Ao adentrarmos os portões da Universidade de São Paulo, a mudança social e étnica é perceptível. Os olhos daquelas poucas pessoas negras que estudam nos cursos mais concorridos da citada instituição de ensino paulista detectam, de imediato, a mudança nos padrões que imperam no espaço que deveria primar pela democratização real de acesso.
Aos olhos daqueles que vieram de classes sociais abastadas e, prioritariamente, brancas, com convivência exclusiva em seus círculos representativos da elite brasileira, a realidade não lhes parece incomodar, uma vez que não conhecem as várias vertentes étnicas de nossa ampla sociedade.
Quando coletivos dos movimentos negros tentam dialogar sobre tais aspectos, não são compreendidos por uma parte considerável dos estudantes, que insistem em encobrir esse tipo de debate, como forma de manter o acesso à Universidade de maneira exclusivista ao grupo de seu pertencimento.
Talvez nos falte ampliar os conhecimentos sobre a necessidade da democratização étnico-social em um ambiente acadêmico de produção científica, que tem por primordial objetivo o desenvolvimento tecnológico e científico da sociedade. Ademais, devemos entender como age o racismo institucionalizado em nossa sociedade.
Ao explorarmos as ideias divulgadas pelo professor de filosofia política da Universidade de Harvard, Dr. Michael Sandel, o especialista mais requisitado no mundo quando o assunto tange à ética e à justiça, percebemos quão atrasados ainda nos encontramos em relação às interações humanas.
Para alunos pertencentes a etnias historicamente excluídas, deve vigorar algum instrumento que compense a constante discriminação sofrida ao longo da vida, responsável pela falta de oportunidades que assolou esses estudantes.
Os pensamentos de Michael Sandel nos levam a refletir e analisar em que proporção é justo o ingresso maciço de alunos brancos pertencentes a classes elitizadas na Universidade de São Paulo. Principalmente quando o fator de seleção se baseia, quase que exclusivamente, nas oportunidades que puderam ser financiadas pelo citado grupo de estudantes.
Muitos são os argumentos da necessidade de mérito para o ingresso na USP. Mas o que é o mérito? De acordo com a definição, é aquilo que determina que uma pessoa se torne digna de receber recompensas. É auferido através de métodos de seleção que aplicam a meritocracia.
Sandel defende existirem dois tipos de meritocracia: a justa e a injusta. A meritocracia injusta submete grupos de pessoas que tiveram oportunidades diferentes na vida, muitas vezes determinadas por fatores financeiros e outras tantas por fatores étnicos, a concorrerem por determinado espaço como se tivessem tido, ao longo da vida, oportunidades minimamente semelhantes.
A meritocracia justa é baseada em instrumentos como a reserva de vagas para estudantes negros, que proporcionam a concorrência exclusiva entre pessoas que tiveram as mesmas oportunidades ao longo da vida.
Será que muitos dos atuais estudantes da graduação da USP teriam ingressado na instituição, se tivessem tido a oportunidade de cursar o ensino médio em escolas públicas de péssima qualidade, como são a maioria delas? Se tivessem que trabalhar desde novos para sustentar seus familiares e não lhes deixar passar fome? Se não tivessem condições financeiras que lhes permitissem pagar os melhores colégios particulares, cursinhos caros ou cursos de idiomas? Se tivessem sofrido diversos tipos de discriminações raciais?
A meritocracia injusta submete grupos de pessoas que tiveram oportunidades diferentes na vida, muitas vezes determinadas por fatores financeiros e outras tantas por fatores étnicos, a concorrerem por determinado espaço como se tivessem tido, ao longo da vida, oportunidades minimamente semelhantes
Não podemos aceitar que exista o mérito, através do ingresso via vestibulares, quando sabemos que as oportunidades que foram oferecidas a determinados grupos não foram oferecidas a outros tantos. Ou que o fator determinante para que essas oportunidades pudessem acontecer foi de cunho financeiro.
O ingresso de negros nos diversos cursos da USP deve ser visto como uma forma de alcançarmos objetivos sociais mais amplos do que a simples correção histórica de uma população excluída.
Sandel defende a necessidade de aplicação do princípio da diversidade, que coaduna com o bem comum da sociedade e da evolução da própria universidade, uma vez que possibilita a estudantes de diversas origens aprenderem mais e com uma formação mais rica do que se fossem todos da mesma proveniência.
Também permite que a instituição atraia as pessoas mais qualificadas para seu quadro discente. Haja vista que várias pessoas, com potencial intelectual altíssimo, deixam de ser descobertas, por conta da dificuldade de acesso alicerçada nas práticas de meritocracia injusta praticadas para o ingresso na USP.
Vários instrumentos, com o viés de promoverem a diversidade étnico-social na Universidade de São Paulo, foram testados ao longo dos anos. Nenhum deles alcançou minimamente os objetivos pretendidos, principalmente ao verificarmos os cursos de maior concorrência da mencionada instituição de ensino.
Ao que nos parece, por conta das experiências em diversas universidades estaduais e federais, o sistema de cotas étnicas tem se mostrado o único método de seleção que corrige de maneira significativa a representatividade de negros nas instituições públicas de ensino superior, em todos os cursos e turnos.
Convivo diariamente com alunos negros que vieram de rede pública e tentam, insistentemente, ingressar em universidades públicas. Ou por conta de não terem condições de arcar com os custos de uma universidade particular ou por buscarem o ensino de mais alta qualidade.
Sempre me deparo com diversos estudantes de capacidade intelectual acima até do que alguns estudantes que, por terem passado na Fuvest, se veem como seres superiores. São alunos que têm alto índice de inteligência, mas que acabam enfrentando a barreira de não terem tido acesso ao conteúdo cobrado nos exames para ingresso na USP.
Por sorte, temos universidades que adotam sistemas de cotas e dão chance para que esses talentos ingressem nessas instituições e possam, através de suas elevadas capacidades intelectuais, produzir pesquisas e ajudar a proporcionar o desenvolvimento científico de que tanto nossa sociedade necessita.
Quanto tempo mais a Universidade de São Paulo irá desperdiçar talentos e ficar estagnada no tempo, preterindo os que realmente merecem pelos que tiveram recursos financeiros para serem aprovados pelos métodos tradicionais de seleção adotados pela instituição? Quando teremos uma USP que retrate a pluralidade étnica da nossa sociedade?