Revista USP – Número 142 – julho/agosto/setembro 2024
Editora: SCS/USP
Idioma: Português
Confira abaixo os artigos deste número e dos anteriores.
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Certas palavras, quando justapostas, causam um estranhamento que, a princípio, não deveriam causar. É o caso de “religião” e “escola”. Isso porque, ainda que circunscritas ao campo da formação (seja espiritual ou não), possuem motivações e interesses bem diferentes: a religião está ligada ao transcendente, ao dogma, à fé; enquanto a escola, ao mundano, à ciência e – por que não – à dúvida. São esferas aparentemente opostas, sobretudo quando pensamos nas democracias modernas, essencialmente laicas, em que noções tais como de pluralismo, diversidade e cidadania deixam entrever uma crosta de impermeabilidade às instâncias imateriais do sagrado. Como, então, conciliá-las? Como ensinar religião sem transformar o professor em sacerdote e a sala de aula em templo? A polêmica é grande. Também são muitas as possibilidades, e – como se verá nos casos de Brasil, Argentina e Canadá – cada país tende a adotar critérios próprios.
Mas essa é apenas uma das questões sobre as quais este dossiê “Religião e Escola” irá refletir. Existem outras, muitas outras. O dossiê foi organizado pela professora Paula Montero, da FFLCH-USP, e pelo pós-doutorando Guilherme Borges, ambos pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do projeto Nonreligion in a Complex Future (NCF), do Canadá. Aos dois, os nossos agradecimentos.
Esta edição da Revista USP também guarda uma surpresa na seção Textos. Trata-se de uma descoberta feita por Élide Valarini Oliver, professora de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade da Califórnia (EUA). E o que ela descobriu é retumbante: a possibilidade de o nosso maior escritor, em 1860, ter plagiado, por via indireta, um autor francês numa crônica publicada no jornal A Marmota, do Rio de Janeiro. Mas não vou dar spoiler. Se Machado de Assis, então com 21 anos (portanto, bem antes de haver se tornado o bruxo do Cosme Velho que passamos a reverenciar), cometeu ou não esse deslize juvenil, o leitor só ficará sabendo depois de ler o artigo de Oliver.
Jurandir Renovato
Nas democracias contemporâneas – independentemente de serem elas entendidas como seculares ou pós-seculares –, já não se conta com a expectativa de que as instituições religiosas tenham suas zonas de influência confinadas ao âmbito do privado. Pelo contrário, o que se tem são atividades cada vez mais visíveis e vocais de representantes religiosos na esfera pública e especificamente junto ao Estado. Não que as relações de colaboração ou conflito entre igrejas e o poder estatal constituam propriamente uma novidade trazida pelas formações políticas atuais. Através da leitura dos artigos que compõem este dossiê, será possível observar que as controvérsias a respeito do secularismo atravessam as trajetórias históricas de longa duração de países tão dessemelhantes como Brasil, Argentina e Canadá. No entanto, os próximos textos também mostrarão que as disputas em torno das fronteiras e limites da laicidade estatal têm se complexificado recentemente em decorrência do rápido declínio das religiões cristãs majoritárias, cujas lideranças constatam a olhos vistos a desnaturalização do seu poder hegemônico de influência sobre os agentes políticos.
Paula Montero
Guilherme Borges
O ano de 2017 foi crucial para a definição do lugar do ensino religioso na educação pública tanto do Brasil quanto da Argentina. Com uma diferença de menos de três meses entre uma decisão e outra, os Supremos Tribunais desses países trataram da constitucionalidade das normas que garantiam a oferta e a ministração dessa disciplina em estabelecimentos do Estado. Neste artigo, revisaremos as justificativas apresentadas pelos tribunais para apoiar suas decisões, investigando nesses contextos como o senso comum jurídico molda, define e estabelece os limites do religioso e do não religioso. Em outras palavras, mais do que avaliar o mérito e a legitimidade da implementação do ensino religioso em escolas públicas, nosso objetivo é tornar visíveis as narrativas e discursos através dos quais os membros dos Supremos Tribunais Federais dos dois países em análise dão materialidade ao que entendem por (não) religião.
Palavras-chave: ensino religioso; educação pública; Argentina; Brasil; Supremo Tribunal Federal.
2017 was a crucial year for defining the place and model of religious education to be taught in public schools in both Brazil and Argentina. With a difference of less than three months between one decision and the next, the Supreme Courts of these countries dealt with the constitutionality of the rules that guaranteed the provision and teaching of this subject in state establishments. In this article, we will analyze the justifications presented by the courts to support their decisions, investigating in these contexts how legal common sense shapes, defines and establishes the limits of the religious and the non-religious. In other words, rather than evaluating the merits and legitimacy of the implementation of religious education in public schools, our aim is to make visible the narratives and discourses through which the members of the Supreme Federal Courts of the two countries under analysis give materiality to what they understand by (non) religion.
Keywords: religious education; public education; Argentina; Brazil; Supreme Court.
A análise da emergência do conceito de espiritualidade nas políticas públicas educacionais revela diversas tensões em ação nos campos religioso e secular. Constituirá essa emergência um estratagema por parte de grandes grupos religiosos para preservar uma influência em sociedades que estão pondo um fim às alianças oficiais com eles? Tornou-se o conceito de espiritualidade abrangente o bastante para designar qualquer busca de significado, e também para satisfazer à aspiração por uma igualdade formal entre todas as formas de crenças, cultos e descrenças? Este artigo aborda a questão da espiritualidade e como ela foi integrada no arranjo legislativo escolar da província canadense do Quebec. Para isso, analisa-se a criação, nessa província, do Serviço de Atendimento e Orientação Espiritual e Envolvimento Comunitário. Pensado para ser neutro, ele é dirigido a estudantes religiosos e não religiosos, em um esforço de promoção de uma lógica da igualdade.
Palavras-chave: secularismo; diversidade religiosa; educação; Quebec; Canadá.
The analysis of the emergence of the concept of spirituality in public education policies reveals various tensions at work in the religious and secular fields. Is this emergence a ploy by large religious groups to preserve influence in societies that are putting an end to official alliances with them? Has the concept of spirituality become broad enough to designate any search for meaning, and also to satisfy the aspiration for formal equality between all forms of beliefs, cults, and non-beliefs? This article addresses the issue of spirituality and how it has been integrated into the school legislation of the Canadian province of Quebec. It analyzes the creation in that province of the Spiritual Care and Guidance and Community Involvement Service. Designed to be neutral, it is aimed at both religious and non-religious students, in an effort to promote a logic of equality.
Keywords: secularism; religious diversity; education; Quebec; Canada.
Este artigo examina a construção de um modelo oficial de pluralismo escolar plasmado nas proposições hegemônicas de ensino religioso. Tendo como foco as atividades de uma organização inter-religiosa fundada em 1995, o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper), a análise busca retraçar sua trajetória, suas redes colaborativas e suas prescrições para a formação de professores sensíveis ao trato das diferenças. Trata-se de mapear as formas pelas quais os agentes do Fonaper imaginam o religioso e suas diferenças e o modo como enfrentam o problema da verdade de proposições heterogêneas e contrastantes. Para tanto, o artigo detalhará o contexto que favoreceu a criação desse tipo de organização, seus objetivos e redes de interação e os fundamentos de sua proposta de um ensino religioso pluralista.
Palavras-chave: pluralismo religioso; Fonaper; associações inter-religiosas; ensino religioso.
This article examines the construction of an official model of school pluralism embodied in hegemonic proposals for religious education. Focusing on the activities of an inter-religious organization founded in 1995, the Permanent Forum for Religious Education (Fonaper), the analysis seeks to retrace its trajectory, its collaborative networks, and its prescriptions for training teachers who are sensitive to dealing with differences. The aim is to map out the ways in which Fonaper’s agents imagine religion and its differences and how they face the problem of the truth of heterogeneous and contrasting propositions. To this end, the article will detail the context that favored the creation of this type of organization, its objectives and networks of interaction and the foundations of its proposal for a pluralistic religious education.
Keywords: religious pluralism; Fonaper; inter-religious associations; religious education.
O artigo apresenta o projeto do ensino religioso da Igreja Católica em reação à laicidade republicana no Brasil. Após sucessivas aproximações, esse projeto foi decretado para todo o país em 1931 e incorporado pela Constituição Federal de 1934: as escolas públicas de ensino primário, secundário, profissional e normal deveriam oferecer o ensino religioso no horário das aulas, facultativo para os alunos. A partir da Constituição de 1988, uma dissidência no segmento católico pretendeu substituir o confronto pela disputa hegemônica no interior do campo educacional, no contexto de um campo religioso em profunda e rápida mudança. Normas legais diferentes, originadas de demandas distintas, definiram essa disciplina em modalidades divergentes, a confessional e a não confessional. Originado no campo religioso, o conflito se instalou no campo educacional, sem perspectiva de solução.
Palavras-chave: educação pública; ensino religioso; Igreja Católica; confessionalismo; laicidade.
The article presents the religious education project of the Catholic Church in reaction to republican secularism in Brazil. After successive approaches, this project was decreed for the entire country in 1931 and incorporated by the Federal Constitution of 1934: elementary, secondary, professional and teaching schools should offer religious education during class hours, optional for students. Starting with the 1988 Constitution, dissent in the Catholic segment intended to replace the confrontation with a hegemonic dispute within the educational field, in the context of a religious field undergoing profound and rapid change. Different legal norms, originating from different demands, defined this discipline in divergent modalities, confessional and non-confessional. Originating from the religious field, the conflict was installed in the educational field, with no prospect of a solution.
Keywords: public education; religious education; Catholic Church; confessionalism; secularism.
Desde o final da década de 1980, o ensino religioso ministrado em escolas públicas brasileiras tem sofrido amplos processos de revisão no que concerne a seus objetivos oficiais, que passaram a englobar a missão de incutir nos alunos o respeito à diversidade cultural e religiosa do país, tendo em vista que tal postura seria indispensável para a construção da cidadania. Para analisar essas mudanças de escopo, o foco da investigação recai nas aulas de ensino religioso formatadas pela Secretaria de Educação do estado do Paraná, que tem sido considerado por atores do próprio campo educacional uma referência no pioneirismo em esboçar um perfil inicialmente ecumênico e depois inter-religioso para essa disciplina escolar.
Palavras-chave: ensino religioso; cidadania; pluralismo; educação; religião.
Since the end of the 1980s, religious education taught in Brazilian public schools has undergone extensive revisions in terms of its official objectives, which now include the mission of instilling in students respect for the country’s cultural and religious diversity, given that such an attitude would be indispensable for building citizenship. In order to analyze these changes in scope, the focus of the investigation is on religious education classes formatted by the Department of Education of the state of Paraná, which has been considered by actors in the educational field itself to be a pioneering reference in outlining an initially ecumenical and then inter-religious profile for this school subject.
Keywords: religious education; citizenship; pluralism; education; religion.
Trata-se neste artigo de uma análise acerca da presença de sujeitos religiosos nos conselhos tutelares e como ocupar o debate acerca de políticas públicas para crianças e adolescentes se tornou espaço de produção de legibilidade para determinados sujeitos na política. Assim, pretendo demonstrar que conselhos tutelares funcionam como uma espécie de tecnologia de engajamento, um lugar de exercício das mais variadas pedagogias eleitorais, servindo de espaço para formação, teste e aprendizado a homens e mulheres que exercem posições de liderança em suas comunidades de fé – igrejas evangélicas ou paróquias católicas –, sem qualquer experiência política ou vivência como servidoras(es) públicas(os).
Palavras-chave: crianças e adolescentes; políticas públicas; conselhos tutelares; comunidades de fé.
This article analyzes the presence of religious individuals in guardianship councils and how occupying the debate on public policies for children and adolescents has become a space for producing legibility for certain individuals in politics. Thus, I intend to demonstrate that guardianship councils function as a kind of engagement technology, a place for exercising the most varied electoral pedagogies, serving as a space for training, testing, and learning for men and women who hold leadership positions in their faith communities – Evangelical churches or Catholic parishes –, without any political experience or experience as public servants.
Keywords: children and adolescents; public policies; guardianship councils; faith communities.
Este estudo analisa a presença da diversidade religiosa em escolas confessionais de elite no Brasil, investigando como essa diversidade se manifesta em seus valores e programas pedagógicos. A pesquisa se baseia em dados do Censo Escolar e informações coletadas nos portais de 18 escolas confessionais tradicionais dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Através de técnicas de data science, a pesquisa extraiu informações dos Censos (2007-2023) e sobre a abordagem da diversidade religiosa dos sites e documentos das escolas. O estudo busca compreender se a inclusão da diversidade religiosa nas propostas pedagógicas das escolas confessionais contribui para a desconfessionalização do ensino religioso. Os resultados mostram que, apesar da liberdade ideológica garantida pela legislação, essas escolas enfrentam pressões do Estado e da sociedade para promover o respeito às diferenças.
Palavras-chave: escolas confessionais; diversidade religiosa; valores; desconfessionalização do ensino religioso.
This study analyzes the presence of religious diversity in elite confessional schools in Brazil, investigating how this diversity is reflected in their values and pedagogical programs. The research is based on data from the School Census and information collected from the websites of 18 traditional confessional schools in the states of São Paulo and Rio de Janeiro. Using data science techniques, the research extracted information from the Censuses (2007-2023) and about the approach to religious diversity from the schools’ websites and documents. The study seeks to understand whether the inclusion of religious diversity in the pedagogical proposals of confessional schools contributes to the deconfessionalization of religious education. The results show that despite the ideological freedom guaranteed by law, these schools face pressures from the state and society to promote respect for differences.
Keywords: confessional schools; religious diversity; values; deconfessionalization of religious education.
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