A USP é logo ali:
em Monte Negro, Rondônia
Longe de São Paulo, mas perto das doenças negligenciadas, na região Norte do Brasil, o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP mantêm uma base permanente: é o ICB5. Malária, leishmaniose, Chagas, hipertensão e diabetes são algumas das doenças pesquisadas. Um internato e um programa de estágios ajudam na formação de alunos de medicina. E a população local é beneficiada com atendimento médico
Quase 3 mil quilômetros separam a USP, na capital paulista, da cidade de Monte Negro, em Rondônia. O município de cerca de 15 mil habitantes e distante 250 quilômetros de Porto Velho seria apenas mais um pequeno município da região Norte do Brasil, não fosse pela atuação da universidade.
Desde 1997, existe um núcleo avançado de pesquisa com uma forte atuação em Monte Negro. Administrado pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, é conhecido como ICB5 e tem coordenação do professor Luís Marcelo Aranha Camargo, médico infectologista.
O ICB5 realiza atendimento gratuito em saúde para a população local e de outros municípios de Rondônia e até de Estados vizinhos, na região Norte. Apenas entre 2013 e 2017, foram atendidos cerca de 38 mil pacientes e realizados cerca de 63 mil exames laboratoriais, além de 12 expedições pelos rios Madeira e Purus, em Rondônia, para atendimento em saúde da população ribeirinha (2.355 pessoas).
O ICB5 também possibilita a realização de estágios para alunos de graduação, principalmente medicina - são eles que atendem os pacientes, sob supervisão.
Por fim, desenvolve uma série de importantes pesquisas científicas. Somente nos últimos quatro anos, pesquisadores do ICB5 estiveram a frente de sete projetos de pesquisa e publicaram 37 artigos científicos em revistas internacionais.
Mas os benefícios da presença do ICB5 em Monte Negro vão além. Para reforçar os trabalhos, teve início, em 2002, uma parceria com a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP. Foi assim que começou o Projeto FOB USP em Rondônia, que leva atendimento gratuito em fonoaudiologia e odontologia para os moradores de Monte Negro, nos meses de janeiro e julho, e, desde 2013, para a comunidade ribeirinha de Calama, no mês de setembro.
Em janeiro de 2017 eu, Valéria Dias, e a fotógrafa Cecília Bastos viajamos até Monte Negro e tivemos a oportunidade de conhecer as atividades realizadas pelo ICB5. Esta reportagem especial tem o objetivo de apresentar este trabalho à sociedade.
Boa leitura!
Valéria Dias
Subeditora de Ciências do Jornal da USP
São Paulo, 21 de Julho de 2017
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Conheça algumas pesquisas desenvolvidas pelo ICB5 em parceria com outras unidades da USP e universidades brasileiras
..Pesquisas e projetos relacionados às doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)
Visitação domiciliar
Toda semana, uma equipe de técnicos de enfermagem e alunos de medicina do ICB5 visitam 100 domicílios de Monte Negro. São atendidas pessoas com dificuldades locomotoras, psiquiátricas ou com outros quadros que as impeçam de comparecer nas clínicas do ICB5. Bandeirinhas coloridas colocadas nas casas indicam o grau de urgência da visitação. Alguns casos são levados até os preceptores que, se necessário, visitam o local pessoalmente.
Bandeira verde - casos simples (exemplo: um casal jovem com filhos vacinados e sem nenhuma doença entre os familiares). Visitas menos frequentes ou sob demanda.
Bandeira amarela - quando há necessidade de um acompanhamento moderado (exemplo: um idoso passando por tratamento para depressão. Podem ser observadas tendências suicidas, que demandam mais atenção da equipe). Visitas semanais.
Bandeira vermelha - casos graves que pedem acompanhamento intenso (exemplo: paciente com diagnóstico recente de diabetes e níveis altos de glicemia). Visitas semanais. Com o tratamento, este paciente pode passar para bandeira amarela.
Programa de saúde escolar
Em 2016, os pesquisadores do ICB5 analisaram e coletaram amostras de sangue de 499 alunos com idades de 6 a 16 anos, entre os 1.500 escolares do município. O objetivo foi detectar a ocorrência precoce de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como hipertensão, diabetes e dislipidemias (gordura no sangue). Os números encontrados foram alarmantes: 30% de obesidade, 30% de sedentarismo, 5% de hipertensão, 9% de intolerância a glicose [uma condição pré-diabética] e 30% de dislipidemia. Com isso, os pesquisadores desenvolveram um projeto para analisar a saúde de todos os escolares de Monte Negro e região ao longo do ano de 2017. A ideia é focar não apenas nas DCNT, mas também em outros problemas de saúde pública, como sedentarismo e prevenção da gravidez precoce: atualmente, cerca de 30% das gestantes da cidade têm menos de 18 anos. Até o momento foram examinados 1.200 alunos. Em função da precária situação da saúde bucal, alguns escolares receberão atenção da equipe do Projeto FOB USP em Rondônia, realizado pela Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, em julho de 2017.
INCT-EpiAmO
O Instituto Nacional de Epidemiologia da Amazônia Ocidental (INCT-EpiAmO) foi criado para realizar pesquisas nas áreas de genética populacional, epidemiologia, vetores de doenças, doenças tropicais negligenciadas, envelhecimento populacional, além de desenvolver projetos relacionados à biotecnologia. Aprovado no final de 2016, com verba de R$ 5,5 milhões para os próximos seis anos, tem como coordenador o professor Henrique Krieger, do ICB, e a vice-coordenação do professor Luís Marcelo Aranha Camargo. O EpiAmO é o único da Amazônia que atua na área de saúde humana e que tem por objetivo principal entender melhor este complexo quadro observado na Amazônia, onde caminham de braços dados as antigas doenças infectoparasitárias, como malária, leishmaniose e Chagas; e as recentes doenças crônicas não-transmissíveis, como câncer, hipertensão arterial, dislipidemias e diabetes.
..Projetos e pesquisas envolvendo doenças infectoparasitárias
Uma outra doença tropical a que se dá pouca atenção é a mansonelose. Trata-se de um tipo de verminose causada pelo verme Mansonella ozzardi e transmitida através da picada de algumas espécies de borrachudo. Ocorre na Amazônia e na América Central. A doença afeta entre 40 a 50% da população ribeirinha de rios do Estado do Amazonas. Em Rondônia, não foi constatada a presença da verminose. De acordo com o professor Luís Marcelo Aranha Camargo, até o momento, poucos estudos avaliaram o tratamento farmacológico da infecção por M. ozzardi e em nenhum foi utilizado um grupo com placebo como controle. Em conjunto com a Universidade Federal de São João Del Rey, os pesquisadores do ICB5 irão testar o uso de ivermectina, fármaco já utilizado para o tratamento de uma série de verminoses, visto que ainda não há uma droga específica para a mansonelose. Uma outra pesquisa, em conjunto com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pretende caracterizar clinicamente a doença e verificar se ela também acomete a visão, pois os vermes causadores pertencem ao mesmo grupo de parasitas que causam cegueira nos índios Yanomamis do Brasil e da Venezuela. As pesquisas serão realizadas no município de Lábrea, Amazonas, a 700 quilômetros de Monte Negro. Um fato importante sobre a mansonelose, conforme explica o professor Camargo, é que a expressão “doença negligenciada” é um termo específico que elenca algumas doenças tropicais que estão em uma lista da Organização Mundial da Saúde (OMS). A mansonelose não está entre elas, mas os pesquisadores estão batalhando para que a doença seja incluída entre as negligenciadas.
Os pesquisadores do ICB5 desenvolveram estudos onde constataram que 20% da população ribeirinha dos rios da Amazônia apresentam a forma assintomática de malária. A pessoa tem o parasito no sangue, mas não sente nem apresenta nenhum dos sintomas da doença. A descoberta da existência da malária assintomática no Brasil é bastante importante porque este paciente acaba, involuntariamente, transmitindo a doença ao ser picado pelo mosquito, perpetuando a infecção.
Também conhecida como úlcera de Bauru, a leishmaniose tegumentar americana é transmitida pela fêmea do mosquito-palha (flebotomíneo) infectada com parasitos (leishmanias). Ela se alimenta do sangue de mamíferos silvestres como tatu, bicho preguiça, raposa, transmitindo as leishmanias a esses animais. O homem, ao frequentar a floresta, pode ser picado pelo mosquito-palha que, se estiver infectado, vai transmitir a doença. A presença dos parasitos desencadeia um bombardeio do sistema imunológico humano no local da picada. Isso destrói tanto as células infectadas como as não infectadas, levando à formação de uma lesão no lugar. Existem vários mosquitos-palhas que transmitem vários tipos de leishmanias. Pesquisas desenvolvidas pelo ICB5 levaram à identificação de dois mosquitos-palhas nunca antes descritos pela ciência, encontrados na fronteira do Acre (Assis Brasil) com o Peru (Iñapari). Também foi possível incriminar um outro mosquito-palha como vetor da doença.
Um outro estudo ligado à leishmaniose envolveu a coleta de mosquitos-palhas encontrados em cavernas. Os pesquisadores coletaram exemplares dos mosquitos de 11 cavernas do Estado de Rondônia (inclusive, algumas não estavam catalogadas pelos órgãos responsáveis). As coletas foram realizadas durante dois anos, na época da chuva e da seca. De acordo com o professor Luís Marcelo Aranha Camargo, acredita-se que os mosquitos-palhas são muito antigos e já existiam bem antes da separação dos continentes americano e africano. Como dentro das cavernas eles vivem em ambientes bastante estáveis (sem predadores e com alimentação disponível), então é possível que eles não sejam muito diferentes dos africanos. O primeiro passo para confirmar essa hipótese é verificar a fauna - e a fauna dentro das cavernas é totalmente distinta da externa. É preciso realizar estudos filogenéticos para saber o quão próximo são esses mosquitos (o brasileiro e o africano). Muitos dos mosquitos coletados estavam infectados com leishmania. Mas ainda é necessário investigar se eles se alimentam apenas dos animais silvestres, ou também dos que habitam as cavernas, ou ainda se há alguma afinidade alimentar com sangue humano.
Rondônia é o estado brasileiro com o maior registro de fauna de carrapatos do Brasil. Esses artrópodes têm grande importância médica e veterinária, pois além de causarem doenças que afetam bovinos e equinos, trazendo prejuízos econômicos, também são responsáveis por enfermidades que afetam a saúde humana, como a febre maculosa. Em conjunto com os professores Marcelo Bahia Labruna e Solange Maria Gennari, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, a equipe do ICB5 descobriu, nos últimos três anos, três novas espécies de carrapatos. E há ainda outros exemplares em estudo. A ideia dos pesquisadores é descobrir a quais doenças de importância médica e veterinária esses carrapatos estão associados.
Quando tratada corretamente, a hanseníase apresenta 100% de cura. Porém, durante o tratamento, cerca de 5% das pessoas apresentam reações como inflamações dos nervos (neurites), nódulos na pele, inchaço na face e paralisia de membros. Desses pacientes, alguns apresentam reações mais leves; outros, mais graves. A medicação utilizada nas reações mais leves é de um tipo. Nas reações mais graves, é usado outro fármaco, porém muitas vezes ele não funciona, sendo necessário aplicar um segundo medicamento. Projeto de pesquisa do ICB5 realizado em conjunto com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) buscou determinar, a partir de aspectos genéticos, qual era a droga mais eficiente para cada tipo de paciente.
Uma das orientações do Ministério da Saúde quando um paciente é diagnosticado com hanseníase é que todos os moradores da casa também sejam examinados. O Ministério idealizou uma ficha de autoimagem, que traz perguntas simples ligadas à dormência de membros ou de lugares do corpo, se tem alguma mancha, etc. Essa ficha foi deixada em algumas residências de Monte Negro para cada membro da família preencher. Os pacientes com suspeita de estarem infectados passaram pela equipe médica coordenada pelo ICB5 e alguns tiveram o diagnóstico de hanseníase confirmado. Baseados em informações científicas de que o raio de transmissão da doença é de 10 metros, os pesquisadores aplicaram a ficha nas residências vizinhas a esses pacientes (casas da esquerda, direita, da frente e de trás). Com isso, a notificação de hanseníase no município aumentou em 20%. Muitos foram descobertos precocemente, o que beneficiou o tratamento e pode evitar o aparecimento de sequelas. A ideia agora é aplicar a ficha de autoimagem nos chamados comunicantes sociais como pastores, padres, professores, e escolares.
As micoses sistêmicas são aquelas que acometem órgãos internos e as camadas mais profundas da pele. Lacaziose (doença de Jorge Lobo) e cromoblastomicose são algumas delas. São transmitidas por fungos presentes na natureza, através de farpas de madeira ou espinhos que, ao penetrar a pele, são inoculados na derme, um local quente, protegido do meio externo e cheio de alimento: ambiente ideal para proliferação. Com o passar do tempo, atingem os membros inferiores. São doenças altamente estigmatizantes pois causam deformidades, perda de motricidade (devido ao tamanho das lesões) e ocasionam um processo de fibrose. Isso dificulta o tratamento, pois a área afetada não é vascularizada e se torna uma barreira contra a ação de fármacos. De acordo com o professor Luís Marcelo Aranha Camargo, muitos médicos não estão treinados de forma adequada e não conseguem diagnosticar corretamente as lesões. Pesquisas do ICB, em parceria com o Instituto Adolpho Lutz de São Paulo, buscaram identificar gêneros e espécies de fungos causadores da cromoblastomicose, além de identificar os aspectos clínicos da doença.
A cidade de Ouro Preto do Oeste, em Rondônia, vivia um surto com mais de mil infectados por esquistossomose. Foi solicitado que o ICB5 pesquisasse as causas do problema. Eles analisaram a população e coletaram cerca de 500 caramujos. No entanto, os animais não estavam infectados com o verme Schistossoma mansoni. Alguns exemplares foram levados ao Instituto Adolpho Lutz. Foi verificado que esses caramujos não eram bons transmissores da doença: ou eles morriam ao serem infectados com os parasitos, ou não conseguiram produzir cercárias (as formas infectantes). Ao investigarem a população local, descobriu-se que os doentes eram migrantes vindos de outras regiões brasileiras, endêmicas de esquistossomose, principalmente Minas Gerais.
O ICB5 integra uma rede de pesquisadores de várias instituições que estão caracterizando a fauna de barbeiros dos estados da amazônia, seus hábitos alimentares e avaliando se estão ou não infectados por Trypanosoma cruzi. As pesquisas levaram à identificação de um grande número de barbeiros em Rondônia e no Acre. Os cientistas também descobriram uma nova espécie, a Rhodnius montenegrensis. Uma pesquisadora orientada pelo professor Camargo está avaliando se os barbeiros coletados estão infectados pelos parasitos. Os resultados preliminares indicam que 75% deles apresentaram resultado positivo para o T. cruzi e 25% para o T. rangeli (que não provoca a doença, mas confunde o diagnóstico). O conteúdo alimentar presente na barriga dos insetos coletados também está sendo avaliado: a hipótese é que se for encontrado sangue de animal silvestre, o barbeiro está longe do homem. Mas se for encontrado de animais domésticos, isso indica que ele está mais próximo dos seres humanos.
De acordo com o professor Luís Marcelo Aranha Camargo, no início e até meados do século passado, o grande problema era a transmissão vetorial da doença de Chagas. Durante o dia, o vetor “barbeiro” se escondia nas paredes das casas de pau a pique e, à noite, saia para se alimentar e picava o homem, transmitindo pelas fezes e urina o parasito Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Essa forma de transmissão diminuiu consideravelmente. Entretanto, na última década, foram registrados 940 novos casos da doença. A maior parte em estados da Região Norte e ocasionados, principalmente, pela transmissão via oral (quando a pessoa ingere o parasito através de alimentos e bebidas contaminados). Nestes casos, o parasito se apresenta ao sistema imune de forma diferente: a carga de tripanossomatídeos é maior, a infecção é mais aguda e a letalidade aumenta.
..Artigos
..Reportagens
Cientistas testam droga contra verminose que afeta ribeirinhos
Resultados podem dar base científica para o uso da ivermectina no tratamento e controle da mansonelose
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Programa cuida da saúde de escolares de Monte Negro
Objetivo é identificar e tratar fatores de risco para hipertensão, diabetes e problemas cardiovasculares
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O professor Luis Marcelo Aranha Camargo segura nos braços a bebê Maricélia logo após o trabalho de parto - Foto: Arquivo Pessoal
Histórias de Monte Negro
Nesses quase 20 anos de atividades, os profissionais do ICB5 presenciaram uma infinidade de histórias: desde as engraçadas, com final feliz, até as mais trágicas. Pedimos ao professor Luís Marcelo Aranha Camargo que selecionasse algumas histórias vividas ao longo desses anos para dividir com os leitores. Ouça os relatos:
Maricélia e a grávida que fugiu no meio de seu trabalho de parto
"Fazia um calor terrível. A mulher estava agachada, encolhida em um canto. Ao olhar em volta, ele percebeu que havia a possibilidade de a estrutura desabar.”
O trabalho de parto não avança: um insight e uma difícil (e acertada) decisão
“(...) os batimentos cardíacos da criança começaram a diminuir, um indicativo de sofrimento fetal. Eles estavam no meio do mato: o que poderiam fazer?”
Tudo corria bem com a saúde da grávida. Até ela desmaiar na rua...
“O professor correu para atendê-la. A moça estava inconsciente. Ele a pegou no colo, levou até uma casa próxima, colocou-a sobre uma mesa e começou examiná-la.”
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Reportagem: Valéria Dias | Edição de Arte: Caio de Benedetto, Moisés Dorado dos Santos e Thais Helena dos Santos | Infografia: Thais Helena dos Santos | Fotos: Cecília Bastos/USP Imagens
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