A adoção de cotas raciais para o acesso a instituições de ensino superior e a cargos públicos tem sido intensamente debatida no nosso país. Essa discussão demonstra a necessidade de uma reflexão sobre o papel do direito na construção de uma sociedade democrática e racialmente inclusiva no Brasil.
Este artigo desenvolve um dos argumentos presentes na decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade de medidas de inclusão racial: a construção de uma sociedade igualitária requer a adoção de iniciativas que garantam a representação adequada de diferentes grupos raciais nas diversas instituições públicas.
Defenderemos essa posição a partir do conceito de diversidade, uma diretriz de natureza jurídica e política que teve origem na jurisprudência norte-americana sobre ações afirmativas. A ideia de que instituições públicas e privadas devem espelhar o pluralismo que existe no corpo social pode ser vista como uma de suas premissas principais; esse preceito afirma então a importância da participação dos diferentes grupos nos processos decisórios, fator legitimador das práticas democráticas.
Seguindo esse pressuposto, afirmamos que a adoção de cotas raciais nas universidades públicas contribui de forma significativa para a formação de uma administração pública democrática, um dos propósitos centrais do atual Estado constitucional.
Embora defendamos cotas raciais nas instituições públicas, não pretendemos descartar a representação do Brasil como uma nação miscigenada, ideia que muitos acreditam ser mera manipulação ideológica. No lugar de uma visão que articula a noção de igualdade formal e homogeneidade racial para atacar ações afirmativas, adotamos o conceito substantivo de diversidade para a defesa da miscigenação dos círculos do poder.
O povo brasileiro pode ser miscigenado, mas o grupo social que controla praticamente todas as nossas instituições públicas e privadas é racialmente homogêneo, uma realidade incompatível com uma sociedade genuinamente democrática. Assim, o conceito de miscigenação não descreve uma realidade histórica e social, mas um objetivo a ser buscado para a promoção da justiça social.
Cotas para homens e mulheres de ascendência africana e ameríndia não apenas garantem o acesso desses indivíduos a oportunidades profissionais, mas também permitem que as decisões da administração pública possam ser tomadas a partir da perspectiva de todos os que serão afetados por elas, uma condição para a sua democratização.
Sustentaremos o argumento de que essas iniciativas são compatíveis com os princípios da moralidade pública, da supremacia do interesse público e da eficiência administrativa. Portanto, ações afirmativas encontram fundamento não apenas nos ideais da igualdade material e justiça social, mas também nos parâmetros que regulam a atuação da administração pública.
A adoção de cotas raciais nas universidades públicas contribui de forma significativa para a formação de uma administração pública democrática, um dos propósitos centrais do atual Estado constitucional
Embora seja atacada por diferentes setores, podemos afirmar que a diversidade é hoje uma política institucional amplamente adotada por instituições do setor público e do setor privado nos Estados Unidos, sociedade na qual se tornou um princípio de política pública. Muitos a concebem como uma forma positiva de integração social de grupos minoritários, segmentos cuja mobilização transformou a vida política daquele país.
A luta de minorias trouxe à tona a discussão sobre o pluralismo como um valor social que tem repercussões também no estabelecimento das finalidades de instituições públicas e privadas. O conceito de diversidade tem como base a premissa de que o pluralismo é uma referência relevante para o desenho de políticas institucionais.
Traços identitários construídos ou atribuídos a certos segmentos sociais determinam a experiência social de seus membros, sendo que essas características são frequentemente utilizadas para designar o lugar social que eles podem ocupar, mecanismo responsável pela reprodução de relações assimétricas de poder.
Assim, a noção de diversidade como um valor institucional se refere a coletividades cujos membros possuem uma experiência social específica em função dos processos de estratificação. Ela não pretende sugerir ou afirmar identidades essenciais, mas reconhece que experiências culturais distintas produzem percepções sociais diferentes.
Mais do que uma iniciativa que objetiva remediar práticas discriminatórias, a diversidade também designa uma estratégia que pode trazer ganhos consideráveis para as instituições que a empregam. Um dos elementos mais importantes para a mudança da lógica das ações afirmativas teve início com a percepção de que a melhoria do desempenho de instituições públicas e privadas depende da capacidade dessas organizações em responder a demandas decorrentes do pluralismo no plano nacional e internacional.
Isso porque a globalização das economias exige a contratação de pessoas que possam compreender as particularidades culturais e políticas de diferentes nichos de mercados em vários lugares do mundo. Uma força de trabalho racialmente e culturalmente homogênea seria menos capaz de tratar questões que podem surgir das demandas geradas pelo pluralismo cultural.
Os diferentes grupos sociais têm interesses e exigências distintas e os que não possuem competência cultural para negociar com eles enfrentam grandes dificuldades. A diversidade adiciona um valor considerável às instituições públicas e privadas, que a empregam por causa do aumento da produtividade e eficácia.
Muitos estudos demonstram que as perspectivas trazidas por pessoas de diferentes origens sociais e com experiências diversas fazem com que a capacidade institucional de solução de problemas seja superior àqueles órgãos cujos corpos de funcionários são uniformes. Instituições que formam um corpo de funcionários diversificado criam meios para que a troca de novas ideias aumente, o que é algo particularmente desejável em um mercado no qual grupos minoritários possuem poder de compra cada vez maior.
Além das vantagens decorrentes da eficiência gerencial, a diversidade também tem sido adotada por instituições privadas com base na noção de responsabilidade social. A sua promoção tem sido vista como um dever moral, principalmente em uma sociedade marcada por um passado de opressão racial.
Segundo esse raciocínio, a prática da diversidade cria oportunidades que permitem a contribuição das empresas para a formação de uma sociedade mais justa. Elas devem considerar o impacto de suas atividades no bem-estar da comunidade e a contribuição que elas podem trazer para a melhora das condições de vida de grupos minoritários é um excelente indício.
A incorporação de membros de vários segmentos sociais possibilita o acesso a oportunidades profissionais, além de fazer com que elas participem da tomada de decisões que têm o potencial de afetar toda a sociedade. A governança corporativa se aproxima da ideia de que as decisões devem ser tomadas por pessoas que representam a variedade de grupos e de interesses que existem na realidade. Portanto, a justificação da prática da diversidade não se restringe ao caráter reparatório das ações afirmativas, mas se também justifica pelo seu papel inclusivo.