa de pesquisa.

Wallace e Weismann, por exemplo, não aceitavam a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso na fase madura de sua obra. Há outros casos na história da ciência em que a teoria é substituída como um todo, como, por exemplo, o caso da física aristotélica, que foi substituída pela física newtoniana. Nesse segundo caso, trata-se de paradigmas diferentes.

Atualmente a seleção natural é considerada dentro de um quadro hierárquico. Portanto, se aplica a diferentes níveis do mundo biológico.  Entretanto, acredita-se que as variações, em sua grande maioria, não são nem úteis nem injuriosas, mas neutras. Uma grande quantidade de variação genética surge nas populações naturais através de processos aleatórios de mutação (nos genes e cromossomos) e através da recombinação. Por outro lado, sabe-se que nem sempre a evolução é gradual, como pensava Darwin. Não se aceita a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso, um importante pressuposto da teoria original de Darwin adotado até o fim de sua vida, bem como sua hipótese para explicar a hereditariedade (a pangênese).

Entretanto, como o próprio Darwin pensava, admite-se hoje em dia que a seleção natural não explica tudo. Será que o fato de não se aceitar boa parte da teoria original de Darwin atualmente torna sua contribuição menos significativa?

A resposta é negativa. Em primeiro lugar, deve-se considerar uma proposta científica dentro de seu contexto. Em segundo lugar, é possível enumerar uma série de desdobramentos relevantes que mostram a significância da proposta de Darwin. Um deles é ter permitido um novo enfoque sobre o estudo dos seres vivos. Por exemplo, o estudo da classificação dos seres vivos (sistemática) passou a ser feito de outra forma, levando em conta sua origem e relações com outras espécies.

Outro exemplo seriam os estudos ecológicos que levam em conta as relações entre os indivíduos de uma mesma espécie, entre espécies diferentes e com o meio.

Os próprios estudos que se seguiram à contribuição de Darwin e que consideraram populações e não indivíduos isolados não deixam de ter se inspirado na contribuição de Darwin. Na medicina, os estudos de fisiologia que levam em conta as relações que existem entre os diferentes órgãos são fortemente influenciados pelas ideias darwinianas de correlação entre órgãos e funções. Se a ciência atual considera que a evolução é um fato, Darwin contribuiu significativamente para que isso acontecesse.

 

[Esta é uma versão reduzida de artigo a ser publicado em breve na Revista USP.]

 


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