Universidade pública: mérito ou oportunidade?

Por Ivan Siqueira

Ivan Siqueira Professor do Departamento de Informação e Cultura da ECA/USP Coordenador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (NEINB) da USP Conselheiro no Conselho Nacional de Educação – Câmara Básica

Ivan Siqueira
Professor do Departamento de Informação e Cultura da ECA/USP
Coordenador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (NEINB) da USP
Conselheiro no Conselho Nacional de Educação – Câmara Básica

Em 2002, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) adotou um programa de cotas étnico-raciais com 20% das vagas para pretos e pardos; outros 20% para estudantes de escola pública; e mais 5% para portadores de necessidades especiais. Nesse período (2003-2013), mais de 8.700 cotistas ingressaram em seus cursos, dentre os quais aproximadamente 4 mil negros (pretos e pardos). Na esfera federal, a Universidade de Brasília (UnB) acolheu as cotas reservando 20% das vagas para os autodeclarados pretos, pardos e indígenas em 2004.

Uma década após a decisão da Uerj, foi aprovada lei (12.711/2012) que instituiu o porcentual de 50% de cotas nas matrículas em todas as universidades federais, tendo por base os dados do último censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); os indicadores de renda (baixa renda = igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita); e estudo integral do ensino médio em escola pública.

Inicialmente, as opiniões contrárias às cotas étnico-raciais advogavam pela sua inconstitucionalidade; que haveria rebaixamento do nível educacional; que os cotistas abandonariam os cursos por não acompanhar os demais colegas; e que se fomentaria o ódio racial. No entanto, o que se verifica não é somente a inconsistência desses argumentos, mas realidade bem diversa.

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade das cotas em sessão de 26 de abril de 2012, sublinhando a sua necessidade para corrigir o histórico de racismo no Brasil. Pesquisas sobre o desempenho dos cotistas mostram menores índices de evasão em comparação aos não cotistas, e desempenho acadêmico semelhante ou superior (EURÍSTENES et al., 2015). Não é mais por ausência de comprovação empírica que se pode refutar as cotas – um outro argumento utilizado à época. E na Universidade de São Paulo?

Na USP, o debate sobre cotas só foi discutido “firmemente” pelo Conselho Universitário uma década depois da Uerj, conforme se lê na sua Ata da 951ª Sessão (2/7/2013). E, em grande medida, como consequência da iniciativa do governo estadual com o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp).

Após esses anos todos, a alternativa às cotas é a “Proposta do Plano para Aumentar a Inclusão Social na Universidade de São Paulo”: 1) aumento dos valores dos bônus e criação de um bônus especial para estudantes de escola pública autodeclarados pretos, pardos e indígenas; 2) aperfeiçoamento do Programa de Embaixadores (no comparativo de então, 31,5% de inscritos em 2000 contra 35% em 2012); 3) criação de um Programa de Preparação para o Vestibular da USP (PPVUSP); e 4) ampliação dos locais para a realização do vestibular da Fuvest.

Esse programa atingirá a meta de 50% de estudantes de escolas públicas em 2018, com o porcentual estadual do IBGE para pretos, pardos e indígenas? Mesmo considerando o “progresso” de apenas 3,5% em mais de uma década? Por que combiná-lo com cotas? Continuaremos a desconsiderar o abismo existente entre as trajetórias educacionais da escola pública e das privadas? Não ganharia a Universidade com a diversidade de talentos espelhando a diversidade da sociedade?

Continuaremos a desconsiderar o abismo existente entre as trajetórias educacionais da escola pública e das privadas? Não ganharia a Universidade com a diversidade de talentos espelhando a diversidade da sociedade?

Qual o critério científico para a variação do bônus (Ação 1 da proposta: de 8 para 12%, 8 para 15%, 15 para 20%, e 25% aos PPI)? Por que ter por base a nota da primeira fase, sendo ela a menos precisa para medir o “mérito”? Como se poderá aplicar eventual bônus na segunda fase se o desempenho na primeira é decisivo? Que critérios científicos e experiências empíricas arroladas na literatura sugerem essa escolha como a mais acertada?

Nada diremos sobre a continuidade de apropriação de recursos públicos majoritariamente por uma pequena parcela da sociedade? Nada diremos sobre a desconsideração das experiências de sucesso dos programas de cotas, de norte a sul, em mais de uma década? Nenhuma palavra às discussões internas na comunidade USP, aos subsídios técnicos elencados pelos estudiosos do tema há tempos na própria instituição, ao Núcleo de Consciência Negra da USP, à Frente Pró-Cotas da USP e à Frente Pró-Cotas Estadual de São Paulo? Não consideraremos as sugestões de cotas de algumas unidades, as opiniões dos docentes, estudantes e funcionários, que são a razão da qualidade e excelência da Universidade?

Nenhuma consideração aos diferentes segmentos sociais e étnicos da sociedade paulista? Nada sobre a exclusão histórica de negros e pobres nas salas de aulas da maior instituição acadêmica pública do País? E os jovens afrodescendentes, brancos pobres e indígenas, que acalentam o sonho de um ensino superior público de qualidade em meio a um quadro de extermínio simbólico e físico dos negros?

Como reiterar essa legitimidade meritocrática na comparação entre realidades afortunadas e outra cuja escola exibe infraestrutura inadequada, salas com excesso de alunos, pouca atividade extracurricular, ausência de bibliotecas de qualidade e bibliotecários, professores sem remuneração adequada, desestímulos e péssimas condições de trabalho?

Por que esse horror à igualdade de oportunidades e ao convívio com negros e pobres na USP? Por que persistir com programas de bônus que não produziram os efeitos ensejados? Criado em 2006, a bonificação do Inclusp está em torno de 30%. Motivado pela ineficiência histórica de modalidades generalistas, o Movimento Negro vem sugerindo há muito a adoção de cotas, inclusive a partir de critérios étnicos e socioeconômicos. As diferentes experiências exitosas das cotas apontam para o acerto dessa alternativa e o aproveitamento dos melhores talentos em todos os extratos étnicos e sociais. Os mitos da degenerescência universitária após as cotas se provaram falsos. Criaremos outros?

Não é difícil imaginar o impacto social no Brasil decorrente de cotas étnico-raciais numa universidade com mais de 11 mil vagas/ano. Difícil me é conceber o silêncio e a indiferença de educadores à negação de sonhos e de um futuro melhor aos renegados de sempre.

Referências

BRASIL. Lei n° 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.

EURÍSTENES, Poema et al. As políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais. (GEMAA), Iesp-Uerj, 2015.


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