A construção das identidades ciganas no Brasil
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Brigitte Grossmann Cairus
ENTRE VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE: A DIÁSPORA CIGANA
Estudos históricos, linguísticos e genéticos sugerem que os ciganos, ou rom, roma ou romani, emigraram do norte da atual Índia, das regiões do Punjab e Rajastão, entre os séculos VI e XI, cruzaram então o Oriente Médio e entraram na Europa, por volta do século XVI (Pappas, 2012). Alguns ciganos, como os nawar, ficaram no Oriente Médio e se espalharam principalmente por países como a Síria, o Egito e a Palestina.
Os detalhes desta diáspora inicial são ainda desconhecidos, com teorias conflitantes. A palavra “cigano” é uma abreviação de “egípcio”, nome com que os imigrantes rom foram chamados pela primeira vez na Europa. Acreditava-se que eles vinham do Egito. A palavra francesa gitan, a espanhola gitano e a portuguesa “cigano” também têm essa etimologia. A palavra alemã zigeuner e a eslava tsigan têm uma fonte diferente, vêm da palavra grega athinganos, que significa “pagãos”. Esse termo foi originalmente emprestado de uma seita herética em Bizâncio porque os ciganos que chegaram à Europa não eram cristãos ou não eram vistos como tal e, assim, receberam o nome dessa seita (Kenrick, 2007).
Os ciganos se autodenominam rom (com o plural roma na maioria dos dialetos)(1). Isso é geralmente considerado como cognato com a palavra indiana dom, cujo significado original era “homem”. Mesmo grupos (tais como os sinti) que não se autodenominam rom ainda preservam essa palavra em seu dialeto com o sentido de “marido”.
Segundo uma teoria recente do linguista rom Ian Hancock, a formação dos rom, como grupo distinto, inicia-se no século VIII, como consequência da invasão árabe-muçulmana na região do Sindh. Os rom teriam sido guerreiros recrutados de várias castas denominadas rajput. No entanto, a diáspora dos rom se inicia no século XI, quando, de acordo com Hancock, os guerreiros rajput teriam auxiliado os turcos seljúcidas na conquista do Império Gaznevida no ano de 1038. Hancock (2004) estabelece a saída dos rom do subcontinente indiano nessa mesma época. Os rom, como parte do exército seljúcida, então se estabelecem na Anatólia por pelo menos dois séculos. Esse período teria sido essencial para a formação do povo cigano, através das misturas culturais, linguísticas e de casamento com outras etnias. Mais tarde, no século XIII, com o surgimento do Império Otomano e sua expansão na Europa, os rom migram para o continente europeu na esteira da expansão otomana nos Bálcãs. Hancock sugere que a peste negra também contribuiu para a dispersão dos rom na Europa sob o domínio otomano.
Já Donald Kenrick, em uma abordagem mais “tradicional”, sugere que a primeira migração cigana para a Europa ocorreu durante os séculos XIV e XV e incluía trabalhadores agrícolas, ferreiros e soldados mercenários, bem como músicos, adivinhos e artistas. Eles eram geralmente bem-vindos no início como agentes de entretenimento na vida cotidiana daquele período. Logo, no entanto, atraíram a hostilidade do Estado, da Igreja e das guildas (associações de profissionais). As autoridades civis queriam que todos se instalassem legalmente em um endereço, com um nome fixo, e que pagassem impostos. A Igreja estava preocupada com a heresia de práticas divinatórias, enquanto as guildas não gostavam de concorrer com esses recém-chegados, que trabalhavam todas as horas do dia e da noite com o auxílio de suas esposas e crianças.
Outros fatores também levaram a sentimentos de desconfiança em relação aos recém-chegados. Eram de pele escura, uma característica negativa na Europa, e eram suspeitos em alguns países de serem espiões para os turcos porque tinham vindo do Leste. Alguns problemas foram também causados por grupos de ciganos que reivindicavam ser cristãos fugitivos das invasões muçulmanas do Império Otomano, que viviam principalmente de esmolas (Kenrick, 2007, pp. 38-40).
Não demorou muito para que esses sentimentos de hostilidade e desconfiança levassem a uma reação. Já em 1482, a assembleia do Sacro Império Romano aprovou leis para banir os ciganos do seu território. Dez anos mais tarde, outros países começaram a tomar medidas semelhantes. A Coroa portuguesa, por sua vez, expulsou ciganos calon para as suas colônias, incluindo o Brasil, principalmente entre o fim do século XVII e o XVIII (Morais Filho, 1981, p. 26)(2). Todavia, a documentação mais antiga indica que a sua história no Brasil iniciou-se em 1574, quando o cigano João Torres, sua mulher e seus filhos foram degredados para o Brasil (Mota, 2004, p. 239). Apesar de serem percebidos como desordeiros, terem sido perseguidos e deportados da Europa, os calon foram lentamente assimilados no Brasil colonial e conquistaram um espaço de prestígio como comerciantes de escravos. Bill Donovan estima que até 7 mil ciganos viviam no Brasil nas décadas antes da Independência (Donovan, 1992, p. 43). Ciganos não ibéricos, ou rom, provindos da Europa Oriental, migraram muito mais tarde, a partir de meados do século XIX, e se dividiam principalmente nos subgrupos kalderach, machuaia, rudari, horahane e lovara (3). Esses ciganos migraram de diferentes regiões da Europa e geralmente tinham, coletiva ou individualmente, mais de uma nacionalidade, havendo entre eles italianos, checos, romenos, húngaros, russos e gregos.
De acordo com Teixeira (2007, pp. 50-1), a maior parte dos ciganos da Europa Oriental migrou para o Brasil no final do século XIX, juntamente com a primeira grande onda migratória de italianos, alemães, poloneses e russos. A segunda onda migratória de europeus, incluindo ciganos, ocorreu antes e ao longo da era Vargas e da Segunda Guerra Mundial, um período decisivo, marcado pela industrialização e pela construção de uma nova identidade brasileira que iria abranger os recém-chegados. Recentemente um grupo de estudiosos tem se dedicado ao estudo da chamada migração “não branca” de judeus, japoneses, chineses e árabes para o Brasil durante a era Vargas e da construção da identidade desses grupos durante o século XX. Até o presente momento, praticamente inexistem estudos sobre a identidade diaspórica cigana relativos a este ou a qualquer outro período da história brasileira.
MEMÓRIAS MIGRATÓRIAS DOS ROM BRASILEIROS
“No Brasil os zíngaros (4) encontraram um país propício a suas atividades. Aqui se fixaram, em diversos Estados, os de todas as origens. Os da Iugoslávia habitam de preferência Rio Grande do Sul, Bahia, Pará e Pernambuco; os da Romênia vivem em São Paulo; os da Grécia, nesta capital e no Estado do Rio. Porém, nos Estados mencionados e nos outros, de norte a sul, existem ainda numerosos núcleos que agrupam ciganos de várias procedências, como sejam da Albânia, da Sérvia, da Polônia, da Rússia, da Bulgária, da Hungria, etc.” (China, 1936, p. 299).
Os rom, roma ou vulgarmente chamados “ciganos”, provindos de regiões extraibéricas, encontram-se no Brasil desde meados do século XIX e continuaram, como refugiados, a migrar para o país (Izidoro, 2000). Esses ciganos migraram de diferentes regiões da Europa e compartilham entre seus grupos mais de uma nacionalidade, incluindo a italiana, a checa, a romena, a húngara, a russa e a grega (5).
O meu objetivo aqui é estabelecer uma base introdutória para o estudo da imigração rom para o Brasil, analisando suas particularidades, incluindo as políticas de migração da década de 1930, as formas com que os ciganos foram percebidos em relação aos outros europeus, como eles possivelmente desafiaram a sua indesejabilidade social e por que a migração de rom para o Brasil, especialmente entre 1926-1936, tem sido até agora praticamente ignorada e invisibilizada.
Os rom de origem ibérica fazem parte do tecido étnico brasileiro desde o século XVI. Enquanto na Europa e na América do Norte o termo gypsy tornou-se politicamente incorreto, por sua conotação ofensiva, no Brasil os rom ainda são chamados oficialmente de ciganos (6). Os dois grupos ciganos principais no Brasil são os calon e os rom. Suas comunidades estão localizadas principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. Uma vez que o censo brasileiro não inclui a categoria ciganos e muitos continuam a negar as suas origens, existem apenas especulações a respeito de seus números. Mas Jorge Bernal (2003) afirma que a população cigana das Américas (Norte e Sul), estimada em um milhão e meio de pessoas, está em grande parte concentrada no Brasil, onde cerca de 800 mil a 1 milhão de pessoas identificam-se como ciganos. Se esses números estiverem precisos, o Brasil teria a maior população cigana do mundo, seguido da antiga Iugoslávia e da Romênia.
Os calon e os rom compartilham alguns valores em comum e se percebem como um povo distinto em comparação aos gadjés, “não ciganos”, tendo diferentes identidades baseadas no idioma (calé e romanês), nos valores morais, nas crenças espirituais, no parentesco e nos laços de clã. Apesar de terem características culturais distintas e não homogêneas, eles não formam um grupo fenotipicamente coeso no Brasil. Se, em teoria, os ciganos são comumente categorizados como uma raça escura, na prática, devido à sua miscigenação, é impossível alocar ciganos em uma categoria de cor específica, uma vez que eles podem ser percebidos como brancos, negros ou morenos. Se no Brasil eles são geralmente percebidos (e até mesmo se autoidentificam) como uma “raça” separada, isso se relaciona ao pertencimento a um grupo étnico diferente. Em termos bem gerais, podemos dizer que os calon tendem a ser mais pobres e a exibir mais o seu ethos, vestindo roupas típicas em público e cultivando o nomadismo, enquanto os rom tendem a se misturar mais à sociedade, mostrando-se sedentários ou parcialmente nômades.
De acordo com Teixeira, foi documentado pela primeira vez no Brasil, em 1873, por J. W. Wells, em Explorando e Viajando Três Mil Milhas através do Brasil, do Rio de Janeiro ao Maranhão, um provável grupo de rom romenos em Contendas, Bahia. Mais tarde, em 1899, foi identificado um grupo de 40 rom italianos e gregos em Palmira (hoje Santos Dumont), Minas Gerais, por um funcionário do Estado. Como os calon, os rom também foram vítimas de legislação migratória ciganofóbica desde o início da República Velha, quando eles eram ainda confundidos com turcos ou boêmios (Teixeira, 2007, pp. 50-1).
Três ciganólogos dedicaram-se a estudar a presença de rom no Brasil na primeira metade do século XX: Friedrich Whilhelm Brepohl, José de Oliveira China e João Dornas Filho. O trabalho desses autores não é apenas relevante para a comprovação da presença de rom durante o período de 1920-1944 no Brasil, mas também para refletirmos sobre as maneiras pelas quais eles foram percebidos naquele momento como imigrantes. Segundo seus relatos de viajante, o Pastor Brepohl, da Alemanha, encontrara rom “brancos”, aparentemente oriundos da Bósnia e Herzegovina, na cidade de Ponta Grossa, Paraná, no final dos anos 1920, e descreve a sua migração de São Paulo para Santa Catarina e Rio Grande do Sul:
“Ultimamente surgiu um outro grupo de ciganos no Brasil. Por duas vezes encontrei colunas de carros de transporte de ciganos brancos. Infelizmente não pude falar com eles. Uma vez estavam em um trem especial, num desvio da estação ferroviária de Ponta Grossa. Assim se encontravam inacessíveis a cidadãos comuns. Outra vez cruzei com eles no desvio de uma estação de Santa Catarina. O quanto me foi dado perceber, tratava-se das mesmas pessoas. Funcionários da ferrovia diziam terem eles sido remetidos de São Paulo para o Rio Grande do Sul, pois diziam terem vindo de lá. O Rio Grande, porém, os devolvera a São Paulo. Naturalmente não me foi possível controlar a veracidade da afirmação. Se for assim, o fato é profundamente lastimável, pois os ciganos brancos são de um pequeno e todo especial ramo que se fixou na Bósnia e Herzegovina. São conhecidos como sendo asseados e trabalhadores, muito embora aferrados ao modo de ser e aos costumes de seu povo” (Brepohl, 1932, pp. 90-1 – grifos do autor).
Através do uso próprio do itálico nas palavras “brancos” e “asseados”, Brepohl (1932) acreditava que a branquitude da pele e o uso de roupas limpas e de ricos acessórios em prata correlacionavam-se com as habilidades de trabalho duro e, portanto, de uma assimilação em potencial desses ciganos dos Bálcãs como imigrantes e trabalhadores no Brasil. Apesar de seu julgamento, esses ciganos foram alocados em um trem separado quando o autor os viu em Ponta Grossa, indicando que eles estavam sob o controle das autoridades policiais e/ou de oficiais de imigração que os enviavam de um lado para outro entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Segundo o autor, apesar de sua “boa aparência”, eles não foram bem-vindos em nenhum dos dois Estados.
Como indicado na citação acima, China (1936) cita a presença “exótica” dos ciganos, incluindo as cartomantes da Iugoslávia, Albânia, Grécia, Bulgária, Romênia, Hungria, Polônia e Rússia, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1936. Afirmando a multinacionalidade de uma família rom e distinguindo-os de outros europeus, China (1936) transcreve um artigo escrito por um autor desconhecido no Rio de Janeiro para o jornal O Imparcial, da Bahia, publicado em 24 de março de 1936:
“Ciganos!... Povo sem pátria, sem credo e sem destino. Párias exilados de terras distantes vivendo à margem do mundo organizado, alheios ao ambiente e aos costumes de outras terras... Estejam onde estiverem, entre latinos ou saxões, entre islamitas ou maometanos, guardam fielmente os hábitos e as tradições de sua raça e de sua origem. Fazem da vida um conceito diferente. Desconhecem o conforto e desprezam os encantos do ‘home sweet home’, que é, por assim dizer, a base fundamental de todas as civilizações. Vivem como o judeu errante, dispersos e sem aspirações, por este mundo em fora, em acampamentos provisórios. Hoje estão aqui, amanhã ninguém sabe onde. Sempre avante – eis a imposição do destino. A família vai se tornando internacional; o marido é da Bulgária e a mulher da Albânia. Os filhos, um é servio, outro é grego, outro é polonês, outro é iugoslavo... Mas não importa a nacionalidade, porque ciganos é que são, nasçam aqui ou alhures...” (China, 1936, p. 199).
Ao atestar que o suposto estilo de vida nômade dos ciganos os tornaria antipatrióticos, o artigo expressa a percepção coletiva de que os rom pertenceriam a um grupo separado de pessoas nas quais não se poderia confiar. Ao rejeitar a ideia de Estado/Nação e ao seguir apenas o seu próprio (e completamente diferente) conjunto de valores morais e práticas sociais, os ciganos eram vistos como inassimiláveis e excêntricos. Mas ao escrever, ainda no mesmo artigo, sobre a situação dos ciganos no Brasil, especificamente os da Iugoslávia e Grécia, moradores dos bairros do Meyer e Cidade Nova, no Rio de Janeiro, o autor se contradiz, descrevendo:
“Entre os agrupamentos localizados nesta capital existem sérias divergências de hábitos e também no modo de se conduzirem. Os da Iugoslávia, cujo quartel-general é na Rua Senador Pompeu, num botequim existente na esquina dessa rua com a Rua Bento Ribeiro, nas proximidades da Central do Brasil, são ciganos que não trabalham. Os homens passam o dia todo na maior ociosidade; quando não jogam cartas, dormem profundamente. As mulheres é que ‘trabalham’, iludindo a boa-fé alheia e sustentando à custa da ‘buena-dicha’ os barbados da família. Os da Grécia, que vivem no Meyer, espalhados pelos bairros de Cachambi e José Bonifácio, são mais prestativos e obedecem a outros costumes. Os homens geralmente têm profissão e ganham a vida à custa das suas atividades como consertadores e estanhadores de caldeirões e panelas. Tornaram-se especialistas nesse serviço e são conhecidos em grande número de restaurantes da cidade e mesmo em muitas repartições públicas. As mulheres, entretanto, não deixam de se ocupar com a ‘leitura da sorte’ dos incautos. Leem a mão e ao mesmo tempo, com prodígios de habilidade, fazem desaparecer o dinheiro que lhes é entregue” (China, 1936, pp. 300-1).
Assim como Brepohl, o autor analisa as diferenças de estilo de vida, em termos de trabalho e moradia, entre os ciganos no Rio de Janeiro. Em comparação com os iugoslavos, os ciganos gregos foram descritos como trabalhadores mais esforçados, sendo mais conhecidos em toda a cidade por seu trabalho como fabricantes de panelas. As romis (mulheres ciganas) de qualquer nacionalidade foram, ao contrário, percebidas como “videntes não confiáveis”, que sempre roubavam o dinheiro de seus clientes. Apesar de serem vistos como “impuros”, esses ciganos no Rio eram sedentários e viviam em “casas de pedra e tijolo”.
Com base em artigos de jornais e em arquivos policiais, João Dornas Filho (1948, pp. 45-60) foca a presença de ciganos em Minas Gerais entre 1909 e 1944, e exibe uma série de eventos criminais, incluindo assassinatos e roubos envolvendo os rom da Grécia, Sérvia e Áustria nesse Estado brasileiro. Apesar de dedicar o seu trabalho principalmente aos atos de violência e de perseguição cometidos por calon e rom, o autor confessa:
“Mas não só o velho preconceito que tisna a reputação deste povo sem pátria e sem destino, como ainda uma tradição cheia de romances e de drama, me haviam incrustado na convicção uma certeza negativa em torno das suas atividades sociais. Gente sem compromissos de nenhuma espécie, vivendo ao sabor da imaginação que nos outros supomos romanticamente despreocupada e despida de qualquer sentido humano, eu, que os estudo através dos documentos mais objetivos, como sejam a crônica rigidamente histórica e a relação dos seus crimes e contravenções, tive há pouco uma das mais gostosas decepções da minha vida. Sabia perfeitamente que há pelo menos trinta anos, a não ser pela região pouco policiada da bacia amazônica (Belém do Pará ainda hoje é um dos pontos da sua maior concentração), os ciganos estrangeiros não penetram no Brasil pela severa vigilância da polícia. Noventa por cento dos ciganos ainda existentes em nosso país já são brasileiros natos, falando o português e o jargão, que é a sua língua de origem, pois o cigano, como o judeu, é um dos mais estarrecentes milagres de sobrevivência que a história conhece. Pois bem. Esses homens hirsutos e espertos, cujas primeiras impressões que encheram de terror a minha meninice ainda repontam no claro entendimento do homem adulto, passou-me, segundo ouvi de uma estação de rádio, um estupendo quinao. Ouvi pelo rádio que os ciganos de São Paulo levaram, em 1944, ao governo brasileiro a sua solidariedade em face da agressão totalitária, oferecendo os seus serviços militares em defesa da nossa pátria, como ainda entregando donativos em dinheiro e joias de ouro para auxiliar o custeio da nossa defesa! Fiquei tonto. Mas essa gente sabe lá o que seja pátria e liberdade civil como nos outros as compreendemos?... Talvez não as sintam com o refinamento que o sentimos. O fato positivo, porém, é que não agiram com o sentido do interesse e das aparências superficiais. Foram além: entregaram dinheiro e ouro para virtualizar a sua atitude. E isso numa raça cúpida e ignorante, ‘sem sentimento de pátria e refinamento moral’, como nós os supúnhamos... O argumento a favor deles é, pois, contundentemente convencível. E, para não falar na nossa leviandade em julgá-los tão sumariamente, só se pode atribuir esse belo gesto inesperado ao magnífico, ao estonteante poder assimilador da terra brasileira, capaz de dissolver pelo feitiço, pela graça e pela força cósmica os mais insolúveis elementos étnicos do mundo. Os judeus do Brasil que abram os olhos. O Brasil é capaz de reduzir a lenda o sonho milenar da sua raça sofredora e magnífica... [sic]” (Dornas Filho, 1948, p. 23).
Ao contrário de China, Dornas Filho acredita que desde o início do século XX os rom não estariam mais entrando no Brasil em grandes números. Em vez do Rio de Janeiro e de São Paulo, ele aponta para Belém do Pará como uma das cidades que detêm uma maior concentração de rom no Brasil. Ao longo de sua confissão, o autor resume bem a principal razão pela qual os ciganos eram discriminados – por serem percebidos como um povo sem sentimentos patrióticos e sem refinamento moral. Sua inesperada solidariedade para com o governo em 1944, quando a Força Expedicionária Brasileira foi enviada para lutar ao lado dos aliados, na Itália, no final da Segunda Guerra Mundial, provou que ele estava errado. Segundo o autor, os rom poderiam ter de fato, enquanto viviam no Brasil, desenvolvido alguns sentimentos patrióticos. Mas esse patriotismo não estava, de modo algum, relacionado com o seu caráter nobre, mas ao poder de assimilação surpreendente que a nação brasileira teria sobre “o povo étnico mais insolúvel do mundo”. Dornas Filho (1948) provavelmente não estava ciente da perseguição que os rom estavam sofrendo durante a Segunda Guerra Mundial, quando cerca de meio milhão a um milhão e meio de ciganos foram assassinados pelos nazistas (7). Por trás desse apoio inesperado poderia realmente existir uma motivação política: os rom poderiam de fato ter apoiado o Brasil e, portanto, os aliados contra os nazistas, em uma tentativa coletiva de contribuir para o fim da perseguição aos ciganos na Europa.
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A entrevista que realizei com a romi Mirian Stanescon abriu janelas valiosas sobre a migração romani durante a Era Vargas. Mirian vive no distinto bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Eu estava ciente das dificuldades específicas de fazer entrevistas orais com ciganos. Pela constante discriminação sofrida, eles tendem a ser muito suspeitosos de pesquisadores e de jornalistas e, geralmente, não estão muito motivados para compartilhar e divulgar as suas tradições, menos ainda entre os gadjés, ou “não ciganos”, que eles normalmente consideram como impuros e ignorantes.
Felizmente, esse não foi o caso com Mirian, que tem sido bastante popular e presente na mídia há décadas por ser uma das representantes mais fortes da minoria cigana na luta pelos direitos ciganos brasileiros em Brasília, juntamente com outros líderes.
Uma vez que nós desenvolvemos uma relação de confiança, ela voluntariamente compartilhou a sua história comigo, tendo um bom propósito para fazê-lo. Sendo uma pessoa pública, Mirian também concordou em compartilhar o seu nome e a sua identidade.
“Meu nome é Mirian Stanescon Batuli, neta de Yordana Stanescon e filha de Lhuba Stanescon e Alberto Batuli. Eu sou uma cigana kalderash, pertenço ao clã Kalderash, que chegou ao Brasil por volta dos anos 1900; formamos um grande núcleo aqui no Estado do Rio de Janeiro. E até hoje ainda temos a primeira casa de alvenaria no Brasil, que foi realmente feita por meu avô em Nova Iguaçu, em conjunto com a casa da minha mãe, onde pretendo instalar a sede da Fundação de Santa Sara para apoiar os direitos ciganos e os direitos de qualquer minoria que sofre qualquer tipo de opressão. Nasci em 1947, em Olaria, Rio de Janeiro. Meu nome cigano é Rorarni e meu nome português é Mirian. [...] Quando eu era criança, nós éramos nômades e vivíamos em acampamentos na Baixada Fluminense, primeiramente em Catumbi, em seguida, em Anchieta, em seguida, em Olinda, Nilópolis, Mesquita e, finalmente, em Nova Iguaçu, onde estamos instalados até hoje. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando os ciganos migraram para o Brasil como refugiados, uma vez que chegaram ao Rio de Janeiro, eles sempre procuravam pelo meu avô. Ele sempre os ajudou, comprando para eles tendas e emprestando dinheiro para comprar alumínio e cobre, para que eles pudessem fabricar potes para vender para a Marinha, o Exército e a Força Aérea. Dessa forma, ele acabou sendo o mais famoso líder rom aqui no Brasil. Seu nome era Kako Rhista, e sua esposa era Bibi Yordana. Seu nome não é apenas conhecido aqui entre os ciganos brasileiros, mas na Europa também. Meu avô também costumava enviar dinheiro para o exterior para pagar as passagens de refugiados ciganos, perseguidos pelos nazistas, para vir ao Brasil. Porque, como você sabe, o Brasil sempre foi uma nação pacífica; entre muitas nações, incluindo as da Europa, o Brasil foi o país em que os ciganos são menos maltratados; um lugar onde eles encontram mais liberdade, até mais do que em outros lugares da América Latina. Porque o Brasil é o coração do mundo, não é mesmo? Em termos de solidariedade, de amor, o povo brasileiro é muito generoso” (Stanescon, 2007).
Quando Mirian discutiu a respeito de seu clã e da liderança de seu avô, ela também enfatizou, com as suas próprias palavras, a primeira onda de migração romani do Leste da Europa para o Brasil, que, na verdade, começou por volta de 1880, e a segunda maior onda de migração pouco antes da Segunda Guerra Mundial. É interessante notar que a informação prestada sobre o trabalho de seu avô como fabricante de panelas foi confirmada pelo artigo escrito por China (1936), como vimos anteriormente. De acordo com o rom machuaia Horácio Jovanovic, outro líder cigano que me ofereceu suas palavras e seu conhecimento histórico, a primeira migração dos ciganos não teria ocorrido apenas para o sul, mas também para outros locais nas Américas, principalmente para os Estados Unidos, o Canadá e a Argentina.
Essa primeira migração romani para o Brasil coincidiu com o período da abolição da escravatura no país, em 1888, e com a migração de trabalhadores, sobretudo italianos, para substituir o trabalho escravo. A segunda onda de imigração romani ocorreu na década de 1930, durante a era Getúlio Vargas, quando o Brasil estava passando por um processo de industrialização e de urbanização, ao mesmo tempo em que europeus e japoneses imigravam em massa. A depressão e o nazismo serviram também de estímulo para as migrações ocorridas no final de 1920 e de 1930, quando ciganos rom, juntamente com os judeus, formavam parte de um grupo mais indesejável de imigrantes que tentavam, a todo custo, escapar da perseguição nazista.
Com Vargas, o Brasil passou por uma mudança política abrupta e um novo caminho econômico, cujo objetivo era a industrialização e a urbanização, foi estabelecido. Novos imigrantes eram esperados para transferir tecnologia, capital e experiência de trabalho industrial para o Brasil e trazer um espírito industrial para os centros urbanos. Como o próprio Vargas escreveu: “O imigrante deve ser [...] uma força para o progresso [mas] temos de nos proteger contra a infiltração de elementos que poderiam ser transformados em dissidentes ideológicos ou raciais” (apud Lesser, 1995, pp. 9-10).
Ao mesmo tempo, teorias europeias racistas, intensamente utilizadas pelos fabricantes de políticas de imigração, tiveram um grande impacto sobre os intelectuais brasileiros durante os anos 1930. O conceito de eugenia racial foi incorporado na política nacional e manifestou-se nos regulamentos de imigração usados para “preservar” a integridade étnica. Ciganos, ao lado de judeus, negros e asiáticos, foram incluídos entre aqueles que não deveriam ser assimilados, uma vez que eram vistos como “impróprios” para o processo de construção do nacionalismo, a “brasilidade”. Os estrangeiros só deveriam ser aceitos caso pudessem branquear a população mestiça dominante, e somente se fossem capazes de se adaptar totalmente à cultura brasileira, a fim de criar uma “cidadania nacional homogeneizada”. Portanto, no início do século XX, especialmente entre 1934 e 1942, as políticas de imigração brasileiras, seguindo uma velha “tradição” europeia, continuaram a situar os ciganos na categoria de pessoas indesejáveis (Carneiro & Strauss, 1996).
No artigo “Problemas de Imigração e de Colonização”, publicado no Jornal do Comércio de 1938 e apresentado pelos representantes brasileiros na Conferência Internacional de Cooperação Intelectual em Paris, Mello (1938) situa os ciganos e os grupos nômades dentro da categoria oficial dos indesejáveis. O fato interessante é que essa categoria era basicamente composta de pessoas com deficiências físicas e mentais, tóxico-dependentes, pessoas com doenças infecciosas e prostitutas. Em outras palavras, ao contrário dos judeus, por exemplo, que sofreram durante o mesmo período uma rejeição secreta do Estado, os ciganos foram abertamente rejeitados e igualados a pessoas física, mental e socialmente doentes, sendo percebidos como estrangeiros sociais sujos e inassimiláveis.
Maria Luiza Tucci Carneiro generosamente apontou-me para um raro e importante documento de imigração cigana que ela encontrou no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro. O documento explicita o fato ocorrido em 14 de dezembro de 1936, quando 30 poloneses e gregos ciganos, a bordo do navio Almirante Alexandrino, oriundo de Lisboa, foram impedidos de desembarcar no porto de Santos, no Estado de São Paulo (Carneiro & Strauss, 1996, p. 121). Os ciganos foram enviados de volta a Portugal. Essa é uma forte indicação de que os rom que conseguiram ser aceitos como imigrantes provavelmente não assumiram a sua identidade publicamente. Como os sobrenomes ciganos não eram tão facilmente identificáveis como os dos judeus, os mais afortunados possivelmente entravam no país como “europeus brancos”.
Além das questões ligadas à cor, os rom de origem romena como os Stanescons também poderiam disfarçar-se através de seu status de cidadania “latina”, uma categoria usada por formuladores de políticas de imigração no Brasil que acreditavam que “a raça, a tradição comum latina, religião, língua e clima, sem dúvida, fazem o imigrante latino o mais assimilável ao corpo político brasileiro”. Nacionalidades “latinas”, incluindo o italiano, o português, o espanhol, o francês e o romeno, totalizaram 78% de todos os estrangeiros que entraram no Brasil entre 1920 e 1930. Os romenos representavam apenas 1,05% do total de imigrantes nesse período, mas em 1926, por exemplo, um número impressionante de romenos – 15.475 – entrou no Brasil através do porto de Santos, superando todas as outras nacionalidades (Carneiro & Strauss, 1996, p. 4).
Outro fator a ser levado em consideração é o aumento da migração no Leste Europeu em 1935. Como observado por um oficial norte-americano em um relatório confidencial sobre a imigração brasileira em 1935, “a imigração de raças europeias e levantinos orientais tem sido maior do que é comumente notado, num total de mais de 17 por cento” (Gibson, 1936).
Analisando as políticas de imigração nos documentos desse período, percebi também uma outra brecha que poderia ter facilitado a entrada dos rom no Brasil. Ainda em 1909, por exemplo, um grupo de 37 artistas de um circo cigano foi retratado em Juiz de Fora, Minas Gerais (Dornas Filho, 1948, p. 45). Uma vez que muitas famílias romenas no Brasil foram e ainda são conhecidas por sua dedicação à música, ao teatro e à performance circense (8), alguns rom poderiam ter ignorado as restritivas políticas migratórias, inserindo-se no país como artistas. Como se lê no artigo 8 do regulamento aprovado pelo Decreto n. 24.258, de 16 de maio de 1934:
“Apesar de não serem isentos do processo das ‘cartas de chamada’, os estrangeiros não imigrantes que são artistas teatrais, artistas de concertos, professores, artistas de circo, pugilistas, lutadores, malabaristas, ilusionistas e afins estão isentos de certas formalidades, desde que satisfaçam a requisitos do artigo 30” (Cameron, 1931, p. 2).
Seguindo as nacionalidades indicadas por José de Oliveira China, registros governamentais indicam que 77.781 imigrantes da Albânia, Bulgária, Checoslováquia, Grécia, Hungria, Polônia, Romênia, Rússia e Iugoslávia entraram no Brasil entre 1926 e 1935 (Gibson, 1936). Seria quase impossível, neste momento, determinar quantos desses imigrantes eram, na realidade, ciganos rom. Precisamos também levar em consideração o fato de que durante esse período os ciganos, assim como os judeus, devido à perseguição que estavam enfrentando, criaram estratégias diaspóricas diversificadas, viajando por dentro e para fora da Europa antes de ir para as Américas do Norte e do Sul. Existe, portanto, uma grande variedade de possíveis origens e caminhos para a liberdade (Carneiro & Strauss, 1996, p. 104). Entretanto, em razão da característica transnacional dos ciganos e de seu habitus nômade, é difícil identificar a sua nacionalidade exata ou o seu lugar de origem.
Um bom exemplo me foi revelado pelo rom machuaia Horácio Jovanovic, que gentilmente convidou-me para conhecer a sua casa no Jardim Eulina, em Campinas (SP), a cidade com o maior bairro de rom na América Latina. Ele me disse que a sua avó chegou ao Brasil em 1929, vinda da Sérvia. Já a esposa de Horácio, Marlene, é descendente de iugoslavos e libaneses.
Ele explicou que, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, muitos ciganos iugoslavos e eslovenos viajaram primeiramente para a Itália e depois para o Brasil. Vários deles adotaram sobrenomes italianos e ainda são identificados como italiaia ou “ciganos italianos” (Jovanovic, 2007). É interessante notar que a Itália foi a nação de origem imigrante preferida para os formuladores de políticas migratórias brasileiras. De acordo com o Departamento de Imigração Nacional, 462 italianos entraram no Brasil em 1936. Esse número saltou para 2.946 em 1937. Entre 1926 e 1935, supostamente 51.121 italianos imigraram para o Brasil (Gibson, 1936) e, entre 1934 e 1940, mais de 11.700 italianos fizeram o mesmo (Cunha, 1940). Antes e durante a Segunda Guerra Mundial, os destinos preferidos dos ciganos, de acordo com Horácio, foram os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina, o Brasil e o México.
Por todas as razões acima mencionadas, torna-se difícil estimar o número de entrada de imigrantes rom no Brasil antes e durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, dados sobre a imigração podem ser usados em conjugação com o testemunho oral para apresentar as rotas prováveis e as estratégias de imigração adotadas pelos rom. O estudo de sua migração para o Brasil revela a longa duração da discriminação que sofreram e que ainda sofrem nos tempos atuais, juntamente com a falta de conhecimento que nós, os gadjés, continuamos a ter sobre esses “misteriosos” brasileiros.
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BRIGITTE GROSSMANN CAIRUS é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
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(1) Aqui adotamos apenas a forma singular.
(2) Uma boa quantidade de alvarás desse período pode ser encontrada em Coelho (1995, pp. 197-235).
(3) Segundo depoimento de Mirian Stanescon concedido a mim em 2007, o subgrupo sinti, existente sobretudo na Alemanha, não migrou para o Brasil.
(4) Em vez de ciganos, o autor chama-os de “zíngaros”, à moda italiana da época.
(5) Um rom poderia ter mais de uma nacionalidade ou etnia. Victor Vishnevsky, por exemplo, nasceu em Xangai, em 1931, e tem como etnia a lovara russa, possui cidadania iraniana e é residente no Brasil desde 1960 (Vishnevsky, 2006).
(6) Para preservar a dignidade e incentivar a unidade ativista da etnia, o ciganólogo rom Ian Hancock defende o uso do termo romani em vez de gypsy (Hancock, 2005, p. 18).
(7) Ian Hancock indica que, “segundo o historiador do Instituto de Pesquisa do Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington, Dr. Sybil Milton, em 1997 o número de vidas romani perdidas em 1945 era ‘entre um meio e um milhão e meio’” (Hancock & Stone, 2004, p. 383 – tradução nossa).
(8) Armando Pepino Stevanovichi, instrutor da Escola Nacional do Circo, no Rio de Janeiro, mencionou que seus avós húngaros chegaram ao Brasil com a sua família extensa, que incluía ursos e cachorros treinados, por volta de 1890 (Pereira, 1985, p. 77).
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