A organização não governamental Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) é um dos principais movimentos sociais pela inclusão da população afrodescendente e de baixa renda nas universidades. Entre as atividades desenvolvidas em diversos municípios do País, estão cursinho pré-vestibular gratuito e suporte para interessados em obter bolsa integral em instituições particulares de ensino superior.
Mas foi o trabalho de pressão para a criação de políticas públicas específicas para a população negra que popularizou ainda mais a Educafro, como a criação da Lei de Cotas nas instituições de ensino superior federal, em 2012.
A mais recente conquista, depois de cinco anos de ações junto ao Ministério da Educação (MEC), foi o lançamento, no início de maio, de portaria que incentiva o debate de cotas na pós-graduação. A intenção é que instituições de ensino superior criem condições para promover a inclusão de negros, indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação.
À frente de todo esse trabalho está um franciscano, o frei David. Fundador e diretor-executivo da Educafro, ele teve a ideia de criar a organização em 1976, quando sentiu a “total e radical ausência do negro de todos os espaços de poder, de simbolismo da nação brasileira”.
Naquele tempo, o frei estava iniciando como seminarista franciscano e, segundo ele, a realidade era a mesma. “Havia muitos franciscanos de origem alemã e italiana, mas franciscanos negros, eu não via. Esse foi um dos primeiros pontos em que percebi um problema que tinha que ser atacado.”
Como o próprio frei David diz, o trabalho é longo e a luta também, e um dos desafios que a Educafro possui está relacionado diretamente à USP: a adoção de cotas étnico-raciais para que a população brasileira esteja representada no quadro de alunos da principal universidade da América Latina.
Em uma conversa com a reportagem do Jornal da USP Especial, na sede da entidade, o frei falou sobre a necessidade de mobilizar os representantes do Conselho Universitário (Co) da USP para adotar cotas na Universidade.
O frei David também destacou que a autonomia universitária da USP, Unesp e Unicamp – as três universidades públicas do Estado de São Paulo – não é motivo para que o governo estadual se omita em relação às cotas. Ele cobrou do governador Geraldo Alckmin a criação de uma lei nos moldes do que foi realizado no âmbito do governo federal, ou seja, uma lei que obrigue as universidades estaduais paulistas a implantarem as cotas. Confira os principais pontos da entrevista:
Cotas étnicas x cotas sociais
“O problema da pobreza e da exclusão do pobre das universidades está ligado às sucessivas irresponsabilidades dos políticos. Isso é um problema que, infelizmente, perpassa todo o mundo capitalista. O problema da exclusão do negro, além deste fator, tem outro mais determinante que é a escravidão.
A escravidão gerou um estrago muito grande no tecido social brasileiro e somente fazendo políticas específicas vamos conseguir a virada. Então, as cotas étnicas são fundamentais porque elas focam, justamente, o problema deixado pela escravidão.
Quando os imigrantes europeus pobres chegam ao Brasil, o país, percebendo que eles eram pobres, deu a eles terra, um casal de animais domésticos, ferramentas e um salário mensal períodico, ou seja, o Brasil deu a eles uma ação afirmativa que garantiu a brancos europeus pobres uma carreira.
O negro, quando é tirado da escravidão, não recebe nada, ele vai formar as favelas do Rio de Janeiro e do Brasil afora. Para nós, as cotas vêm reparar um erro histórico gravíssimo. Entendemos que as cotas são temporárias e, assim que essa reparação estiver em um patamar razoável, faremos questão de ombrear a luta para dizer que as cotas já foram aplicadas pelo período necessário.”
Resistência às cotas
“São três pontos. O primeiro ponto: faltou aos nossos irmãos do Conselho Universitário botar o pé na lama, ou seja, viver a realidade do pobre. Eles têm pouco contato com pobres na sua realidade crua e nua. E por não ter essa experiência junto com os pobres, eles não conseguem sentir o que nós sentimos. Por exemplo, como frade, eu sou uma pessoa de formação de classe média, mas por estar dia e noite nessa causa, eu sei e sinto o drama deste povo excluído que é o povo negro.
Ponto dois: há uma desassociação da Universidade com a sociedade. Isso também é cruel, os dramas da sociedade não são abraçados pela Universidade. Ela caminha como se fosse um mundo paralelo à sociedade, esse é um problema gravíssimo e estraga a construção de um Brasil ideal.
O terceiro fator dessa dificuldade de nossos irmãos da USP refere-se a uma compreensão equivocada de meritocracia. Eles guardam consigo uma compreensão ultrapassada e eu falo isso com toda humildade. Espero que, antes de ir para a próxima reunião do Conselho Universitário, eles leiam um livro chamado Justiça, de Michael Sendal, professor da Universidade de Harvard.
Ele defende que há meritocracia justa e injusta. Meritocracia injusta é quando eu sei que na minha cidade tem um grupo grande que vem da favela onde falta professor, falta laboratório, falta tudo. E eu sei que há outro grupo grande que vem de escolas particulares, onde tem tudo do bom e do melhor, estudam várias línguas; isso são tipos de meritocracias.
A meritocracia injusta determina na USP quem passa e quem é reprovado. São dois nós que precisam ser desatados e só desata quem tem coragem de se abrir para a realidade. Quem continua com os pés nas nuvens, fora da realidade, não consegue atender o problema.”
Rankings universitários
“A Educafro já decidiu: vamos produzir uma carta para todos os órgãos mundiais que classificam as universidades no mundo, solicitando que coloquem um dos pontos-chaves para classificação, um índice de inclusão de pobres, negros, indígenas e outros segmentos sociais mundiais.
Vamos discutir com essas entidades uma outra metodologia para classificar as universidades. Acreditamos que vamos ter vitória, porque estamos buscando redes para fazer este trabalho de discussão. A universidade que não tiver trabalho de inclusão não vai ter chance de ter pontuação e de estar entre as 100 melhores do mundo.”
Lei estadual para cotas étnicas
“Houve uma omissão muito grande dos sucessivos governos do Estado de São Paulo. Nós tivemos reuniões com todos os últimos governadores discutindo as cotas, e todos eles demonstraram um grande medo de encarar as universidades estaduais. Esse medo a gente conseguiu vencer no governo federal.
Não só o governo federal, fizemos deputados e senadores encararem as universidades, porque há um domínio da classe intelectual brasileira com a compreensão equivocada de autonomia universitária.
Somos radicalmente a favor da autonomia universitária, todas elas têm autonomia administrativa, pedagógica, etc., mas nenhuma universidade tem autonomia para excluir, nenhuma universidade tem autonomia para criar e manter um processo de exclusão, consciente ou inconscientemente; esse é o grande centro que fez com que o governo federal andasse e o governo estadual não andasse.
O governo Alckmin teve muito medo. Ele reuniu todos os reitores das universidades com a Educafro, discutimos intensamente, mas víamos que os reitores falavam mais alto que o governador. Então, percebemos que, no Estado de São Paulo, a autonomia universitária é confundida com autonomia para excluir.”
Resposta do governo estadual
O governo do Estado de São Paulo foi procurado para responder ao questionamento do frei David sobre a implantação das cotas nas universidades estaduais, e a assessoria de imprensa encaminhou a seguinte nota:
“A Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo esclarece que o Governo Estadual paulista criou em 2012, para estimular o sistema de cotas nas universidades, o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista – PIMESP. Ele estabelece um regime de metas para o incremento das matrículas no ensino superior de estudantes oriundos de escolas públicas e, dentre esses, de negros, pardos e indígenas. Vale ressaltar que as universidades estaduais paulistas possuem autonomia administrativa e financeira. Cabe às instituições decidir suas políticas internas”.